São 19h30 de terça-feira, dia 10 de janeiro, e, por esta hora, na urgência do Hospital de São José, em Lisboa, 19 pessoas com pulseira amarela (urgente) aguardam para serem vistas pelo médico e o tempo médio de espera ronda as 2h53. Mais para Norte, no Hospital Pêro da Covilhã, há 17 pessoas com a mesma pulseira e o tempo de espera supera as 3h30. Em ambos os sítios se ultrapassa o tempo de espera recomendado, mas, ainda assim, está longe de ser o cenário mais dramático, como aquele vivido na última quarta-feira, com doentes a esperarem mais de 10 horas em alguns hospitais, como o Amadora-Sintra, por exemplo. As enchentes nas urgências hospitalares voltaram a fazer capas de jornais nos últimos dias e poderão voltar a ser notícia nos próximos, anunciada que está uma nova descida de temperatura. Nada que se estranhe por esta altura do ano, mas a verdade é que a procura por este serviço voltou a aumentar, ao contrário dos objetivos do Governo. Além disso, nenhum Governo tem conseguido desviar das urgências os casos não urgentes.
O Observador pediu dados do conjunto do ano de 2016 à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que, até ao momento, não respondeu, pelo que não é possível, para já, perceber exatamente quantos atendimentos em urgência foram realizados em 2016 e qual a evolução face ao ano anterior. Mas olhando para os dados oficiais até agosto é possível verificar que houve um aumento face a 2015, o que até levou o ministro da Saúde, em novembro, a admitir que não iria conseguir atingir a meta traçada no início do ano: uma redução de 3,7% no número de episódios de urgência (menos 225 mil urgências).
A juntar a isso, os dados fornecidos ao Observador pelo Ministério da Saúde, respeitantes apenas ao mês de dezembro de 2016, mostram que todas as regiões, à exceção do Algarve, “conheceram e estão ainda a experienciar uma maior afluência aos serviços de urgência”, quando comparado com dezembro de 2015.
No Garcia de Orta, em Almada, por exemplo, regista-se um aumento de 20%, embora a afluência “não exceda o previsto”; no Santa Maria também se tem verificado um aumento face ao ano anterior; e Luís Lopes, diretor da Unidade Autónoma de Gestão da Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar de São João, confirma que no caso daquele centro hospitalar estão a registar também uma afluência 13% superior à do ano passado, o que “não se pode justificar apenas pela gripe, até porque acontece todos os anos e não há, até ao momento, um registo que sugira um aumento de incidência em relação a anos anteriores”. Além disso, prossegue, este aumento não se verifica apenas neste período, mas ao longo de todo o ano, “independentemente de fatores ambientais”.
Mas a preferência pelas urgências hospitalares não é de agora. Isso mesmo salta à vista num documento de trabalho publicado pela OCDE, em 2015, onde Portugal surge como o país onde há mais atendimentos em urgências por habitante: cerca de 70 por 100 habitantes, em 2012, muito acima da média.
Outra das notas a retirar deste estudo, e que já está identificada há anos como sendo outro dos problemas, tem a ver com as “falsas urgências”. A percentagem de doentes não urgentes ronda os 30% do total das urgências. Olhando apenas para os primeiros quatro dias deste ano, dos 65.822 atendimentos nas urgências, 23.834 (36,2%) eram situações não urgentes (pulseiras brancas, azuis e verdes).
O que explica a preferência pelas urgências?
Mas a verdade é que a escolha das urgências em primeira opção não é um fenómeno exclusivamente nacional, como atesta Leal da Costa, ex-ministro da Saúde. “É comum a muitos países do Mundo e provavelmente mais frequente nos países onde os cuidados de saúde são garantidos por um Serviço Nacional de Saúde geral, universal e tendencialmente gratuito.”
Apresentado que está o facto, a pergunta que se segue é: porquê? A resposta não é simples e o Ministério da Saúde, confrontado com ela, passou a vez, não respondendo. Mas, olhando ao que dizem os especialistas contactados pelo Observador, não há um único fator a motivar esta opção pelas urgências hospitalares, sendo que não se pode excluir da discussão um olhar pelos cuidados de saúde primários.
