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Nuno Mendes e Marcos Cruz foram contratados para uma missão quase impossível: montar e desmontar os palcos e o sistema de som de mais de meia centena de comícios em apenas duas semanas, ao ritmo de cinco comícios por dia. Perante a envergadura de tal tarefa, os dois jovens de Viana do Castelo tiveram de reforçar consideravelmente o equipamento da sua pequena empresa de audiovisuais, a Fresh Produções, adquirindo púlpitos para discursos, estruturas de palco e muito material novo. Diariamente, percorrem o concelho de Ponte de Lima para montar tudo o que é necessário para cinco comícios em cinco localizações diferentes. Depois, eles e outra dupla de técnicos dividem-se: uma equipa vai para o lugar do primeiro comício e a outra vai para o lugar do segundo comício. Quando o primeiro termina, a equipa segue para o terceiro, e por aí fora. Tem sido assim todas as noites, toda a noite.
O motivo de todo este aparato técnico? O projeto megalómano da campanha eleitoral de Vasco Ferraz, o candidato do CDS-PP à câmara municipal de Ponte de Lima, que prometeu realizar comícios e sessões de esclarecimento em todas as 51 antigas freguesias do concelho durante a campanha. Isso obrigou-o a organizar um rigoroso calendário que alterna entre as ações de rua durante o dia e uma intensa viagem pelas freguesias entre o fim da tarde e a noite. Na quarta-feira, quando o Observador encontrou Nuno e Marcos a ultimar os preparativos para um comício às 19h30 no centro educativo da Feitosa, três quilómetros a sul da vila de Ponte de Lima, os jovens já haviam perdido a conta aos eventos organizados: “É o 41.º, acho eu. Ou 40.º. Já não sei”. Para esse dia, Vasco Ferraz tinha o seguinte calendário de comícios: 18h45, Boalhosa; 19h30, Feitosa; 20h15, Brandara; 21h, Bárrio; 21h30, Cepões.
Escusado será dizer que uma agenda destas está feita para sofrer atrasos. O comício das 19h30, na verdade, só começaria às 20h10 — pelo que pode imaginar-se a que horas terá começado o das 21h30. “É muito difícil, é muito duro fazer 52 comícios [51 freguesias e um de encerramento], mas principalmente a meio da campanha, no domingo, quando fazemos, apenas num dia, 14. Mas enche-nos sempre de uma alegria enorme, chegarmos e termos sessões muito participadas”, desabafa Vasco Ferraz ao Observador na manhã seguinte, lembrando que os comícios de proximidade em cada um dos territórios fazem parte de um modelo que já tem vindo a ser seguido nas campanhas do partido há vários anos.
Atrasos à parte, o calendário louco de Vasco Ferraz é apenas um dos muitos sinais que mostram como a corrida autárquica no concelho de Ponte de Lima está, este ano, mais quente do que nunca. Mas o sinal mais evidente pode ser detetado numa simples caminhada pelo centro histórico da vila que se diz a mais antiga de Portugal: nesta terra, respira-se eleições. Não há, por estes dias, silêncio no centro de Ponte de Lima. A cada minuto passa um carro de campanha equipado com altifalantes que emitem sonoros e musicais apelos ao voto. Por todas as ruas esvoaçam bandeiras das candidaturas. As campanhas e arruadas cruzam-se nas ruas e há um número anormalmente elevado de outdoors por metro quadrado. Em cinco minutos, tanto se ouve a “Carvalhesa” como “Paz, pão, povo e liberdade” a jorrar de altifalantes precariamente afixados em tejadilhos. Mas por trás da euforia eleitoral não estão nem a CDU nem o PSD, nem o Bloco de Esquerda, nem qualquer outro partido: está uma grande incerteza relativamente à sucessão autárquica num concelho que sempre foi CDS.
No discurso que fez perante mais de uma centena de apoiantes eufóricos em Feitosa, o centrista Vasco Ferraz, atualmente vereador na autarquia, repetiu insistentemente a palavra “lealdade” e afirmou mesmo que ela “tem de ser um dos pilares da gestão das nossas vidas”. Estava dado um recado com alvos bem concretos, numa campanha intensa como poucas no país. É que, pela primeira vez em quatro décadas, o CDS-PP poderá perder a única câmara que liderou ininterruptamente desde o 25 de Abril — tudo porque o eleitorado centrista está mais dividido do que alguma vez esteve. Não ao meio, mas em três.
