1 História de um gráfico
Ganhou circulação quase viral nas redes sociais, perdendo menção de autoria, um gráfico (Gráfico 1) que elaborei e partilhei com alguns amigos sobre a evolução da estrutura sócio-económica do eleitorado e, sobretudo, da dependência directa que o seu rendimento tem do Estado. (Nota metodológica: o denominador do gráfico não é o número de eleitores, que considero desfasado da realidade, mas a população residente com 18 e mais anos).
Gráfico 1 – Estrutura do Eleitorado
A razão que me levou a elaborar o gráfico foi a de demonstrar a alguns amigos, nostálgicos de um tempo que já não há, que a sociedade de hoje já não é a desse tempo. E que continuar a pensar em soluções adequadas à estrutura social desse tempo, para além de falta de acuidade contextual – fatal em política –, é o equivalente matemático de aplicar a solução certa para o problema errado, o que, num exame, dá chumbo.
O gráfico, que julgo demonstrar bem esse propósito, não tem nenhum intuito moralista – as coisas são o que são. Mas é um bom instrumento analítico para pensar pragmaticamente soluções e programas políticos. E sinaliza, para quem quiser ver, importantes desafios que se colocam ao nosso futuro, cuja superação requer pensamento estratégico, sistémico, e fundado no longo prazo. E, por conseguinte, programas políticos consistentes e capazes de interpelar sistemicamente (insisto!) esses desafios. Se isso não for feito, e o foco continuar no horizonte imediato, será a inércia social e demográfica, subjacente à evolução que o gráfico demonstra, a comandar passivamente – sob a aparência de um comando político – o nosso futuro, e o destino será uma inexorável senda de empobrecimento, relativo – onde já nos encontramos –, ou mesmo absoluto. Em lugar de sermos nós a assumir, activa, voluntária e conscientemente, o comando do nosso destino.
2 Ganhar eleições e reformar não são a mesma coisa
Ganhar eleições, por um lado, e conduzir reformas transformacionais, por outro, requerem a formação de coligações sociais que o possibilitem. Mas os dois desafios – ganhar eleições e reformar – não são a mesma coisa, nem as coligações sociais para os vencer são necessariamente as mesmas. Não só frequentemente não as mesmas, como muitas vezes (a maior parte?) são mesmo divergentes, isto é, as coligações sociais ganhadoras de eleições são, ao mesmo tempo, adversas a reformas transformacionais. Daí que uma estratégia política focada apenas em ganhar eleições acabe por assentar em coligações sociais baseadas na inércia acima referida e que, por essa mesma razão, serão avessas a reformar o statu quo. Da mesma forma que uma estratégia política focada apenas nas reformas desejáveis não consiga formar as coligações sociais necessárias para ganhar eleições, condição sine qua non para poder reformar. A conjugação da resposta às duas necessidades é, pois, uma linha muito estreita.
Nestas condições, os partidos de largo espectro terão mais facilidade em ganhar eleições – ou seja, em gerar coligações sociais de apoio eleitoral – do que em vencer a inércia anti-reformista que essas coligações frequentemente encerram, salvo situações excepcionais em que exista um forte condicionamento ou “estímulo” externo (como foi o período 2011-2015, por exemplo). Por outro lado, coligações políticas pós-eleitorais, entre partidos representativos de segmentos da sociedade e dos seus interesses, terão, pelo menos teoricamente, mais condições para reformar – negociando plataformas que acomodem esses interesses aparentemente divergentes. No entanto, a fragmentação partidária torna mais difícil ganhar eleições (v.g. método de Hondt e organização eleitoral do território) ou obter maiorias governativas consistentes com essas plataformas
Um exemplo muito simples. Uma proposta de redução do IRS será muito atractiva para os 16% das famílias que pagam 80% do IRS, moderadamente atractiva para o terço da população que paga os restantes 20% e nada atractiva, e até potencialmente hostil, para os mais de 50% que não pagam IRS e/ou têm o seu rendimento dependente do IRS que os outros pagam. Não é fácil criar uma coligação social eleitoralmente vencedora, assente nesta proposta e é fácil estimular uma coligação social majoritariamente adversa à proposta. Para criar uma coligação vencedora, seria necessário ter propostas complementares que pudesse atrair os tais outros 50%, mas seria difícil que estas não fossem, ou parecessem, contraditórias com a primeira. Logo, é mais fácil gerar uma coligação eleitoral assente em propostas que não baixem impostos ou até que os subam. Já em termos de coligações pós-eleitorais, seria aparentemente mais fácil a uma coligação de partidos que representem, respectivamente, os que pagam impostos (nomeadamente os tais 16% das famílias), de um lado, e os consumidores de impostos, de outro, negociar um programa que atendesse aos interesses dos dois lados, conciliáveis, por exemplo, com um programa credível (para ambos os lados) de crescimento económico. Será, porventura, o caso da recente coligação governamental alemã.
