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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Em 2003 foi uma desgraça. Agora, "se não fossem os bombeiros, isto não se teria salvado”

Há 16 anos, um fogo arrasou as florestas de Mação, Vila de Rei e Sertã. Em 2017, as chamas voltaram aos mesmos locais. Este ano, muitos pensaram estar a reviver o mesmo pesadelo. Reportagem em Mação.

Podíamos recuar 16 anos e o cenário seria o mesmo. Pelo menos para Ana Agostinho. Aos 47 anos, está ali de mangueira em punho, pela segunda vez, a defender a casa onde nasceu. A imagem poderia ser decalcada de 2003, ano de outro grande incêndio nesta região. Naquela altura como agora, Ana está na aldeia de Casas da Ribeira, já paredes meias com Cardigos, a tentar que a chamas não destruam a casa dos seus pais e dos seus tios — aquilo que também é seu.

“Manda vir baldes, a mangueira não tem força suficiente!”, grita para o seu filho, Filipe, de 22 anos, que a acompanha naquela luta contra as chamas. O fogo ali tão perto é a confirmação da notícia que viu ainda no sábado e que a fez arrancar de Lisboa, onde é assistente técnica numa escola, em direção à terra: o incêndio que tinha começado em Vila de Rei podia chegar ao concelho de Mação. E chegou.

Ana Agostinho diz que os incêndios deste fim de semana são  “um mimo”, se comparados com os de há 16 anos. No dia 26 de julho de 2003, conta, “não apareceram bombeiros nenhuns, nenhuns, nenhuns”. “Foi uma sorte este ano, comparativamente, não ter havido tanto calor e vento.”

Não é a única a lembrar-se do incêndio de 2003, no qual arderam 21 mil dos 40 mil hectares da área total de Mação. O filho, Filipe Agostinho, só tinha 6 anos, mas lembra-se de “fugir, fugir muito” para a aldeia do pai, Amêndoa. E o marido lembra-se “como se fosse hoje”. Como está a ser.

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Ainda assim — e mesmo com o ar carregado de fumo negro e denso —, Ana Agostinho diz que os incêndios deste fim de semana são  “um mimo”, se comparados com os de há 16 anos. Em julho de 2003, conta, “não apareceram bombeiros nenhuns, nenhuns, nenhuns”. “Foi uma sorte este ano, comparativamente, não ter havido tanto calor e vento” — apesar de, agora, enquanto conversa com o Observador, os termómetros marcarem quase 40 graus e o vento soprar com força — uma das grandes preocupações para as autoridades.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Liguei para o 112 às duas e quarenta da tarde e perguntaram-me a que distância eu achava que as chamas estavam de minha casa. Respondi que deviam estar a uns 400 ou 500 metros. Perguntaram-me também se eu ouvia algum helicóptero a sobrevoar a minha casa, um helicóptero branco e respondi que sim”. Ouviu, depois, aquilo que, ao início, achou que fosse uma maneira de a despacharem: “Dez minutos e estamos aí” — e estavam.

[Vídeo: Mais de 8.500 hectares já arderam no centro do país]

“Dez minutos depois, mais ou menos, não sei bem, eles chegaram mesmo”, confessa com um sorriso. Foi a ajuda de que precisava para salvar a casa da família, construída há 58 anos.

Em 2003, à falta de bombeiros, Ana Agostinho teve a ajuda dos pais. Entretanto, o pai morreu e a mãe está num lar, doente com alzheimer. Este ano, “se não fossem os bombeiros, isto não se teria salvado”. “Era impossível”, desabafa.

O fogo de 2003, relembra Ana, chegou entre as 16h00 e as 17h00 de um sábado, mas era diferente do de 2019. “Passou muito mais rápido, por estar muito vento”, conta. Agora, garante, também passaram “momentos de horror” e “durante muito tempo” porque as labaredas foram também “gigantes” — apesar de “não serem comparáveis” às de 2003. A diferença é que, desta vez, “demorou muito mais tempo a arder”, explica.

À falta de bombeiros, naquele ano teve a ajuda dos pais. Entretanto, o pai morreu e a mãe está num lar, doente com alzheimer. Este ano, “se não fossem os bombeiros, isto não se teria salvado”. “Era impossível”, desabafa.

“A minha mãe? Alguém sabe da minha mãe?”