Um CDS, três candidatos
Eterno bastião dos centristas, a câmara municipal de Ponte de Lima tem sido liderada por autarcas do CDS desde o 25 de Abril. O seu primeiro presidente democraticamente eleito, João Abreu Lima, foi um dos militantes fundadores do CDS, partido pelo qual também foi deputado e de que foi dirigente nacional. Todavia, a última década trouxe irremediavelmente à tona um conjunto de divisões internas que têm fraturado o eleitorado que, durante mais de 40 anos, manteve o CDS no poder local. Em 2021, o partido arrisca mesmo perder o seu bastião pela primeira vez devido à grande dispersão de votos. O que se passa?
Victor Mendes, o autarca eleito em 2009 e reeleito em 2013 e 2017, está a chegar ao fim do terceiro mandato, o último que pode cumprir devido à lei da limitação de mandatos, e a sucessão é um imbróglio difícil de resolver, havendo três candidatos oriundos do espaço político do CDS a discutir o lugar.
Vasco Ferraz, atualmente vereador eleito nas listas de Victor Mendes, é a candidatura da sucessão natural. Aliás, o ainda presidente da câmara é também mandatário da campanha de Ferraz e tem surgido ao lado do candidato em vários dos comícios — também ele a repetir até à exaustão o elogio da “lealdade”. No comício a que o Observador assistiu, na freguesia da Feitosa, Victor Mendes saudou três dos seus vereadores, incluindo Ferraz, que integram novamente as listas do CDS, com um elogio, no mínimo, curioso: “Tenho aqui três vereadores que foram leais, mesmo quando não concordavam com o presidente.”
A cartada da lealdade parece ser jogada contra dois dissidentes do CDS que se candidatam como independentes contra Vasco Ferraz — embora o próprio candidato explique ao Observador que o aviso se refere mais a problemas internos do partido do que às duas candidaturas da oposição.
Um deles é o ex-deputado centrista Abel Baptista, que foi expulso do CDS em 2018 por se ter candidato à autarquia contra o próprio partido. Baptista, que foi vice-presidente da câmara de Ponte de Lima sob a liderança de Daniel Campelo (o célebre deputado do CDS que ficaria conhecido por ter cedido o seu voto no Parlamento para a aprovação do Orçamento do Estado de António Guterres, à revelia do próprio partido, em troca da permanência em Ponte de Lima da fábrica do queijo limiano) e deputado entre 2005 e 2016, rompeu com o partido nesse ano, já descontente com o modo como Victor Mendes governava o concelho. Sem hipótese de ser ele o candidato centrista à autarquia, criou um movimento independente, o “Ponte de Lima Minha Terra” (PLMT), com o qual concorreu às autárquicas de 2017, e não poupou nas críticas à liderança de Assunção Cristas, chegando a afirmar que a direção do CDS era composta por “meninos e meninas de Lisboa e Cascais, que perderam o contacto com a realidade do país”. O movimento conseguiu capturar uma grande quantidade de votantes do CDS e obteve 23,66% dos votos, o que lhe valeu dois dos sete membros do executivo camarário (embora não tenha sido suficiente para tirar a maioria absoluta ao CDS, com 52,11%).
Por se ter candidatado contra o próprio partido, Abel Baptista foi formalmente expulso do CDS em 2018. Agora, o ex-deputado repete a candidatura com o movimento PLMT, apoiado pelo Partido Socialista — mas o cenário já não é o de há quatro anos e Abel Baptista está confiante numa vitória.
Numa conversa com o Observador durante uma ação de campanha, Baptista aponta os fatores que fazem a diferença. Por um lado, “temos mais sete candidaturas a juntas de freguesia do que há quatro anos”. Em simultâneo, “o facto de o presidente da câmara, o Victor Mendes, não ser candidato, significa obviamente uma alteração de ciclo”. Além disso, o PSD tem um candidato mais forte. Mas, acima de tudo, o CDS que restava partiu-se novamente ao meio: “O atual candidato do Viramilho, o Gaspar Martins, era vice-presidente há quatro anos, andou a fazer campanha e a levar votos para o CDS. Neste momento, está a ir lá buscar votos.”
Não é possível contar a história política de Ponte de Lima sem esta personagem. Gaspar Martins é um veterano da política autárquica limiana: vereador durante 12 anos durante a presidência de Daniel Campelo (cruzando-se na câmara com Abel Baptista) e vice-presidente da autarquia durante oito anos, entre 2009 e 2017, nos primeiros dois mandatos de Victor Mendes. Todavia, em 2017 Gaspar Martins abandonou a autarquia, descontente com a gestão de Victor Mendes — culminando um já longo processo de confronto com a ortodoxia centrista. “Apoiei o Mário Soares quando já estava no CDS. Apoiei-o contra o Freitas do Amaral, o que foi muito complicado. O Freitas do Amaral tinha aquela coisa, na altura, de que a direita ia ganhar, mas eu tinha um pressentimento de que o Freitas do Amaral não era a pessoa indicada, devido àquilo que tinha por trás dele, todos aqueles saudosistas do regime anterior. Eu já sentia isso, para mim parecia-me ligeiramente perigoso e, como tal, apoiei o Mário Soares. Começou aí a minha polémica”, comenta Gaspar Martins ao Observador num café do centro histórico de Ponte de Lima, onde o cortejo de campanha — indiscutivelmente o mais animado e ruidoso dos três — faz uma pausa para refrescos num dia de 30ºC na vila minhota.
