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As perguntas
Quais as razões por que, em pleno século XXI, o Portugal democrático, no qual, mal ou bem, nos habituámos a sobreviver, continua exactamente naquele mesmíssimo lugar que o país ocupa desde há séculos – de que a fecalíssima expressão “cauda da Europa” é o sobrenome?
Não deveria, afinal, uma envelhecida e envilecida nação que desde os anos oitenta do século passado vive a reboque da dinâmica dos subsídios da União Europeia, após incontáveis milhões de “fundos estruturais” e de sonorosos e redentores programas de reforma política e desenvolvimento económico, ter já beneficiado, um módico que seja, de algum progresso estável e duradouro?
Porque é que todos os dias nos parece que nos transformamos, cada vez mais, num Estado e num povo falhados, condenados ao subdesenvolvimento e à pobreza e miséria? Por que razões, apesar de transformações evidentes em algumas infra-estruturas essenciais, apesar de tímidas, embora reversíveis, alterações na estratificação social, apesar de algumas melhorias globais em certos indicadores de qualidade de vida, Portugal continua a ser incapaz de deixar definitivamente para trás o seu atraso endémico, um Portugal inapto para se afirmar no presente e se projectar no futuro, incapaz de fazer valer um know-how próprio nos domínios da ciência, da tecnologia, da economia, da cultura, da educação, incapaz sequer de cultivar os principais valores da vida cívica moderna: liberdade, civilidade, tolerância?
De onde nos vem, afinal, aquele arcaico e imorredoiro fundo moral iliberal, aparentemente invencível, que faz de nós uma sociedade manifestamente incapaz de se pensar e de se renovar, eternamente imatura e insegura, medrosa, triste, fatalista, messiânica, cativa da inércia e do imobilismo, comprovadamente inapta para criar e distribuir de modo equilibrado a riqueza, uma sociedade – não obstante as colossais somas de dinheiro entretanto gasto e a propaganda diária de significado contrário – com níveis baixíssimos de instrução e de qualificação, uma sociedade umbilicalmente dependente do clientelismo, do compadrio, do empenho e da cunha oportunos, presa de uma anquilosada partidocracia rotativista e de uma venalidade e incivismo de múltiplos rostos?
Por que persistem, na sociedade portuguesa contemporânea, exactamente os mesmos atavismos do passado: a falta de capacidade de iniciativa dos indivíduos, a menorizante e abjecta dependência da família, da parentela, do clã, da Igreja, do partido, da Fundação, do Estado? Qual a razão para, em… 2023, persistir em Portugal uma cultura política sem autênticas raízes democráticas, fundada numa relação pré-cívica com a lei, num penoso e sofrível desamor pela liberdade, no desprezo bárbaro do bem comum, na sempiterna falta de previsão e de organização, na proverbial incúria e desleixo no que toca à observância das precauções mais elementares, com a autoridade e o comando públicos sistematicamente mal definidos na hora de começar uma qualquer empresa comum – sempre tarde e a más horas, como é hoje o caso com a mal parida Jornada Mundial da Juventude, como foi ontem o caso com os incêndios e com as cheias (e um ror de eteceteras), permanecendo actualíssima aquela observação de um Salazar já entrado na idade segundo a qual «até quando se organizam festas para divertir os homens devemos fazê-lo com seriedade»?
De forma a tentar responder a estas recorrentes e martirizantes perguntas, socorro-me das obras de alguns dos nossos historiadores mais finos e também de alguns conhecidos livros de impressões sobre Portugal que vários estrangeiros de renome (flamengos, franceses, britânicos, alemães, suecos e italianos) escreveram desde o século XVI ao século XX em viagens e estadias que fizeram em Portugal. Cotejarei sucintamente umas e outros, de modo a apurar, em séries temporais longas, o que simplificadamente se poderia chamar o denominador comum do “ser português” – deixando para trás os redutores e superficiais “antes” e “depois” de um qualquer acontecimento histórico pátrio, por muito disruptivo e descontinuador que o queiramos conceber, o mais recente dos quais é, naturalmente, a Revolução de 25 de Abril de 1974. Apelo humildemente à benevolência dos leitores, para que desconsiderem a hipótese de com estes testemunhos estarmos apenas diante de meras especulações de estrangeiros interessados, tendenciosos e maledicentes ou diante de “velhos do Restelo” ou portugueses ressentidos. Muito pelo contrário, estamos face à dolorosa constatação – num eixo temporal que cobre praticamente quatro séculos de depoimentos fundados no contacto directo com a realidade e a experiência portuguesas – das dificuldades e dos limites do processo de desenvolvimento e de modernização da sociedade portuguesa. O estudo e a ponderação do olhar dos outros sobre nós, a forma, enfim, como os outros nos vêem e nos descrevem, será cotejada com o que sucessivamente temos vindo a dizer ou continuamos ainda a dizer de nós mesmos.