“Alguma investigação internacional mostra que é desde logo uma questão reputacional. Ainda há a ideia de que os hospitais têm melhor capacidade para tratar doenças agudas, o que é parcialmente verdadeiro porque muitas pessoas que se dirigem às urgências não têm doença aguda grave, mas como a pessoa está em sofrimento não tem capacidade para discernir se a sua doença é grave ou não. E há ainda outro fator: com populações mais idosas, há a expectativa de que possa haver internamento e por isso vão logo ao hospital“, arrisca Leal da Costa.
Também a “aposta” do economista especialista em saúde Pedro Pita Barros “vai para a conveniência de ter tudo feito num só sítio e para o desconhecimento dos horários alargados”.
Na mesma frequência de onda, Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, afirma que “a procura da urgência hospitalar tem que ver com o facto de procurarem um sítio que resolva todos os problemas”. “Estas pessoas vão às urgências muitas vezes porque não têm alternativa e porque acreditam que é o melhor serviço. Além disso, há desconfiança em relação aos cuidados de saúde primários, que vem reduzindo, mas que ainda existe”, afirma.
“Desconfiança” é uma das palavras também utilizadas por Leal da Costa. O ex-ministro afirma que os portugueses “ainda não adquiriram confiança suficiente nos cuidados primários” e que “não se pode imputar a culpa à imagem do SNS, mas antes ao imaginário” das pessoas. “Perdeu-se a tradição de confiar no médico e no seu estetoscópio. Hoje em dia passou-se a perceção para o cliente que na ausência de meios complementares de diagnóstico [exames] sofisticados não é possível tratar o doente. E isso não é verdade. Na maior parte dos casos o diagnóstico ainda pode ser feito com auscultação, palpação e olhando à história clínica do paciente. Mas o utente acha que foi mais bem atendido numa urgência por fazer exames que, muitas vezes, são desnecessários”, garante Leal da Costa.
João Rodrigues, presidente da Associação Nacional de USF também admite que é “preciso criar um clima de confiança nos cuidados de saúde primários” e que isso passa muito pelo Governo. “É cultural. Os portugueses foram ensinados a ir ao serviço de urgência. As pessoas veem permanentemente visitas dos senhores ministros aos hospitais. O serviço promovido é o hospital. Só este fim de semana o senhor ministro visitou, pela primeira vez, um centro de saúde. Falar apenas não chega.”
Luís Lopes, do Hospital de São João, confirma que “tradicionalmente a população procura os Serviços de Urgência como forma preferencial de resolver alterações agudas do estado de saúde, mesmo não sendo situações que só por si justificassem recurso a um serviço de urgência” e que os idosos com doenças crónicas e fragilizados também contribuem para essa afluência. Mas não deixa de referir que “a isto não é alheia alguma incapacidade de resposta dos cuidados de saúde primários não só às situações “urgentes”, mas sobretudo no apoio a esta população de doentes crónicos. Muitos destes doentes crónicos, que sofrem agudizações, das suas patologias só encontram resposta adequada nos serviços de urgência dos hospitais.”
Também no Garcia de Orta, em Almada, “cerca de 50% dos doentes (pulseira verde ou azul) recorrem às urgências hospitalares, na sua grande maioria, por situações resolúveis junto das equipas de saúde familiares, mas tem sido difícil convencer os utentes a utilizar essa disponibilidade em primeiro lugar”.
Reagindo às críticas e à observação comum de “para quê ir ao centro de saúde se depois o meu médico me manda para as urgências”, João Rodrigues dá um exemplo: “Imagine um doente com sintomas gripais que se arrastam há uma semana. Ele chega à minha consulta e eu peço um hemograma e um raio-X ao tórax. No próprio dia eu já consigo ter esses resultados com recurso aos convencionados. Sim, isso é possível, excetuando alguns casos. Mas só esses exames não chegam e entendo que o doente precisa de ser mais bem estudado, a única solução que me resta é enviá-lo para a urgência porque se o enviar para a consulta externa, que seria o suficiente para perceber o problema, vai demorar não sei quanto tempo e não lhe vão fazer logo os exames também”.
E é desta forma que o representante das USF aproveita para criticar o modo como os hospitais funcionam, deixando uma pergunta, com resposta agrafada: “Porque é que o hospital não aposta numa maior acessibilidade às consultas externas e aos exames das 8h00 às 20h00? Porque o financiamento está centrado nas urgências. E assim se vai sobrecarregando as urgências. Tudo está voltado para a urgência hospitalar.”
