Reportagem em Nova Iorque, EUA
Há dois anos, Neil Harbinson tinha 55 anos e estava na pré-reforma. A vida como gerente de restaurantes tinha-lhe rendido algum dinheiro, mas também chatices que não estava para aguentar muito mais tempo — e ainda mais chatices teve quando decidiu começar uma empresa de limpezas, que acabou por falir. Depois, teve uma ideia: “E se eu fosse mascarar-me de Trump para a Trump Tower?”.
Nas suas raras passagens pela Times Square, já tinha reparado “num ou dois gajos” a fazerem de Donald Trump, tirando fotografias com turistas a troco de dinheiro. “E o meu espanto era que ninguém estava a fazer isto em frente à Trump Tower”, conta. Por isso, nessa altura, fez uma avaliação do que tinha a seu favor. Para começar, a sua altura, perto de 1,90m, não destoava nada da do Presidente dos EUA. A largura de ombros também condizia com o original. Na cintura, nem tanto — Neil Harbinson é mais ligeiro. Mas Harbinson arranjou uma solução: bastava que, debaixo do fato preto com camisa branca e gravata azul, usasse várias camadas de roupa. Terminou essa conta em oito, entre camisas e t-shirts. E, por fim, a máscara de borracha com a cara Donald Trump. Passado este tempo, tem uma coleção de 22. Compra-as a um amigo, que as entrega brancas, e depois ele própria pinta-as em casa com maquilhagem.
Quando Neil Harbinson se estreou em frente à Trump Tower, número 725 da 5ª avenida, em Nova Iorque, do outro lado da estrada já estava Paul Rossen. Atualmente com 58 anos, conta que, pouco depois de Donald Trump ter sido eleito, tomou a decisão de ir para a frente da Trump Tower sempre que possível. Gerente de um clube de comédia à noite, durante o dia passou a deslocar-se até ali com o seu merchandising anti-Trump, que vai de autocolantes a pins, contando também com uma adição conjuntural: máscaras. “E assim foi, nos últimos quatro anos foram muitos mais os dias em que vim do que aqueles em que não vim para cá”, conta, com um orgulho tão evidente que até é visível através da máscara onde se lê “VOTE”.
Paul Rossen vai para ali todos os dias por dois motivos: a política e a sua carteira, não necessariamente por esta ordem de importância. “Por muito que eu deteste dizer isto sobre alguém, Trump merece que eu diga isto: eu odeio o homem”, diz. “E adoro dinheiro”, acrescenta logo de seguida. No final de contas, a combinação final ficou perfeita para Rossen: “A ideia de fazer lucro contra um homem que eu odeio porque está a destruir este país e a torná-lo num regime fascista é, francamente, perfeita”.
E também se espanta com o mesmo que o seu “colega” do lado de lá da rua: “Que mais ninguém tenha tido esta ideia é uma coisa que, sinceramente, me espanta”.
“Ganho mais do que nos empregos que tive até aqui”
Nem um nem outro dizem quanto concretamente ganham com as suas idas diárias à porta da Trump Tower. “É o suficiente para viver uma vida confortável, ainda para mais agora que o meu clube de comédia está de portas fechadas”, diz Paul Rossen, que faz dinheiro com o merchandising anti-Trump, que também vende online. “Não se ganha nada mal”, diz Neil Harbinson, que diz que trabalha em frente ao edifício quatro horas por dia, com uma folga semanal. “Ganho mais do que nos empregos que tive até aqui, já depois de pagar os devidos impostos.” A julgar pelo movimento de sobrancelhas, a primeira parte da frase é para ser levada a sério, a segunda nem tanto. Que o diga o maço de notas que guarda no bolso do sobretudo — um volume tão grosso que nenhuma carteira deste mundo chegaria para guardá-lo.
Ainda assim, com a Covid-19 o ritmo do trabalho baixou — e muito. Para Harbinson, a quebra é na ordem dos 90%. “Sem turistas, quem passa aqui são só nova-iorquinos”, lamenta. “Os nova-iorquinos não veem interesse nenhum no que eu faço, isto tem piada é para quem é de fora.”
Dos dois, Paul Rossen é de longe o mais politizado. Com 58 anos, explica que sempre foi de esquerda e que já no tempo de George W. Bush se envolveu no movimento contra a guerra no Iraque — altura em que comprou a máquina que ainda hoje usa para fazer pins políticos. Agora que olha para trás, reconhece que tinha “ódio” a Bush. “Mas é para aí um terço daquele que sinto por Donald Trump”, diz.
Rossen ficou chocado com Trump ainda antes de ele ser eleito. Tudo por uma frase que Paul Rossen tem na ponta da língua: “Donald J. Trump exige um fecho total e completo das fronteiras dos EUA a muçulmanos até que os representantes do nosso país entendam que diabos se está a passar”. A frase surgiu na sequência do atentado de San Bernardino, na Califórnia, de 2 de dezembro de 2015. Naquele tiroteio, levado a cabo por um casal muçulmano que se inspirou no autoproclamado Estado Islâmico, morreram 14 pessoas e outras 24 ficaram feridas.
“Que Donald Trump use as ações de uns poucos para banir 1,8 mil milhões de pessoas dos EUA é uma medida que vai para lá de racista”, diz Paul Rossen. “A minha mãe cresceu na Alemanha da década de 1930, portanto, sempre que oiço alguém a defender a ideia de se atingir um grupo em específico em função da sua religião, começo logo a pensar que já vi isto algures.”