A estrutura profunda do modo de ser português
Por que razão perguntar hoje pela estrutura profunda do modo de ser português? A esta pergunta respondemos com a evocação de umas palavras de Antero de Quental que, nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos (1871), observa o seguinte: «As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história”.
Dez anos mais tarde, em 1881, Oliveira Martins, em Portugal Contemporâneo, chamava ao país «o enfermo do Ocidente». Eis como ele caracteriza os traços dessa enfermidade: «Com efeito, a educação de três séculos tinha feito de Portugal um povo fanático, violento, apático, intrigante, vil e fraco, à maneira dos povos do Oriente. A comparação, talvez humorística, é rigorosamente verdadeira. A uma demagogia iluminada, ou apostólica, de um catolicismo semelhante às loucuras religiosas orientais; às classes directoras compostas de aventureiros sem nobreza e de parasitas beatos e idiotas; a uma burguesia nula, a uma aristocracia senil, a um clero tornado uma casta proprietária, e a uma plebe miserável, cretinizada, fanática, mendiga: junte-se a violência tenaz e a fúria surda do temperamento português, tão semelhante ao turco, e deve reconhecer-se que a comparação é lúcida».
Sem querer abusar da paciência do leitor, recordo em seguida algumas palavras de Silva Cordeiro na sua ainda hoje actualíssima obra A crise em seus aspectos morais (1896), cujo subtítulo, significativamente, é Introdução a uma biblioteca de psicologia individual e colectiva. Comparando o Portugal de Seiscentos com o Portugal de Oitocentos, Silva Cordeiro observa o seguinte: «É sempre a mesma vaidade exterior no quixotismo das frases, esta indolência de fibra muscular, o eterno amanhã, o mesmo culto dos ouropéis de luxo, o mesmo sestro de preferir o mono estrangeiro, bobeche caro de latão e vidrilho, à prata sólida da casa, a mesma imbecilidade prática para tudo quanto exija firmeza de longo plano, a mesma afectividade doentia e volúvel de opinião, a mesma crença no fatalismo, herança porventura da linfa moçarábica, enfim, esta incapacidade de esforço igual e contínuo…»
Juízos e pareceres de alguns estrangeiros de visita a Portugal
Tomarei em seguida apoio no grande humanista flamengo do século XVI, Nicolau Clenardo, que esteve entre nós cinco anos, chamado por D. João III como professor do infante D. Henrique. Foi ele amicíssimo do grande Damião de Góis e colega de André de Resende, tendo leccionado nas universidades de Lovaina, Paris e Salamanca, sendo que o (futuro) cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira defendeu em 1918, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a sua tese de doutoramento sobre este vulto da cultura europeia.
Clenardo, com excelente faro, sintetizou do seguinte modo os principais defeitos dos portugueses: repugnância pelo trabalho, mania nobiliárquica e facilidade de costumes. Entre os sinais desta «facilidade dos costumes» está, segundo Clenardo, a existência de uma certa promiscuidade entre os senhores, a criadagem e os próprios escravos, o que aparentemente desmentirá a prosápia e o snobismo dos senhores, sempre doentes da «mania nobiliárquica» e da «limpeza de sangue». Por sua vez, de visita a Portugal entre 1798 e 1802, um viajante sueco, o pastor Carl Israel Ruders, observa o seguinte: «Em Portugal a diferença de posição coloca os homens a grande distância, embora a igualdade entre eles pareça quase completa. Os nobres têm grandes privilégios e direitos. Raras vezes mantêm relações com pessoas que não pertençam à sua casta, mas com os criados costumam ser muito condescendentes. Não é raro ver-se à mesma janela condessa e criada, em atitude familiar».