Mais tarde, o apoio à candidatura do social-democrata José Manuel Fernandes ao Parlamento Europeu deteriorou ainda mais a relação com o partido — e o apoio público a Rui Rio nas legislativas de 2019 foi a gota de água. Demitiu-se ainda antes de ser expulso, numa altura em que já estava reformado da autarquia havia dois anos. No seu lugar, em 2017, fora eleita a sua filha, Mecia Martins, atual vice-presidente da câmara de Ponte de Lima. Mas também ela, ao longo dos últimos quatro anos, começou gradualmente a afastar-se da linha do partido — e a votar contra várias decisões do executivo. A autarca explica ao Observador que no cerne do seu desentendimento com o executivo de Victor Mendes e os restantes vereadores centristas (uma fação liderada por Vasco Ferraz) estão vários casos de urbanismo e gestão do património da autarquia, alguns dos quais estão inclusivamente a ser investigados pelo Ministério Público.
Com a filha excluída das listas para as autárquicas deste ano e a câmara encaminhada para se manter nas mãos do CDS numa lógica de continuidade com o executivo anterior, Gaspar Martins sentiu que era o momento de voltar. “Dada a quantidade de trapalhadas, de mentiras, de falta de seriedade que o executivo ia praticando, começaria a pôr em risco o futuro do concelho de Ponte de Lima”, diz. “Não estou a dizer que é o fim do mundo se eles ganharem. Não é nada o fim do mundo, porque Ponte de Lima tem, inclusivamente, uma capacidade de endividamento e financiamento enorme, porque está na estaca zero. Não deve nada. Portanto, daí até se endividar leva muito tempo. Mas tudo tem um começo. E, se esse começo se der agora, é o princípio do fim.”
Gaspar Martins também não tem pruridos em dizer abertamente que a sua notoriedade nas ruas — que, aliás, o Observador pôde constatar durante uma arruada pelo centro de Ponte de Lima — é um trunfo eleitoral. “Já antes de ir para a câmara era muito conhecido. Fui sempre um indivíduo muito dado a percorrer o concelho, muito dado ao convívio com as pessoas, daí que sou de facto sobejamente conhecido de todo o eleitorado do concelho”, atira, convicto de que foi pessoalmente responsável por muitos dos bons resultados eleitorais do CDS nas autárquicas das últimas décadas. “Eu não tenho votos. À partida, este movimento apresenta-se pela primeira vez, por isso não tem votos. Onde é que eu penso que vou buscá-los? Exatamente àqueles eleitores que sempre votaram no CDS — e muitos deles acredito que votavam no CDS porque eu estava lá.”
É precisamente nesta divisão do eleitorado centrista pela (re)entrada de Gaspar Martins em cena que Abel Baptista vê uma vitória quase certa no horizonte. Mas Vasco Ferraz não está preocupado: “O que eu não vejo é uma divisão dentro do CDS. O que eu vejo são dois cidadãos que, de certa forma, não souberam respeitar as decisões de um órgão, e por alguma pretensão decidiram candidatar-se. O que tenho a certeza é que dentro do eleitorado do CDS não existirá qualquer tipo de divisão.”
É nesta fase que se impõe uma nota: apesar de o CDS liderar a autarquia há mais de quatro décadas, o que tem valido a Ponte de Lima o epíteto de eterno bastião do partido, a verdade é que o CDS não é, genericamente, a ideologia dominante entre o eleitorado limiano. Basta olhar para os resultados das várias eleições legislativas da última década para perceber a tendência: o PSD ganhou sempre, às vezes com o dobro dos votos do CDS — e, à exceção do ano em que os dois concorreram coligados na PàF, o CDS ficou sempre para trás, inclusivamente do PS. O que explica, então, que nas autárquicas o CDS se mantenha imbatível?
“É um fenómeno que, admito, não lhe sei explicar. Efetivamente, no nosso concelho, o maior partido em termos de legislativas é o PSD”, assume Vasco Ferraz. “Acho é que as pessoas reconhecem o trabalho que os eleitos pelo CDS têm feito ao longo dos últimos anos”, acrescenta, sublinhando que o partido representou, logo na década de 1970, “uma alteração radical” dos modos de vida em Ponte de Lima e foi capaz, por outro lado, de assegurar a “manutenção excelente do centro histórico” e o “crescimento económico do concelho”. Na prática, nas autárquicas “vota-se no trabalho que está feito e naquilo que foi demonstrado ao longo de 45 anos”, continua Ferraz. Só isso foi capaz de manter à tona em Ponte de Lima um CDS a afundar-se a nível nacional.