Centros de saúde abertos até mais tarde. Será que resolve?
Continuando na busca de uma resposta para o problema das urgências hospitalares, Alexandre Lourenço aponta o facto de os centros de saúde estarem abertos apenas até às 20h00 como outro dos motivos que desvia as pessoas para as urgências hospitalares. “Os cuidados de saúde primários estão muito desenhados em função das necessidades do prestador e não dos doentes. Hoje as famílias não têm disponibilidade para ir ao médico durante o dia”, defende, rematando que se o prolongamento de horários posto em marcha em muitos centros de saúde, neste período de frio, fosse constante, as pessoas estariam a par disso e provavelmente iriam mais aos cuidados primários.
Mas o médico João Rodrigues, presidente da Associação Nacional de USF, não podia estar mais em desacordo. E começa por se defender recuando na linha do tempo. “Há 10 anos os cuidados de saúde primários funcionavam 24 horas por dia, oito dias por semana, em todos os concelhos do País. E qual era a notícia? Urgências hospitalares entupidas”, recorda.
Quem representa os utentes também sublinha que não basta abrir os centros de saúde mais horas. “O problema é que os utentes não têm a resposta necessária nos centros de saúde. Agora, só abrir mais horas não chega. Têm de estar bem equipados. Se tivermos uma rede de cuidados de saúde primários bem montada com tudo a funcionar é evidente que os utentes não vão para o hospital”, argumenta Manuel Villas Boas, porta-voz do Movimento de Utentes dos Serviços de Saúde, lembrando também que “ainda há muita gente sem médico de família”.
Valendo-se da experiência que tem, Leal da Costa não hesita em avançar com dados: “Há dois grandes momentos de afluência às urgências e ambos diurnos. Um é logo pela manhã porque as pessoas passaram mal a noite e o segundo grande pico é depois do dia de trabalho. Tradicionalmente, durante a madrugada a procura tende a diminuir, mas, como houve uma acumulação de doentes durante o dia, adensa-se”, garante o ex-governante. E é nessa realidade que se baseia para defender que “é suficiente os centros de saúde estarem abertos até às 20h durante o ano. E só em picos de procura até à 22h00 ou 24h00, dependendo da situação”.
Plano de contingência está em marcha
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Além do alargamento dos horários dos centros de saúde, o plano de contingência prevê ainda a possibilidade de contratar mais profissionais, adequar o espaço afeto às consultas em urgência, tanto abrindo camas suplementares, como expandindo a área de internamento para áreas de consulta externa. Poderão também ser adiados cuidados não urgentes, assim como cirurgias não urgentes programadas e devem ser aceleradas altas de casos sociais. Os gestores hospitalares têm também o aval para solicitar o reencaminhamento de doentes transportados pelo INEM para outros hospitais menos lotados que é o que, por exemplo, o Amadora-Sintra tem feito e o Garcia de Orta, em Almada, também fez no dia 2 de janeiro.
O Observador questionou alguns hospitais para confirmar em que período (manhã, tarde, noite ou madrugada) davam entrada mais doentes nas urgências. No caso do Hospital de Santa Maria, fonte oficial respondeu que se assiste a uma maior entrada de doentes na urgência no período entre as 10h00 e as 20h00. No Garcia de Orta, em Almada, a maior afluência regista-se entre o meio dia e a meia noite. E no São João, no Porto, com mais detalhe, Luís Lopes, diretor da Unidade Autónoma de Gestão da Urgência e Medicina Intensiva, revelou que “70% das admissões acontecem entre as 8h00 e as 20h00. No período das 24h00 às 8h00 deram entrada cerca de 13,5% dos doentes que recorreram ao serviço”.
Estas respostas chegam numa altura em que muitos centros de saúde já estão a funcionar até mais tarde, na tentativa de aliviar a pressão sobre as urgências hospitalares e “minimizar os efeitos negativos do frio extremo e das infeções respiratórias”. No âmbito do Plano de Contingência para Temperaturas Extremas Adversas, de Norte a Sul do país, vários são os centros de saúde que já estão abertos para lá das 20h00 — até às 22h00 ou 24h00 — consoante as necessidades. Muitos desses também estão a funcionar ao fim de semana, com horários muito distintos: desde os que fecham às 14h aos que estão a funcionar até às 24h; uns só aos sábados, outros ao sábado e ao domingo. E os horários poderão ser adaptados à procura até ao final de março.