Os “fumos da Índia” e o horror ao trabalho manual
Ora, a este respeito Clenardo não discrepou, no essencial, do que os mais lúcidos historiadores portugueses disseram da sua própria grei. Clenardo, aliás como mais tarde Alexandre Herculano, intuiu com precisão as consequências nefastas da escravatura na degradação dos costumes da nação: «Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas que portugueses livres de condição. Raro se encontrará uma casa, onde não haja pelo menos uma escrava destas […] Os mais ricos têm escravos de todos os sexos, e há indivíduos que fazem bons lucros com a venda de escravos novos nascidos em casa. Chega-me a parecer que os criam como quem cria pombas para vender, sem que se ofendam com as ribaldias das escravas».
Com a pimenta («lume dos olhos de Portugal») e, de maneira geral, com aquilo que se designou como os «fumos da Índia», afluíam à capital do reino, Lisboa, por via das descobertas e da colonização, um número elevadíssimo de escravos que haveria de modificar em radicalidade e profundidade a relação das elites portuguesas com o trabalho, nomeadamente com o trabalho manual, a partir de então considerado vil e degradante. A verdade é que houve um tempo histórico matricial da «soberanização e centralização do Estado português», grosso modo da expansão até 1580, o tempo dos “fumos das Índias”, em que os portugueses fizeram do trabalho em geral, e do trabalho manual em particular, um sinónimo de vileza e escravatura. Em suma, tínhamos demasiados escravos e, em Lisboa, cerca de um quarto da população seria constituída por escravos. Viajantes tão distintos quanto o italiano Filippo Sassetti, o flamengo Jan Taccoen, o alemão Jerónimo Münzer, cunharam, para se referirem aos inúmeros «escravos negros e acobreados» que pululavam por Lisboa, a metáfora do «tabuleiro de xadrez», assinalando com ela que a população das cidade se compunha de quase tantos negros como de brancos. Ora, neste particular não há como refutar que ainda hoje estamos a pagar um preço muito alto por esta ignominiosa tara (como se pôde ver no recente incêndio num prédio da… Mouraria, em que morreram dois dos vinte imigrantes aí alojados em condições degradantes e sub-humanas. Foi racismo de Estado “justificado” por razões de Estado).
A respeito da riqueza passageira que teve o condão de destruir os «hábitos de trabalho», ouçamos de novo a já citada conferência de Antero de Quental no Casino Lisbonense: «Do espírito guerreiro da Nação conquistadora herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. Os netos dos conquistadores de dois mundos podem, sem desonra, consumir no ócio o tempo e a fortuna, ou mendigar pelas secretarias um emprego: o que não podem, sem indignidade, é trabalhar! Uma fábrica, uma oficina, uma exploração agrícola ou mineira, são coisas impróprias da nossa fidalguia. Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos de estrangeiros, que com elas se enriquecem e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores. É o fruto que colhemos duma educação secular de tradições guerreiras e enfáticas».
Um século e meio antes, em 1729, já o britânico William Playfair averbara no seu caderno de notas o que mais tarde haveria de ser um report diplomático: «Os portugueses parecem-se com aqueles homens que, desconhecendo as artes úteis da vida, procuram coisas raras e pedras preciosas que viram poderem trocar-se por aquilo que, em última análise, é muito mais valioso, os objectos de necessidade corrente. Não é para seu uso próprio que eles trazem das quatro partes do mundo o que é mais valioso e mais raro, ouro, pérolas e até diamantes, juntamente com as melhores especiarias de África, América e Oriente. Estes últimos produtos estão reservados aos homens [deduz-se que de outras nacionalidades] que aprenderam a salgar peixe, a semear trigo, a fabricar objectos necessários e que gozam o luxo da vida».