3 Tendências eleitorais
Voltando ao Gráfico 1, e à alteração da estrutura social ocorrida nos 40 anos que intervalam as duas barras, podemos, à sua luz, interpretar melhor o que foi a evolução dos resultados eleitorais nesse período. Assim, e dividindo o espectro político entre esquerda e direita através de uma linha de separação entre PS e PSD (por conveniência analítica e sem querer entrar em discussões de teologia política), verificamos que as votações da esquerda em eleições legislativas se movimentaram dentro de um túnel de sentido ascendente (Gráfico 2) e as da direita dentro de um túnel de sentido descendente (Gráfico 3). E que nesse intervalo de tempo, a esquerda obteve nove vezes a maioria dos votos, enquanto a direita só conseguiu cinco vezes (e em 2011 em circunstâncias, muito excepcionais, de bancarrota).
Gráfico 2 – Tendência eleitoral da esquerda
Gráfico 3 – Tendência eleitoral da direita
O que quererá dizer que a esquerda tem conseguido mais facilmente mobilizar coligações sociais assentes no “grupo dependente”, que cresceu ao longo do período. E que a direita tem tido mais dificuldade em o conseguir, talvez porque continue mentalmente presa à estrutura social do início do gráfico. Por outro lado, a estagnação económica dos últimos 20 anos sugere também que a esquerda – dominante na governação desse tempo – tem tido mais dificuldade em mobilizar as coligações sociais necessárias para reformar o País no sentido de o tornar mais produtivo. Ou seja, tem-lhe sido mais fácil criar condições para ganhar eleições do que para reformar. O que conduz a um outro problema que abordarei a seguir.
Quanto à direita, apenas sabemos que tem tido mais dificuldade em criar coligações sociais que lhe permitam ganhar eleições, mas não temos a certeza de que pudesse conseguir as coligações sociais necessárias para reformar. Entre 2011 e 2015 – o seu maior tempo de governação neste período – conseguiu realizar importantes reformas, de que os governos seguintes muito beneficiaram, mas essas foram mais conseguidas por imposição externa, e da circunstância criada pela escassez financeira, do que assentes em apoio social. Pelo contrário, é razoável supor que algumas reformas criaram até hostilidade social, sobretudo da parte dos reformados, no que se constituiu numa importante barreira para o seu regresso ao poder, como o resultado das recentes eleições parece indiciar.
4 Conflito de coligações sociais
No que respeita ao outro problema para que apontam o Gráfico 1 e a incapacidade que a esquerda tem demonstrado para associar uma coligação social reformadora a uma coligação social ganhadora de eleições, e que conduz à inércia a que aludi no início deste ensaio, ele decorre do que descrevo a seguir. Arrumando, muito simplisticamente (apenas, mais uma vez, por conveniência analítica e sem qualquer insinuação substancial), as categorias do Gráfico 1 entre “criação de riqueza” – as duas categorias no topo das barras – e “consumo de riqueza” – as quatro categorias da base –, verifica-se que as categorias associadas à criação de riqueza se têm vindo a contrair, enquanto as do segundo grupo se têm vindo, em conjunto, a expandir. Isto cria inevitavelmente um conflito distributivo, que até há pouco foi sendo iludido com a acumulação de dívida externa. Isto é, foram buscar-se ao exterior, por empréstimo, os recursos necessários para colmatar a diferença entre as promessas de distribuição de riqueza e a riqueza efectivamente criada no País. Este expediente é, por natureza, limitado no tempo e tem a consequência perversa de sentar à mesa da distribuição futura os credores, cujo quinhão de direitos distributivos cresce com a dívida, e à custa do quinhão dos que já lá estavam sentados.
