“Não vou cometer o mesmo erro duas vezes.” A face de Francisco Fagulha encolhe-se e, como se tivesse algo preso na garganta, estica o pescoço para se forçar a engolir.
É a primeira vez que confessa à mulher que se arrependeu quando voltou para Portugal há 18 anos, depois do seu primeiro período emigrado na Suíça.
Florbela Fagulha ri-se para o marido com um ar cúmplice. “Eu confessei logo e ele demorou estes anos todos a admitir”, diz. O casal fala ao Observador numa conversa por Skype, a partir de Sion, capital do Valais, na Suíça, país para onde emigraram pela segunda vez em 2011.
1988
Francisco foi primeiro. Para um jovem ambicioso de 24 anos não havia grande futuro na vila de Torrão, no Alentejo. A loja de artigos desportivos que tinha em sociedade com um amigo “não dava para mais do que sobreviver.” Nasceu numa família numerosa: 9 irmãos. Um dos quais já estava emigrado e arranjou-lhe trabalho na construção civil. Foi morar para Lavey Village, no cantão de Vaud, Suíça. Nos anos 1980, viviam 18943 portugueses naquele país. Na década seguinte o número aumentou em quase 1000% para 110312.
Florbela e Francisco conheciam-se das ruas da vila do Torrão, dos olhares trocados no grupo de teatro. Francisco partiu e ela ficou, em 1988. Mas, sempre que chegava aquele “querido mês de Agosto”, voltavam a cruzar-se. Passaram “muitas horas nas cabinas telefónicas” encurtando as distâncias físicas e emocionais.
Passados dois anos, em 1990, Florbela decidiu fazer-lhe um visita. Tinha 17 anos e embarcou sozinha no autocarro, pensando que “ia passar só umas férias”. Mas o amor não a deixou voltar. Em 1996, o primeiro filho dos dois, Kevin, nascido na Suíça, estava prestes a entrar para a escola primária. Florbela e Francisco pensaram: deveria o filho ser educado num país que não o dos próprios pais?
“Foi por ele”, diz Florbela, ao explicar a razão por que se convenceu a voltar para Portugal.
“Ele” era o futuro. Kevin tinha de crescer em Portugal, ser português, pensavam os pais. Entre 1996 e 2000, a emigração portuguesa para a Suíça sofreu uma inversão: regressavam mais do que os que partiam. Deu-se um “boom” da construção civil em Portugal. Diversas empresas estavam a ser criadas com apoio dos fundos europeus. Cidadãos da Europa de leste e central viam no país uma oportunidade. Foi um momento histórico. Existia esperança económica em Portugal. “Todo o dinheiro que ganhámos aqui [Suíça], investimos em Portugal”, diz Florbela. Alugaram um estabelecimento que transformaram no Café-Pastelaria Paragem. Pediram um empréstimo para comprar casa.
– Foi uma ilusão, diz Francisco, suspirando longamente, como se tivesse uma angústia dentro dele que ainda não foi expelida.
– Não era aquilo que estávamos à espera, completou Florbela.
– Nos primeiros tempos foi bom, foi quando aquilo [Portugal] deu o pulo. Mas depois quando entrou o euro tudo mudou, diz Francisco.
O curto diálogo é interrompido pelo silêncio. Florbela pára e parece percorrer as memórias.“Lembro-me de no dia seguinte a ter chegado a Portugal parar no meio da praça principal da vila e pensar: ‘Ai Bela’, onde é que te vieste meter?’”.
“Trabalhar, trabalhar, trabalhar”
Foram 16 anos a trabalhar com a sensação de se estarem a afundar, um dia de cada vez. Nos primeiros seis, nem tiraram férias e só descansavam um dia por semana. As economias eram sugadas por imprevistos. Durante este período nasceu o segundo filho do casal, Alexandre.
“Quando chegou a crise, um dos primeiros afectados foi a construção civil, e eles eram dos nossos principais clientes”, explica Florbela. A restauração levou por tabela.
Ainda assim, Florbela não se dedicou só ao café quando voltou para Portugal. “Em cada etapa escolhemos o que queremos atingir”. E Florbela queria estudar. Acabou o 12º ano e foi na Escola Superior de Beja que se licenciou em Animação Sócio Cultural. Um curso que condiz com a sua espontaneidade a falar. Não é difícil imaginá-la a dinamizar alguma atividade. Foram noites, na luz esbatida de um candeeiro, a estudar. “Para quê?”, pergunta-se Florbela.
Quando voltaram da Suíça depois da primeira estadia, Kevin era pequeno e não se apercebeu da mudança de país. Estudou e tirou um curso de recepcionista. “Teve uma excelente nota”, diz Florbela, orgulhosa. Estagiou num hotel de renome no Algarve. Gostaram dele e até lhe ofereceram trabalho, mas por “um mísero ordenado mínimo.”
Florbela ia ter de continuar a sustentar o filho. Kevin, por vontade própria, decidiu sair logo de Portugal e partir para o país onde os pais não o quiseram ver crescer. Não era este o destino que Florbela e Francisco queriam para o filho.
Numa quinta-feira de 2011 ligaram para Francisco a perguntar pelo interesse de voltar a trabalhar na Suíça. Na segunda-feira já estava a embarcar no avião. Não se despediu de nenhum cliente, ninguém, nem o melhor amigo que o foi levar ao aeroporto suspeitava qual ia ser a duração desta viagem.