A opção pelo trabalho escravo e a assumpção generalizada de que o trabalho, no fundo, significava apenas escravatura e exploração económica, fizeram-se pagar de maneira irreversível no quotidiano dos portugueses durante os séculos que se seguiram à “Tenda da Pimenta”, a designação por que era conhecido o chorudo negócio das elites portuguesas no tempo de D. Manuel. George Buchanan, um humanista escocês que passou por Coimbra na época eufórica em que afluíam ao reino de Portugal as inesgotáveis riquezas da índia, alertava já para a fragilidade do «Grande Rei de muitos nomes» e do seu reino, no seguinte poema em latim (transcrito por Manuel Gonçalves Cerejeira). Bem vistas as coisas, começava já então a fragilidade do nosso Estado e a sua crónica e “estrutural” insolvência financeira:
«Se porém algum dia, ao Rei dos nomes,
A guerra ou o mar, em fúria s’inflamando,
Lhe fecharem a tenda da Pimenta,
Bem pode alimentar-se dessa fama
Mercadejada em terras d’além mar!
Fará pesadas dívidas,
Ou morrerá de fome.»
Não foi, uma vez mais, de forma muito diferente que em 1871 Antero de Quental abordou a mesma questão: «Tenta-se introduzir o trabalho servil nas culturas, com escravos vindos de África! Felizmente não passou de tentativa. Era a transformação de um país livre e civilizado numa coisa monstruosa, uma oligarquia de senhores de roça! A barbaridade dos devastadores da América, transportada para o meio da Europa! Com estes elementos o que se poderia esperar da indústria? Uma decadência total. Não se fabrica, não se cria: basta o ouro do Oriente para pagar a indústria dos outros, enriquecendo-os, instigando-os ao trabalho produtivo, e ficando nós cada vez mais pobres, com as mãos cheias de tesouros! Importávamos tudo: de Itália, sedas, veludos, brocados, massas; da Alemanha, vidro; de França, panos; de Inglaterra e Holanda, cereais, lãs, tecidos. Havia então uma única indústria nacional… a Índia! Vai-se à Índia buscar um nome e uma fortuna e volta-se para gozar, dissipar esterilmente. A vida concentra-se na capital. Os nobres deixam os campos, os solares dos seus maiores, onde viviam em certa comunhão com o povo, e vêm para a corte brilhar, ostentar… e mendigar nobremente. O fidalgo faz-se cortesão: o homem do povo, não podendo já ser trabalhador, faz-se lacaio: a libré é o selo da sua decadência».
Regressemos às nefandas consequências da escravatura na degradação dos costumes e do viver em comum – a que Clenardo chamara «facilidade de costumes». Reportando-se ao estado do país sob o reinado de D. João V, Oliveira Martins anota o seguinte na sua História de Portugal: «As pretas, que são fecundas, inçavam as casas de negrinhos mulatinhos, vivos como demónios, chocarreiros, ladinos: quem não gostaria deles? E, depois, não eram bem gente, não havia receios com esses animalinhos. Por isso tinham todas as intimidades, e os mimos das meninas, que às vezes apareciam grávidas. O preto, o mulato, submisso, escravo mudo, era o confidente dos amores, e por vezes o amante – por desleixo, fraqueza, ou requinte sensual dos temperamentos ardentes. […] Dos conventos dizia um observador serem lugares arriscados para os maridos depositarem as mulheres; e dos frades acrescentava que pareciam bem, sobretudo – Pintados. […] A religião e a Índia davam ocupação aos bastardos que abundavam; e os escravos, a devoção e a sífilis eram três lepras que tudo roíam. As mulheres dos ministros e dos juízes vendiam a justiça e os empregos; eram já o melhor empenho».
Mas foi Arthur William Costigan, um militar britânico, quem nos deixou a definição mais instrutiva de «empenho» no seu livro sobre Portugal publicado em 1787: «Um empenho é um acto pelo qual uma pessoa, ligada por amizade ou por íntimo conhecimento com uma outra, revestida de poder ou de autoridade, a solicita vivamente a favor de uma terceira (que é geralmente uma pessoa indigna, uma nulidade), para que lhe obtenha (a despeito da razão e da justiça) qualquer favor que ela não merece ou que desvie dela a imposição de penas, sejam quais forem, em que ela possa ter incorrido por determinação do tribunal ou a que tenha sido condenada por lei».