“Vejo o CDS num momento de renovação. Não podemos dizer que o CDS já não tenha passado por uma situação destas e que não tenha renascido das cinzas e até crescido. Acredito que o CDS é um partido essencial para a democracia e tenho a certeza absoluta de que estamos numa fase de renovação para, em breve, voltarmos a crescer”, analisa o candidato centrista, que, apesar de não se ter contado entre os apoiantes de Francisco Rodrigues dos Santos na corrida à sucessão de Assunção Cristas, jurou lealdade ao novo presidente do CDS quando Chicão foi eleito. “Passámos um mau momento, com algumas quezílias e problemas internos. Isso está ultrapassado. A partir do momento em que existem umas eleições, aquilo que eu acredito como base é que todos os militantes do partido têm de apoiar a pessoa que foi eleita. Não seria, no ato eleitoral dentro do congresso, um dos apoiantes do Francisco. No entanto, depois de terminado o ato eleitoral, fui ter com ele, conversei com ele e disse-lhe que podia contar com o meu apoio. Era o presidente do meu partido e é assim que as coisas têm de funcionar.”
Para Vasco Ferraz, 2019 não era “o melhor momento” para Rodrigues dos Santos avançar para a presidência. “Eu achava que o partido não estava preparado para receber o Francisco naquele momento. Efetivamente, foi aquilo que se viu. Cheguei a dizer ao Francisco que achava que ele devia ter mais calma e esperar mais quatro anos, para que o partido lhe desse uma aceitação maior. Foi opção dele, que eu respeito”, explica, salientando que os opositores internos — particularmente João Almeida —, ao manterem uma posição de confronto público com o líder, “não estão, de forma absolutamente nenhuma, a ter a melhor atitude”.
Num momento de fragilidade para os centristas, o resultado autárquico em Ponte de Lima pode revelar-se fulcral. É o próprio candidato do partido que o admite: “Admito que, se existisse alguma possibilidade de perdermos as eleições em Ponte de Lima, seria muito mau presságio para o partido. Ponte de Lima foi o bastião durante muitos anos. Fomos a única câmara do partido durante perto de 30 anos. Se, nesta fase em que o partido está débil, perdesse a câmara de Ponte de Lima, podia ser um caminhar mais acelerado para um rumo pior.” Vasco Ferraz formula a frase no condicional, claro. Mas, na mesma medida que o candidato centrista está praticamente certo de que vai vencer a câmara, os seus dois principais oponentes estão convictos de que 2021 ficará para a história como o ano em que o CDS perdeu o seu bastião de sempre.
“O CDS não existe”
Por volta das 16h30 de quarta-feira, um carro detém-se no estacionamento das visitas da Atepeli, Ateliers de Ponte de Lima, uma fábrica na freguesia de Calvelo, 15 quilómetros a sul da vila, conhecida por produzir para a marca de luxo francesa Louis Vuitton. Das janelas abertas saem braços empunhando bandeiras do movimento “Ponte de Lima Minha Terra”, a candidatura independente de Abel Baptista à autarquia. Lá dentro, vários elementos da lista do ex-deputado centrista estão agarrados ao telemóvel. Há uma ação de campanha agendada para dentro de 15 minutos e ainda não há sinal do candidato.
Apresentamo-nos aos ocupantes do carro, que confirmam o interesse mediático na campanha de Abel Baptista: estamos longe de ser os primeiros jornalistas a aparecer nas ações do ex-deputado. “Vieram cá ver a queda do CDS?”, pergunta-nos, muito sorridente, João Paulo Antunes, ex-presidente da junta de freguesia de Arca, no centro do concelho, e agora o último membro da lista de Abel Baptista. “Quarenta anos de CDS vão cair com um movimento independente, vão ver. Querem ouvir a nossa música de campanha? É do mais regional que há.”
Queremos, claro. Mas, enquanto a ligação de bluetooth entre o telemóvel e o rádio do carro não arranca, chega um telefonema: afinal, a ação de campanha não era naquela fábrica. Parte da lista tinha recebido a mesma informação errada que o Observador. Sem problema. A fábrica certa é ali perto e basta seguir o carro da campanha para, em poucos minutos, chegarmos à zona industrial de Anais, a freguesia vizinha, onde Abel Baptista e uma grande parte da comitiva já estão, à porta da fábrica de calçado Conforto Eco, à espera das 17h15, a hora do fim do turno, para entregar canetas, chapéus, panfletos e sacos de pano a cerca de uma centena de trabalhadores que em breve sairão pelo portão.