Este conflito foi muito atenuado com as reformas de 2011-2015, que equilibraram as contas externas e tornaram o país financeiramente auto-sustentável no presente, mas sem retirar os credores da mesa distributiva (o que, só por si, faz encolher o bolo disponível para os restantes “clientes” da mesa). Mas continuando o grupo de “criação” a contrair-se e o grupo de “consumo” a expandir-se, e continuando presentes os direitos distributivos dos credores (não representados no gráfico, porque não votam), o conflito distributivo vai continuar e vai continuar a agravar-se, criando uma crescente tensão política que, mais cedo ou mais tarde, pode traduzir-se em instabilidade social. Só um significativo crescimento da produtividade – que aumente o bolo a distribuir, entre cada vez menos criadores e mais consumidores de riqueza – poderá amainar o conflito e tornar a situação social sustentável. Para isso, são precisas importantes reformas e para as realizar é preciso criar a necessária coligação social que as apoie e que não parece (ainda?) existir. Mas o aumento da proporção do segmento “consumo” na estrutura social do eleitorado e, por conseguinte, a crescente dependência da distribuição originada no Estado, sugere uma crescente resistência à mudança e, por conseguinte, uma crescente dificuldade em mobilizar coligações sociais reformadoras.
Antes de prosseguir, quero acentuar os riscos que nos esperam se o país, e os seus agentes políticos, se renderem à inércia social que a dinâmica do Gráfico 1 tem implícita. Um importante fenómeno a que temos vindo a assistir, mas a dar pouca atenção, é que a emigração na última década está quantitativamente ao nível da grande emigração da década de 1960. Qualitativamente, porém, é uma onda muito diferente: enquanto naquele período, a emigração era sobretudo de trabalhadores indiferenciados ou de baixas qualificações, agora é de gente (jovens, sobretudo) qualificada. O que quer dizer que o País está a exportar o talento que, no gráfico, estaria no núcleo potencialmente mais produtivo do grupo da “criação de riqueza”, enquanto o grupo de “consumo” continua a crescer. A continuar esta tendência, vamos acabar a ter menos riqueza criada e mais solicitações para a sua distribuição, o que conduz à senda de empobrecimento em que, em termos relativos, já nos encontramos há décadas. Com a agravante de que a base social que fica, além de ser menos produtiva – pela sua natureza – é também a que “herdará” a dívida. Ou seja, e simplificando: menos gente a produzir e a produzir menos e mais gente a consumir, tendo sentada ao seu lado na mesa distributiva os credores que ajudaram, no passado, a distribuir riqueza que não produzimos.
5 Por uma coligação social reformadora
Por conseguinte e voltando ao início do ensaio, se não se quiser continuar refém da inércia subjacente ao que mostram o Gráfico 1 e os resultados económicos que conhecemos, é necessário que o país, e os seus agentes políticos e sociais, se empenhem num programa reformador, assente numa estratégia de longo prazo, participada, e que permita aumentar significativamente a produtividade. Não será fácil mobilizar uma coligação social de suporte, sem a qual um tal programa dificilmente se conseguirá pôr em prática. Mas, se houver vontade e empenho, é possível, como tem sido demonstrado noutros países.
Um dos temas que poderia funcionar como o agregador dessa coligação – e objectivo central de um tal programa – , poderia (deveria?) ser o aumento sustentável dos salários, porque é deles que, em última instância, depende a prosperidade da sociedade. Em Outubro de 2020, publiquei no Observador um ensaio sobre esse tema, intitulado “Uma ambição ao nosso alcance”. Continuo a pensar que tudo o que aí escrevi se mantém actual e poderia servir de matriz agregadora para a mobilização de uma coligação social reformadora. Mas outras ideias poderão ser exploradas, assim haja a vontade e o empenho que já mencionei.
Não haja dúvidas, todavia, de que se continuarmos a ignorar este desafio fundamental e nos rendermos à inércia e ao fatalista “o que tiver de ser, será” o caminho do empobrecimento e da conflitualidade social será inevitável.