É para já difícil avaliar o impacto que esta medida está a ter ou terá na procura pelas urgências hospitalares. Mas no passado o efeito não foi tão positivo quanto se gostaria, como atesta ao Observador Leal da Costa. “Abrimos os centros de saúde em horário alargado, gastámos mais, e as pessoas continuaram a não ir. Preferem fazer quilómetros para ir para a fila de um serviço de urgência. Abrem-se centros de saúde até mais tarde e as urgências continuam cheias.”
Como desviar as pessoas das urgências hospitalares?
Esta sim é a pergunta de um milhão de dólares. Pelos argumentos apresentados pelos especialistas contactados pelo Observador dá para adivinhar que alargar simplesmente o horário de atendimento dos centros de saúde não é uma cura milagrosa.
2,3 milhões de portugueses ligaram para a Saúde24 em 10 anos
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Em 10 anos de existência, a Linha Saúde 24 já atendeu mais de sete milhões de telefonemas feitos por mais de 2,3 milhões de portugueses, que ligaram em busca de um conselho de saúde. E, segundo informação disponibilizada esta semana pela DGS, a Saúde24 apenas encaminhou 20% dos cidadãos para os serviços de urgência. A 30% dos cidadãos foram apenas recomendados autocuidados. A verdade é que há ainda muito a evoluir nesta matéria. Apesar dos apelos reiterados, por parte dos responsáveis da saúde, à utilização deste serviço, mais de três em cada cinco portugueses nunca ligou para a Saúde24 e os que ligam são sobretudo os mais novos e das grandes cidades do litoral. Pessoas com mais de 65 anos “representam atualmente 17% do total dos utilizadores”.
João Rodrigues defende que “a primeira grande intervenção que deve ser feita prende-se com uma campanha de sensibilização. Se o senhor ministro da Saúde estiver com suspeita de gripe vai onde? Ao hospital. E porquê? Porque não confia nos cuidados de saúde primários”. Além do mais, “todo o cidadão inscrito numa USF deveria saber que tem direito a ter resposta no próprio dia, numa qualquer situação de doença aguda, que se caracteriza por um mau-estar geral, febre, entre outras queixas”.
Também uma linha de atendimento que funcionasse das 20h às 22h ou às 24h nos centros de saúde poderia ser uma boa medida, defende o médico. “Os utentes teriam acesso a um número de telefone para o qual poderiam ligar e seriam atendidos por um médico ou um enfermeiro que os conheceriam.”
Leal da Costa alinha com João Rodrigues. “Uma linha de apoio seria um ótimo instrumento. A Saúde24 é segura, mas nunca terá capacidade suficiente para atender toda a gente e as pessoas aborrecem-se e desligam. Além do mais a pessoa ficaria muito mais contente e sentir-se-ia muito mais segura se pudesse contactar a sua equipa de saúde”, defende o ex-governante.
Numa visão mais radical, o representante das USF sugere outra medida para travar o fenómeno da afluência às urgências hospitalares. “Todos os cidadãos que vivem em Portugal e que têm médico de família só deveriam poder ir a uma urgência hospitalar se fossem referenciados pelo seu médico ou equipa de saúde familiar, pela Saúde24 ou pelo INEM. As portas deveriam estar fechadas, durante a semana e das 8h às 20h, para os cidadãos com médico de família que não fossem referenciados.”
Já Leal da Costa aponta uma solução menos drástica: “Eventualmente rever o princípio do pagamento da taxa moderadora nos cuidados de saúde emergentes, diferenciando o pagamento pelo grau de prioridade”. O mesmo é dizer que os doentes com as pulseiras brancas, azul ou verde pagariam mais do que aqueles que recebessem uma pulseira tingida de amarelo para cima, o que poderia servir de “desincentivo” às idas desnecessárias às urgências hospitalares.
Ainda assim, o ex-governante não acredita em milagres. “O Governo tem feito um esforço no sentido de fazer as pessoas procurarem o centro de saúde. A verdade dos factos é que isto vai levar anos a alterar. Mesmo no Reino Unido, que tem tradição forte de cuidados de saúde primários, ou até em França ou na Holanda, as pessoas continuam a ir aos serviços de urgência”.