A agenda de Abel Baptista tem sido intensa. Entre reuniões com instituições do concelho, visitas a fábricas à hora dos turnos e muitas sessões de esclarecimento por todo o território do concelho, o ex-deputado do CDS não tem parado. “Tem sido cada vez melhor”, diz Abel Baptista ainda antes do toque da campainha que abriria alas à saída dos trabalhadores. “Há uma clara adesão em termos de pessoas no dia-a-dia. As pessoas chegam ao pé de nós e dizem ‘estou contigo’, ‘temos de mudar’, ‘é hora de mudar’, ‘não faz sentido continuar da forma que está’. Há uma adesão do cidadão comum, da pessoa que está a sair da porta da escola, da fábrica.”
“As pessoas sentem da minha parte a questão da seriedade. Reconhecem que estou na vida pública há quase 40 anos e não há casos de nada, não há obras ilegais, não há suspeitas de qualquer tipo de seja do que for”, atira Abel Baptista, numa referência velada às polémicas que marcaram os últimos anos na autarquia e que contribuíram decisivamente para uma crescente divisão do CDS em Ponte de Lima: uma investigação do Ministério Público ao executivo de Victor Mendes por alegadas irregularidades nas contas da Associação Concelhia das Feiras Novas (motivada por declarações públicas da vice-presidente da câmara, Mecia Martins, filha de Gaspar Martins) e a acusação do MP contra Vasco Ferraz e Gaspar Martins (atual e anterior vereador da câmara com o pelouro das obras — e ambos candidatos) por alegadas violações das regras urbanísticas no processo de aprovação de obras no concelho.
Os primeiros minutos de conversa com Abel Baptista são suficientes para perceber que navegar pela história do CDS e da autarquia de Ponte de Lima significa mergulhar num enredo complexo de ex-companheiros de partido cujas relações se deterioraram — e que pode ser difícil de compreender em todas as suas dimensões.
Toca a campainha e começam a sair os trabalhadores. Em grande animação, a equipa de Abel Baptista distribui os chapéus amarelos que, como iríamos perceber no dia seguinte, no grande comício de encerramento da campanha, são um dos símbolos de uma campanha muito visível nas ruas de Ponte de Lima. Praticamente todos conhecem Abel Baptista e trocam meia dúzia de palavras com ele. Uns dão-lhe força, outros dão a entender que vão continuar a votar no CDS, quase todos perguntam se não há mais uma caneta ou um saquinho. Enquanto Baptista se ocupa da distribuição de material de campanha, João Paulo Antunes ajuda-nos a perceber a situação autárquica do concelho.
“É inevitável o colapso do CDS”, diz o ex-presidente de junta, que faz parte do movimento independente de Abel Baptista desde o primeiro dia. “É um partido que já estava a decrescer, durante o período da Cristas”, continua, não hesitando em correlacionar a saída de Abel Baptista do Parlamento e o início de um período ainda mais conturbado no partido. “A nível nacional não vejo grande futuro, não sei se não acabará”, dramatiza. “As últimas sondagens dão muito pouco.”
Em Ponte de Lima, por outro lado, apesar de quatro décadas de liderança centrista, também não é fatal que tenha de ganhar o CDS. “Aqui o partido com mais expressão é o PSD. Ganha em todas, exceto nas autárquicas. E as pessoas não veem no Vasco Ferraz a continuidade”, sustenta o ex-autarca. “Como diz o Abel, há aqui uma janela de oportunidade única. Há um forte sentimento de mudança.”
Para Abel Baptista, este é o momento de acabar com quatro décadas de governação centrista (ainda que o próprio Baptista tenha feito parte dessa mesma governação centrista). “Não é salutar em termos de democracia. É sinal de que a democracia afinal não funciona se se mantém quarenta e tal anos no mesmo partido”, diz, não poupando nas críticas ao CDS. “Não me sinto desapontado com o partido”, assegura, lembrando a sua expulsão em 2018. “O CDS não existe hoje, a democracia cristã hoje não existe. O CDS não é um partido democrata-cristão, não é um partido liberal, não é um partido conservador, não é nada disto. Ou misturar tudo isto também não é nada. O CDS é um grupo de pessoas, a grande maioria dependentes do partido em termos de rendimentos, e o resto são algumas pessoas um bocadinho ainda do amor à camisola. O CDS não existe. Não existe em Ponte de Lima, não existe no país… Em Ponte de Lima, neste momento, toda a estrutura do CDS é a câmara municipal. Os vereadores da câmara e os presidentes de junta. Sendo que alguns deles são funcionários da câmara. É esta a estrutura do CDS. Não existe como organização independente partidária.”