A Inquisição. “Não existem livros nem bibliotecas nas casas dos nobres portugueses”
Em suma, no século XVI o afluxo de dinheiro e de riqueza fez prosperar, em maior ou menor grau, a casa real, nobres e plebeus, fomentou o luxo e a ostentação, multiplicou criminosamente os escravos e a criadagem, produziu novos-ricos e aumentou os cabedais dos que já possuíam algo ou muito de seu. No entanto, não se acumulou nem se investiu com um desígnio estratégico, não se educou nem se formou uma população com preocupações e objectivos empreendedores, não se reformaram as estruturas produtivas agrícolas, nem se consolidaram práticas comerciais dinâmicas e inovadoras. A nobreza e a fidalguia, mesmo se usufruíam, directa ou indirectamente, dos negócios das índias e brasis, mantiveram-se extremamente provincianas e ignorantes («É muito raramente que se vê uma sala provida de livros», exclama, espantado, o viajante alemão Johann Heinrich Friedrich Link). Esse mesmo preconceito contra o valor e a dignidade do trabalho, erro fatal, levava a nobreza e a fidalguia a desprezar os chamados mercadores ou «homens da nação». E aqui nunca é demais recordar que o monstro da Inquisição perdurou durante três séculos, isto se tomarmos à letra as datas oficiais da sua instituição (1536) e extinção (1821).
Do Padre António Vieira a D. Luís da Cunha, de Ribeiro Sanches a Alexandre Herculano, de Antero de Quental a António Sérgio, de António José Saraiva a Elias Lipiner, a Inquisição é vista como a principal responsável pelo sufoco do impulso transformador quinhentista e pela estagnação e miséria económica, científica e cultural do país, sobretudo nos séculos XVI e XVII, decisivos, como se sabe, para a modernização dos países reformados do norte da Europa. O exilado Cavaleiro de Oliveira, queimado em efígie num auto-de-fé já no tempo do Marquês de Pombal, escreveu do seu desterro de Londres o seguinte: «Primeiro é preciso resgatar os portugueses do jugo nefando do Santo Ofício. Vai nisso a salvação da nação, pois que ciências e artes a par e passo do progresso, civilidade e civilização, um comércio próspero, uma autoridade cônscia das suas funções, uma religião, purgada de idolatria, enfim, portugueses ilustrados e conscientes, não poderá haver enquanto perdure a monstruosa jurisdição». E o que nos diz, a este respeito, Antero de Quental? Ouçamo-lo: «E a nós, portugueses e espanhóis, como foi que o catolicismo nos anulou? O catolicismo pesou sobre nós por todos os lados, com todo o seu peso. Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional e necessário: a delação é uma virtude religiosa: a expulsão dos judeus empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura em todo o Sul da Espanha: a perseguição dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais: a Inquisição passa os mares, e, tornando-nos hostis os índios, impedindo a fusão dos conquistadores e dos conquistados, torna impossível o estabelecimento de uma colonização sólida e duradoura: na América despovoa as Antilhas, apavora as populações indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo de morte: o terror religioso, finalmente, corrompe o carácter nacional, e faz de duas nações generosas hordas de fanáticos endurecidos, o horror da civilização».
Sobre a Inquisição portuguesa caracterizada como uma «sangria para o corpo do Estado», pronunciou-se também D. Luís da Cunha no seu Testamento Político: «A insensível e crudelíssima sangria que o Estado leva, é a que lhe dá a Inquisição, porque jornalmente [diariamente] com medo dela, estão saindo de Portugal com os seus cabedais, os chamados cristãos-novos. Não é fácil estancar em Portugal este mau sangue, quando a mesma Inquisição o vai nutrindo pelo mesmo meio que pretende querer vedá-lo, ou extingui-lo. E já o célebre Fr. Domingos de S. Tomás, da ordem dos Pregadores e deputado da Inquisição, costumava dizer, “Que assim como na Calcetaria havia casa em que se fazia a moeda, assim havia outra no Rossio, em que se faziam Judeus, ou “cristãos-novos”, porque sabiam como eram processados os que tiveram a desgraça de ser presos, e que em lugar de se extinguirem, se multiplicavam. Vi também muitos papéis, assaz largos, em que se apontam os meios para se extinguir em Portugal o judaísmo, mas não vi algum em que se tratasse de acordar a utilidade temporal do reino com a espiritual da religião, que é todo o meu objecto».