Este é um entre vários pontos que Rossen levanta — agora como nos últimos quatro anos — sempre que é confrontado com pessoas que se opõem a Donald Trump e também por pessoas que o apoiam. A estes últimos procura dizer sempre: “Podemos ficar aqui a debater horas e horas, com todo o gosto da minha parte, desde que os dois possamos falar”. Recentemente, foi abordado por um homem que se apresentou como membro da milícia de extrema-direita Proud Boys (Rapazes Orgulhosos, em português). “Mas tu tens orgulho do quê? De teres nascido aqui? Porque é que tens orgulho de uma coisa que não foi da tua responsabilidade?”, disse àquele militante. “A minha mãe mandou-me cá para fora em Pittsburgh, pronto, por mim tudo bem, mas isso não quer dizer que seja algo do qual eu me deva sentir orgulhoso. Eu não fiz nada!”
No final de contas, a conversa com o membro dos Proud Boys foi como costuma ser com os mais aguerridos defensores de Donald Trump: tensa e combativa, mas nada mais do que isso. “O máximo que me aconteceu foi ser insultado, nunca chegaram a agredir-me fisicamente”, garante.
Do outro lado da rua, Neil Harbinson não pode dizer o mesmo. É verdade que são várias as pessoas que o abordam para expressar apoio (“Estou a rezar muito, estar a rezar todas as noites para ganharmos isto outra vez a 3 de novembro, Neil”, diz-lhe um habitué que passa por ali todos os dias), mas também não são poucos os que se atiram contra ele por revolta contra o Presidente.
“Há um par de semanas, uma miúda estava a passar com os amigos e tentou dar-me uma chapada”, diz, contando que, por sorte, desviou-se a tempo de não ser atingido. Nem sempre consegue. “Já mais do que uma vez cuspiram-me para os sapatos”, diz. Os insultos também são recorrentes. E garante que só não são mais porque sabe que tem as costas quentes — aquecidas pelos polícias da unidade de contra-terrorismo que guardam o edifício e que Neil Harbinson trata pelo primeiro nome.
Esta animosidade é algo que o preocupa, não só porque a sente na pele — mas também porque este é o seu país e ele já não o reconhece. “Quando John F. Kennedy morreu, as pessoas choravam na rua”, diz. “Agora, quando Trump teve Covid, havia gente às gargalhadas e a desejar que ele morresse. Que loucura é esta?”
E quem o diz é um homem que nem gosta particularmente de Donald Trump.
É verdade que, quando fala com as pessoas que passam, mesmo que não tenha a máscara do Presidente posta, acaba por defender o homem que dá nome à torre que tem pelas costas. Quando um homem passa para dizer que Trump está a fazer “um trabalho lindo, lindo, lindo”, Neil Harbinson respondeu-lhe: “Pois é, e os media nem dizem nada sobre isso, não querem mostrar”.
Mas, sentado a um canto, longe daquela fachada imponente, não tem muito de bom a dizer sobre o Presidente. “É um bom entertainer…”, começa por dizer, quando lhe perguntamos o que tem a elogiar nele. “… E é isso, na verdade não há mais.”
Sem Trump, não há biscate — mas também não houve Covid graças à sua máscara
Com eleições a pouco mais de uma semana, Paul Rossen e Neil Harbinson têm agora pela frente um cenário de incerteza profissional, podendo acabar por perder estes seus lucrativos biscates pela mesma razão que tem levado tantos outros norte-americanos a perderem empregos em fábricas: obsolescência. O que, neste caso, acontecerá caso Donald Trump perca as eleições de 3 de novembro.
Tanto um como o outro estão conscientes disso.
O lado estritamente político de Rossen quer muito que Trump perca — e é por isso que vai votar em Joe Biden nestas eleições. Já o seu lado estritamente empresarial sabe que uma vitória do democrata tiraria o interesse em Donald Trump e, consequentemente, nos pins em que faz montagens grotescas com a cara do Presidente. “Se Biden ganhar e Trump sair da Casa Branca, o ideal para mim era que a autarquia de Nova Iorque permitisse que se abrissem os bares e os clubes de comédia para eu poder voltar a trabalhar lá”, diz, ironicamente coincidindo com o Presidente nesta sua observação.
Quanto a Neil Harbinson, o desejo é que Donald Trump ganhe — não tanto por questões políticas, garante este homem que diz que sempre votou em partidos pequenos. Este é um desejo meramente fundado em questões financeiras, diz. “Se Trump perder, resta-me menos de um ano aqui. Se ele ganhar as eleições, vou continuar a ganhar a vida à custa dele.”
Por isso, a conclusão parece-lhe fácil. Mas, ainda assim, mesmo que Donald Trump perca, Neil Harbinson sente que lhe deve a vida. Não pela questão financeira, porque sente que aí também há mérito seu, mas sim pela sua saúde em contexto pandémico.
“Durante o mês de fevereiro e no início de março, eu devo ter estado frente a frente com pessoas de todas as cidades do mundo, que vieram ter comigo para tirar fotos, para falar, que me tocaram… tudo”, recorda. E, apesar de tudo isso, não apanhou Covid-19 — isto numa cidade onde 252.281 pessoas foram infetadas, das quais se estima terem morrido 23.697. Neil Harbinson não foi uma delas e, na sua cabeça, é bastante claro a que é que deve essa sorte. Com o adereço de borracha que o ajuda a pagar contas, diz: “A máscara de Trump salvou-me a vida”.