De modo paralelo ao eterno CDS limiano, Abel Baptista tem vindo a reunir um movimento independente composto por pessoas anteriormente ligadas a vários partidos. “Há pessoas que já estiveram ligadas partidariamente ao PSD, ao PS, sem ligação nenhuma partidária. Sobretudo os jovens, não faço ideia da tendência ideológica que têm, não é para mim isso o relevante”, atira, desvalorizando a importância da inclinação partidária na política autárquica. “O que nos une aqui é o concelho. Nós estamos num concelho que perdeu cerca de 2.300 pessoas nos últimos 10 anos, 5,3% da população. O dobro da média nacional. Tem um rendimento per capita na ordem dos 71% da média nacional, quando tinha condições para estar pelo menos na média. Tem uma taxa de cobertura de saneamento de 50%. Há aqui claramente coisas que não estão bem.”
Perante estas necessidades, Abel Baptista lamenta que a prioridade da câmara nos últimos anos tenha sido fazer “eiras nas freguesias”, ou seja, “meter pedra no chão junto aos adros das igrejas e junto à sede da junta” — com gastos financeiros na ordem das centenas de milhares de euros sem qualquer retorno económico, acusa. O ex-deputado quer lançar-se rapidamente à produção de projetos que permitam à autarquia candidatar-se ao PRR e ao Portugal 2030 (“a câmara não tem um único projeto neste momento para apresentar”) e implementar medidas para modernizar o concelho e fixar os jovens. “Não podemos viver exclusivamente da tradição. Nenhum sítio. Nem Roma, que é Roma, vive exclusivamente dos seus monumentos”, remata.
Cerca de 20 minutos depois do toque da campainha, já saíram praticamente todos os trabalhadores da fábrica. A campanha deixa uns brindes adicionais para duas funcionárias administrativas que ainda estão no interior e segue viagem. Para as 19h15 está marcada uma sessão de esclarecimento ali perto, na freguesia de Anais, mas antes é hora de lanchar (e deixar mais umas canetas) numa pastelaria das redondezas.
Mas o grande banho de multidão da campanha de Abel Baptista estava reservado para o dia seguinte. De volta ao centro histórico da vila e à cacofonia eleitoral que por ali se vive, o movimento PLMT encheu o Largo de Camões, mesmo à beira do rio Lima, com várias centenas de apoiantes — a que só o chapéu amarelo valeu em dia de forte chuva — para um mega-comício marcado pela ironia: o palco, na zona central da vila, foi instalado entre as sedes de campanha de Gaspar Martins e Vasco Ferraz. Depois da música, uma sequência de medleys que abrangeu um impressionante número de clássicos de festa popular, nem a chuva torrencial demoveu centenas de pessoas de abandonar a praça, onde ouviram Abel Baptista deixar farpas aos oponentes.
“Arriscámos marcar o nosso comício na quinta-feira, não aproveitámos a presença de turistas e enchemos a praça com apoiantes. Será assim no domingo”, abriu Baptista. “Não estamos aqui por causa de um partido, uma religião, um clube. Estamos aqui pela nossa terra”, continuou, explicando aos apoiantes, entre aplausos, que o afastamento dos partidos políticos permite ao movimento ser “absolutamente livre, sem pressões”. No fim, deixou aos limianos um repto: “Querem continuar como estamos ou mudar de vida? Se querem continuar como está, sabem em quem votar. Se querem mudar de vida, a alternativa somos nós. Não há uma terceira via.”
“Depois bebemos um copo quando ganhar”
“Continuar como estamos.” Aquilo que no comício de Abel Baptista é proferido como dura crítica é assumido com orgulho no comício de Vasco Ferraz no centro educativo da Feitosa. A presença do presidente cessante, Victor Mendes, e a inclusão de vários atuais vereadores na lista do CDS é a prova viva de que a lista de Ferraz joga o trunfo da continuidade. “Não deem tiros no escuro”, apela no arranque do comício o candidato da lista à Assembleia Municipal, João Mimoso de Morais, lembrando que Ferraz “esteve oito anos como vereador, a aprender, a preparar-se”. “Tu tens obra feita, incomodas muita gente e vais continuar!”, antevê Mimoso de Morais.
O espaço exterior do centro educativo da Feitosa, onde funciona o jardim infantil e a escola primária, encheu-se rapidamente. Uma hora antes, o recinto estava vazio: só Nuno e Marcos iam terminando os preparativos para o comício. Contudo, por volta das 19h, a trinta minutos da hora marcada para os discursos, o ambiente começou a compor-se com a chegada dos habitantes da Feitosa. Vindos de todo o concelho, pelo menos cinco carros equipados com altifalantes no tejadilho concentraram-se no parque de estacionamento da escola, emitindo a mesma mensagem de apelo ao voto acompanhada de música encorajadora (incluindo canções portuguesas como “Vamos Lá” ou “Juntos Somos Mais Fortes”), que insiste em expressões como “obra feita” e “provas dadas” — mas a falta de sincronia entre os vários carros de campanha só contribuiu para um ambiente de ruído impercetível.