Parasitagem do Estado
Passemos agora a alguns exemplos de parasitagem das funções de soberania do Estado português. Um francês, Charles Vogel, Attaché à la Direction du Commerce Extérieur, publicou em 1860 uma obra sobre Portugal e as suas colónias. Escreve ele, reportando-se àquele ínterim histórico que se segue à queda em desgraça do Marquês de Pombal: «Era o tempo em que os favoritos devoravam todos os recursos do Estado e da nação, retendo para os seus protegidos todos os ofícios civis e militares de alguma importância, servindo-se dos dinheiros públicos para custear o seu próprio luxo, tal qual uma multidão de existências parasitas, não sabendo senão parar e comprimir qualquer desenvolvimento das forças vivas do país; o tempo em que as pessoas da corte obtinham, sem dificuldade, para os seus próprios fieis de condição inferior, as condecorações e as ordens do reino recusadas a mais do que um servidor comprovado do Estado, sendo o povo esmagado por impostos». Vogel dá como exemplo de parasitagem do Estado português o facto de, durante os reinados de D. José e de D. Maria I, a Corte chegar a ter cerca de dois mil cavalos e mulas – quase o efectivo de toda a cavalaria do reino – que eram utilizados pelos nobres e outros privilegiados para se fazerem transportar na capital. Charles Vogel refere ainda as chamadas «moradias», rendas hereditárias pagas pelo Estado de que usufruíam famílias nobres arruinadas e decadentes – só suprimidas em 1822.
O desempenho dos ofícios do Estado, das comendas das ordens militares, dos senhorios, das tenças, estava integralmente capturado nas mãos de uma classe ociosa e decrépita, sem qualquer sentimento decente da noção de «serviço público», que impedia o desenvolvimento das virtudes típicas burguesas: a liberdade de empreender, o espírito de iniciativa, a vocação para o negócio, o sentido e o valor da poupança, o respeito e a valorização das profissões técnicas e manuais. Como judiciosamente observa Fernando Pereira Marques, numa obra a todos os títulos notável e que nos serviu de guia na vasta selva das causas do atraso de Portugal: «As grandes casas aristocráticas dependiam, regra geral, mais de comendas e tenças e dos bens da Coroa, do que da propriedade fundiária que exploravam indirectamente, ou dos rendimentos de outro tipo de património. Dependência esta que aumentava com o endividamento desses mesmas casas e que obrigava, muitas vezes, à mediação do Estado junto dos credores».
Os ofícios do Estado, socialmente prestigiados, são encarados como sinecuras e empregos seguros. António Manuel Hespanha, na sua obra As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal – Séc. XVII, identifica e descreve minuciosamente aquilo que ele designa como os privilégios corporativos do clero, da nobreza e de outros “estados” privilegiados, em suma, os privilégios dos corpos de oficiais (ou funcionários) do Estado. Referindo-se aos «privilégios jurisdicionais ou de foro» da corporação dos «desembargadores» (que inclui todo o elenco dos oficiais da casa real: Mordomo-Mor, Camareiro-Mor, Alferes-Mor, Meirinho-Mor, Reposteiro-Mor, Anadel-Mor, Monteiro-Mor, Copeiro-Mor, Aposentador-Mor, Coudel-Mor, Porteiro-Mor, Caçador-Mor, Almotacé-Mor, Vedor da Casa real e tutti quanti…), sublinha a extensão dos privilégios desta casta de funcionários: «Isenção de serviços, fintas, autorização para andar de mula, escusa de cargos de concelhos, presunção de verdade das suas declarações sobre soldadas de criados seus, isenção de jugada, escusa de tutorias, prioridade na atribuição de obreiros e servidores, isenção de aposentadoria e a prerrogativa que lhes permitia escolher o tribunal da corte e que obrigava a que tivessem de ser aí citados nas acções em que fossem réus».