“O que safou” Francisco foi durante a primeira temporada ter feito cursos de operação de máquinas e gruas. As exigências aumentaram. “A primeira coisa que perguntam agora é por um diploma”. No dia em que chegou pela segunda vez à Suíça não sabia como ia reagir àquela “reemigração”. “No segundo dia já parecia que nunca tinha saído de cá.”
Partir pela segunda vez
Cláudia Pereira, investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, explica que nos inquéritos sobre emigração umas das principais justificações dos cidadãos está relacionada com o facto de já se ter estado emigrado anteriormente, o que facilita uma nova saída. “Já têm uma rede de contactos que, na maioria dos casos, é a família”.
Contudo, estes dados não são compilados. Ao certo, não se sabe quantos dos aproximadamente 500 mil portugueses que saíram do país desde 2008, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, emigraram pela primeira vez. Ou quando tinha sido a última vez que tinham estado fora do país. De acordo com os censos de 2011, 10% da população portuguesa afirmou já ter vivido fora do país pelo menos um ano.
Há muitos que emigram para progredir na carreira profissional, diz a especialista, lembrando o caso dos portugueses na área dos fundos de investimento, que partiram para Londres. Outros pela aventura. E outros ainda porque são obrigados.
“O que regula as migrações é o mercado de trabalho”, sumaria Cláudia Pereira, ao falar dos motivos de emigração, um tema muito discutido nos últimos anos em Portugal. E o mercado de trabalho anda, passo a passo, ao lado da situação histórica e económica do país.
Muitos colegas de Francisco na Suíça são portugueses. Tinham empresas e por causa das dívidas que foram acumulando, tiveram de sair do país. Emigraram para pagar o insucesso.“Sabe, nós abrimos os olhos antes de isso acontecer”, diz Francisco.
Portugal ”não deixa saudades, tentamos apagar”, diz Florbela, como quem fala de uma memória traumática. Os últimos tempos em Portugal foram complicados para o casal. Lembrar não é bom. “Ui, ui. Isso é mau. É uma sensação horrível e sem explicação”, diz.
Florbela estava a trabalhar na área em que se tinha licenciado, mas o dinheiro não chegava. A família estava dividida e a distância criava interrogações: “Será que o nosso casamento vai avante?”. Em 2012, com a família partida, Florbela “pegou no filho mais novo” e decidiu que tinha de ir procurar a sorte em outras paragens, outras aragens, perto do marido: outra vez.
Trabalho, Pátria, Família
“Talvez que eu morra no leito/ onde a morte é natural/ As mãos em cruz sobre o peito/ Das mãos de Deus tudo aceito/ Mas que eu morra em Portugal.” Ouviam-se os lenços de papel a ser desembrulhados. A sala de cinema estava cheia de portugueses. Quando acabou a interpretação de Catarina Wallenstein da música Prece de Amália Rodrigues, no filme Gaiola Dourada, Florbela olhou para o lado e percebeu que não era a única que estava em lágrimas.
Por mais que tentem reprimir memórias e saudades, o país vai ter com eles. Durante as comemorações do 25 de Abril, até na Suíça passou um documentário sobre a revolução dos cravos. “Começou a tocar aquela música:’Quis saber quem sou, o que faço aqui…’. Aquilo deu-me aquela saudade de ser portuguesa.”
A Suíça não é um sonho, Portugal é uma miragem. Alexandre Afonso, cientista político, professor no King’s College de Londres que tem investigado questões de emigração portuguesa explica que a população portuguesa que vive na Suíça “não está bem integrada.” Existem lojas, cafés e bancos, quase exclusivamente frequentados por portugueses.
“Metade dos alunos nas escolas ou são portugueses ou descendentes destes”, diz Francisco, ao explicar porque é que o filho mais novo não teve muitas dificuldades em se adaptar ao país. Ao mesmo tempo, estamos a falar da Suíça, o país que aprovou em fevereiro deste ano uma série de medidas polémicas quanto à emigração. Existe até um descendente de portugueses no partido de extrema-direita que levou a referendo essas medidas, lembra Alexandre Afonso.
O casal está preocupado com o assunto. Só possuem o “permis-L”, o que corresponde a uma autorização de estadia máxima de 364 dias no país. Caso fiquem desempregados podem ter graves problemas.
Florbela todos os dias procura propostas de trabalho. Abre o jornal e vê os anúncios. Para já, trabalha naquilo “que os outros não querem”. Cuida de uma senhora idosa que sofre de Parkinson, faz limpezas, e ainda faz horas num café.
Mandou traduzir o diploma de licenciatura na embaixada portuguesa, o que lhe custou 100 euros. Farta-se de enviar currículos, mas a caixa de correio do email continua vazia. Sempre vazia.
A Francisco faltam-lhe 10 anos para conseguir a reforma e não sabe dizer se voltará a Portugal. “Para Portugal fazer o quê?” A reforma da mulher só chega daqui a 20 anos. Depois, existe a preocupação com os filhos e a vontade de acompanhar a vida deles. Florbela e Francisco não querem, não podem, cometer o mesmo erro duas vezes.