Ninguém queria acreditar, apesar de todos estarem a ver o mesmo, olhos fixos no rodapé da imagem nas televisões do restaurante “O Cobra”, em Vila de Rei: “Fogo atinge o centro de Cardigos”. Os títulos não mentiam. Às três da tarde de domingo, com o vento forte, as fagulhas entravam sem obstáculo em vários jardins das casas no centro da freguesia. Nas ruas, o cenário era de caos: sirenes de ambulâncias por todo o lado e carros de bombeiros a acelerar, rua acima, rua abaixo.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Mais uma vez, o cenário parecia demasiadamente conhecido. Em 2003, o fogo que consumiu o concelho de Mação durante três dias destruiu duas casas de férias e cinco palheiros em Cardigos — a que se somaram 18 casas (algumas delas abandonadas) e arrecadações na freguesia de Amêndoa. Além disso, dezenas de pequenos negócios foram devastados, além das áreas de cultivo que desapareceram. Foi há 16 anos, mas ainda ninguém esqueceu.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Ao lado da farmácia Cardigos, na rua do Espírito Santo, era mesmo pelo bombeiros que muitos chamavam, preocupados com as chamas terreno baldio. “A minha mãe? Alguém sabe da minha mãe?”. “Foi para a casa da Manela, está bem. Calma, porra!” As duas mulheres que conversam, aflitas, não são as únicas ali, no meio de pessoas que correm de um lado para o outro, ao som do choro de crianças e lamentos de desespero. Outros esperam sentados nas escadas do prédio onde vivem, sem qualquer expressão de pânico, ao lado de dois cães: “Estou aqui porque não posso fazer nada para ajudar”. “E o fumo? Não o incomoda?”, perguntamos, mas sem obter qualquer resposta.

O centro da localidade de Cardigos encheu-se de sirenes de ambulâncias, carros de bombeiros a subir e a descer, pessoas a gritarem e a correrem de um lado para o outro. “A minha mãe? Alguém sabe da minha mãe?”. “Foi para a casa da Manela, está bem. Calma, porra!”

Entre os que correm pelas ruas, muitos procuram proteger crianças e idosos, que são levados para zonas mais seguras. Ao mesmo tempo, ninguém parece esquecer os animais. No meio daquela confusão, um jipe está parado em segunda fila, na praceta central da vila, com os quatro piscas ligados e sete ovelhas lá dentro.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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O tempo, de repente, parece ajudar. Uma mudança do vento e o fogo seguiu mais para longe, na direção da aldeia de Roda, a menos de cinco minutos de carro do centro de Cardigos. Sorte de uns, azar de outros: ali, em Roda, Carmita parece ser a única a tentar travar as chamas. Cláudia, a filha, está desesperada à espera dos bombeiros — que não chegaram. Assim, foi apenas aquela mulher, de 68 anos, a agarrar na mangueira da casa do vizinho — que está na Alemanha, de férias — para apagar o fogo que já ali está, no terreno em frente a sua casa. Ao mesmo tempo, a filha continua a correr a (muito) pequena aldeia de uma ponta à outra, à procura de ajuda. A maioria dos habitantes, porém, já não está ali: foi retirada pela GNR e levada para o lar de idosos de Cardigos.

Sobrou José Miguel, que corria, com um pequeno balde verde na mão, cheio de água — daqueles que as crianças levam para a praia.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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“O meu pai viveu aqui a vida toda com a minha mãe. Agora ardeu tudo e eu a ver!”

A dada altura, chega mais ajuda. A equipa do Grupo de Intervenção, Proteção e Socorro (GIPS) da GNR não é a única a passar por ali, mas é a única a parar. De imediato, os homens montam uma estratégia para controlar as chamas. Carmita, porém, não pára de dar indicações de onde a água é mais precisa. “Não largue a mangueira, não tenho força para a segurar sozinha!”, gritava com um dos militares. Agora também apoiada pela filha que gritava, em jeito de desabafo sobre a fraca atenção dada àquela aldeia: “Se não fosse eu e a minha mãe, isto ardia tudo!”.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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“O meu pai viveu aqui a vida toda com a minha mãe. Agora ardeu tudo e eu a ver!”, repetia.

A ajuda, porém, não chegou a tempo de evitar que uma casa ardesse por completo. Foi ali, na aldeia da Roda, que se perdeu a primeira casa de habitação permanente nos fogos deste fim de semana — uma hora depois de o morador ter sido retirado pela GNR para um local mais seguro.

A casa de Sebastião Mateus foi a primeira habitação permanente. O filho queixa-se que os bombeiros passaram por ali, mas seguiram caminho, por não haver nada mais a fazer. “O meu pai viveu aqui a vida toda com a minha mãe. Agora ardeu tudo e eu a ver!”

A casa pertencia a Sebastião Mateus, um madeireiro reformado e já com 91 anos. Viveu ali a vida toda com a sua mulher. O filho, João Mateus, ainda ali está, mãos apoiadas na anca, a olhar para o lugar onde viveu até aos seus 30 anos e do qual pouco resta agora.

“O meu pai perdeu tudo, não sobrou nada, olhe só…”, diz, num lamento. Conta que não teve ajuda de ninguém para evitar o que aconteceu — e queixa-se de um carro de bombeiros que passou, viu as chamas ali e seguiu para outro local, dizendo que mais nada havia a fazer.

(JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

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Ao cair da noite, o vento soprava com muito menos intensidade, fazendo crer que o combate às chamas podia, finalmente, ter resultados. A população, porém, preparava-se para mais uma noite passada em claro.

Das três grandes frentes de incêndio restava apenas uma, o que permitia concentrar os esforços no mesmo local. Até essa altura, o incêndio que começou em Castelo Branco já tinha feito nove feridos, transportados para o hospital — um deles em estado grave, com queimaduras em várias partes do corpo. Outras 21 pessoas foram assistidas pelo INEM no local.

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