Um dos carros mais ruidosos é um pequeno Peugeot cinza e o homem que o conduz é um dos melhores exemplos para compreender a complexa história autárquica de Ponte de Lima. Aos 73 anos, António Costa foi o primeiro presidente da junta de freguesia da Feitosa depois do 25 de Abril. O seu pai e o seu avô já tinham sido presidente daquela junta — e o “senhor Costa” é uma figura respeitada por todos os que ali estão, como se comprova pela quantidade de gente que o vem cumprimentar à chegada. Antigo funcionário público durante o Estado Novo, este guarda-rios (“uma profissão já extinta”, diz, saudoso) foi autarca nas listas do CDS em vários momentos das últimas décadas e, depois da reforma, tornou-se num elemento ativo das campanhas do partido. Mas, à semelhança de muitos dos limianos que votam no CDS para as autárquicas, nunca teve cartão de militante nem é especial apoiante do partido. “Não quero filiação partidária!”, diz ao Observador, sustentando que a campanha lhe dá “gosto para passar o tempo”.
Quarenta e cinco anos depois do dia em que “todos os chefes de família” da Feitosa se reuniram na sacristia da igreja local para escolher o jovem recém-casado António Costa como presidente da junta (e vários sucessos eleitorais depois), o histórico autarca da pequena freguesia não escapou à homenagem pública do partido de que nunca foi militante, proferida por Vasco Ferraz a partir do púlpito onde, logo de seguida, insistiria na mensagem da lealdade e pediria aos apoiantes que não deixassem que a “dinâmica de vitória” do CDS os levasse a ficar em casa no domingo eleitoral. “Temos toda a possibilidade de ter uma maioria absoluta no próximo domingo. Que não seja por excesso de confiança que isso não acontece. Saiam todos de casa para ir votar, digam aos vossos vizinhos e aos vossos amigos.”
Apesar de ter feito um total de cinco comícios na noite de quarta-feira, Vasco Ferraz regressou à campanha bem cedo na manhã seguinte. Quando o Observador o encontrou, por volta das 10h30, perto da escola secundária de Ponte de Lima a distribuir canetas, o candidato já tinha mais de hora e meia de arruada nas pernas. À porta da churrasqueira “O Gordo”, a grande fila já se tornou uma tradição. “Tem cá sempre tanta fila”, diz Vasco Ferraz ao dono do restaurante, enquanto lhe passa uma caneta para as mãos. “Os meus pais é que costumam vir cá sempre buscar frango.” No percurso que faz pela zona nova da vila, é reconhecido por quase toda a gente com quem se cruza. “Ó Vasquinho, anda cá”, ouve-se frequentemente. “O que é que andas a fazer?”, pergunta-lhe um idoso sentado à porta de um café. “Eu ando à caça ao voto, que é o nosso trabalhinho por estes dias”, responde Ferraz. “E que seja por muitos”, devolve o homem.
Em frente àquele café, pára um carro. “Tu não contas com o meu voto porque não me dás uma caneta!”, grita o condutor, divertido. Não seja por isso: Vasco Ferraz atravessa a estrada e vai oferecer uma esferográfica. Poucos segundos depois, um carro vindo na direção oposta pára ao lado do primeiro automóvel. Também é gente conhecida — e o candidato vê-se entalado entre dois condutores, com quem conversa animadamente. Mais uns segundos e já se gerou um pequeno engarrafamento naquela rua, nos dois sentidos. Mas o engarrafamento esteve longe de gerar indignação: é que Vasco Ferraz conhecia todos os condutores e acabou por conversar brevemente com cada um. A julgar por esta amostra, o vereador Vasco Ferraz é um homem conhecido e respeitado na vila.
Mas ainda faltava uma “sondagem”, que chega durante uma visita ao São Nicolau, ali perto. José Pinto Pires, de 75 anos, dono daquele restaurante há 30, está expectante: à tarde, o primeiro-ministro há de anunciar as regras do desconfinamento — e o fim dos limites à lotação dos restaurantes será fulcral para a retoma do seu negócio, que serve refeições a muitos grupos turísticos de grande dimensão. José Pinto Pires explica tudo isto a Vasco Ferraz e completa: “Do que eu tenho ouvido aqui, e sabe como é, temos muitos clientes e ouvimos as pessoas a falar, 90% vão votar em si. Depois bebemos um copo quando ganhar.”
Depois da saída do candidato, José Pinto Pires admite ao Observador: “Acho que vai ganhar. O problema é que são oito candidatos. Não vai dar para a maioria absoluta.”
E o que pensa o candidato da “sondagem” que ouviu no restaurante? “Até nos assusta”, assume, para depois reiterar aquilo que tem sido uma das mensagens centrais dos seus comícios diários: “Às vezes este excesso de confiança pode fazer com que efetivamente as pessoas não saiam de casa para votar e que possam estar, de alguma forma, a comprometer aquilo que pode ser um excelente resultado.”
“Não há ninguém que não o conheça”
O que também pode comprometer a ambição de Vasco Ferraz é a candidatura de Gaspar Martins, uma campanha com potencial para ir buscar muitos dos potenciais eleitores do CDS.
O ponto de encontro estava marcado para por volta das 14h30 junto ao Largo Camões, no centro histórico de Ponte de Lima — mas não eram necessárias informações demasiado específicas para encontrar a campanha do movimento independente Viramilho, um curioso acrónimo para “Valorizar a Idoneidade, o Respeito e a Autoridade — Movimento Independente de Limianos Historicamente Ousados”. Na margem oposta do rio Lima já se ouvia a música, inicialmente uma lista de grandes êxitos de Tony Carreira que em breve há de dar lugar às concertinas. Uma coluna sem fios, instalada num trolley com rodas, chega para animar o cortejo que se começa a formar. Por ali já estão vários apoiantes de Gaspar Martins, incluindo a atual vice-presidente da autarquia, a filha do candidato, Mecia Martins.
Gaspar Martins chega uns minutos depois e dois tocadores de concertina dão início ao cortejo.
“Isto está pesado. Pode ser a situação de domingo, na noite eleitoral”, comenta um elemento da campanha com o Observador, referindo-se ao ambiente que se vive em Ponte de Lima em véspera de eleições. Gaspar Martins encabeça a arruada que segue pela margem sul do rio Lima a distribuir canetas. “Para fazer o Euromilhões não serve, que não sai, mas para votar na espiga serve”, vai dizendo a todos aqueles com quem se cruza, enquanto aponta para a espiga de milho que leva pendurada no cinto, e que é o logótipo da candidatura. “E a esta menina, já deram uma caneta?”
Enquanto Gaspar Martins vai prosseguindo a distribuição de canetas, é a própria Mecia Martins que destrinça ao Observador mais uma parte do enredo autárquico de Ponte de Lima. Vice-presidente da câmara desde 2017, eleita pelas listas do CDS como número 2 de Victor Mendes, Mecia Martins começou a afastar-se do executivo pelos mesmos motivos que já haviam levado o pai a romper com o partido: as suspeitas de irregularidades praticadas pela autarquia. Votou vencida várias decisões da câmara dos últimos anos, deixou duras declarações de voto contra o resto do executivo e acabou por ser excluída das novas listas — só os vereadores leais, como Vasco Ferraz, transitaram para a nova candidatura do CDS.
Desta grande divisão no executivo surgiu a candidatura de Gaspar Martins, que regressa à vida política que o tornou conhecido em todo o concelho. “Não há ninguém, dos mais velhos à canalha mais pequena, que não o conheça!”, diz ao Observador uma vendedora da marginal, segundos depois de o candidato passar por ela e se deter uns minutos à conversa. “Ele é capaz de lá ir. Fez um bom trabalho na câmara há uns anos e bem sei que a câmara é CDS, mas as pessoas votam é pela pessoa.” É aí que Gaspar Martins, acreditando ter sido pessoalmente responsável por muitos dos votos que o CDS obteve nas últimas décadas, encontra a convicção de que será capaz de bater Vasco Ferraz.
“Temos sentido, acima de tudo, muito apoio e muito carinho por parte do eleitorado. Notamos que não somos uma equipa para descartar. Somos uma equipa para ter em conta. Já o percebemos há muito tempo. Falta, agora, saber se de facto somos aquela equipa que vamos vencer as eleições ou se vamos ficar a muito pouquinhos votos de vencer as eleições”, diz Gaspar Martins ao Observador numa pausa da arruada, quando as concertinas se calam por alguns minutos.
Com o eleitorado profundamente dividido entre três candidaturas com origem no espaço político do CDS (a que se juntam vários outros candidatos de outros partidos), é ainda uma incerteza ser o partido conseguirá ou não manter o seu eterno bastião. A análise feita por José Pinto Pires ao balcão do restaurante São Nicolau parece, porém, uma das poucas certezas: uma divisão tão grande do eleitorado resultará provavelmente numa vitória sem maioria absoluta — e é possível que dois (ou mesmo os três) candidatos venham a ter de se entender no executivo para governar o concelho. A julgar pela intensidade do debate e das acusações da última semana de campanha, a governação futura de Ponte de Lima antecipa-se uma tarefa difícil.