De acordo com a força corruptora do que então se chamava «empenho» e hoje «cunha», o que conta é “estar sentado à mesa do orçamento”, pertencer a uma clientela, desprezando-se qualquer critério meritocrático na selecção e recrutamento dos servidores do Estado. A língua portuguesa consagrou uma das formas mais típicas deste tipo de venalidade com a expressão “deitar luvas”, como podemos verificar nesta passagem de Camilo Castelo Branco: «Eusébio Macário, quando ia para a mesa, foi chamado à guarda-roupa do genro, que lhe vestiu uma casaca nova com o hábito de Cristo na lapela. Uma surpresa exultante que poderia bestificá-lo se ele não tivesse uma constituição bem formada. O barão iniciava a nobilitação do sogro com 76$000 réis que lhe custara o hábito, 50 para o Estado e 26 de luvas para o Lobato, o seu procurador. O Mota Prego brindou a Eusébio Macário: – Que aquela insígnia da cavalaria representava merecimentos de serviços feitos à humanidade e à Pátria, ambas doentes; que o distinto farmacêutico era também um trunfo eleitoral, que ao mesmo tempo manipulava vesicatórios para os inchaços doentes do Tesouro».
Se no antigo regime imperava a venalidade dos cargos apoiada nos critérios da linhagem e da «limpeza de sangue», a partidarização e a politização que acompanharam a institucionalização do constitucionalismo e do liberalismo no século XIX acentuaram e deram novas características a estas práticas em todos os sectores da administração pública, incluindo a justiça, o exército e a Igreja. O Estado clientelar engrossou desmedidamente e tornou-se num instrumento de hegemonia política ao sabor da alternância das facções partidárias, aquilo a que um pouco mais tarde, já com o declínio da monarquia, se haveria de chamar “rotativismo”, numa época em que os partidos políticos já tinham ganho uma maior organicidade e prevalência na sociedade portuguesa.
A corrupção do Estado pelos particulares chegou a um ponto tal que ela faz agora com que os homens sérios sintam repugnância pela exercício e prática dos negócios públicos. Teófilo Braga, num escrito de 1894, sublinha o clima geral de indiferentismo e lassidão então instalado: «Com relação à nacionalidade portuguesa, tristes apreensões nos assaltam […], estamos em vias de uma decomposição lenta, de uma desagregação dos elementos sociais manifestada pelo indiferentismo de todos pelas coisas públicas, pela falta de virtudes cívicas, pelo egoísmo na forma mais revoltante. Ninguém pensa em servir o seu país, ninguém estuda, ninguém se aperfeiçoa, ninguém cumpre o seu dever; e contudo esta sociedade subsiste pela inércia».
Foi o que Guerra Junqueiro chamou, em 1898, o “clima de Finis Patriae”, que ele superiormente resumiu como se segue:
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom…»
«Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo».
«Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes de, na hora do desastre, se sacrificar à monarquia, ou meia libra, ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro, como duas metades do mesmo zero… donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro …»
«Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre – como da roda duma lotaria. A justiça ao arbítrio da política, [hoje formulada no slogan “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”] torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas».
«E se juntarmos a isto um pessimismo canceroso, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares – são tão bons uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc. – teremos em sintético esboço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários».
Este Estado completamente dissoluto e corrupto, junto do qual se satisfazem os piores vícios de uma sociedade resistente à mudança e obstinadamente avessa a mudanças e reformas, é superiormente descrito por Eça de Queiroz nas Farpas: «Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia da sua tranquilidade. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo a ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade. Resulta uma pobreza geral. […] Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia. Esta pobreza geral produz um aviltamento na dignidade. Todos vivem na dependência: nunca temos por isso a atitude da nossa consciência, temos a atitude do nosso interesse. Serve-se, não quem se respeita, mas quem se vê no poder».
Finalmente, o testemunho de Ribeiro Sanches, esse ilustre beirão nascido católico numa família de cristãos-novos de Penamacor, que se viu obrigado a fugir da Inquisição e a refugiar-se em Londres, onde se fez circuncidar, o estrangeirado que viveu na Rússia durante 16 anos e que morrerá em Paris, deixando uma obra vasta e notabilíssima, reflectiu um dia sobre as dificuldades de Portugal em se reformar do seguinte modo: «As dificuldades que tem hum reyno velho para emmendarse: incómodos sucederiam a todo aquele Legislador que de um Reyno Velho, instituído com as Leis do Fanatismo, com as leis sem serem fundadas na conservação e amor dos súbditos, leis sem objecto algum para aumentar a população, sem objecto para defesa geral do Estado, quisesse de um jacto reformar este cadaveroso Reyno, e formar nele um Novo. Mas esse Legislador haverá de pensar averiguar primeiro qual devia ser o primeiro e principal objecto que deverão ter as leis do seu Reyno». E o nosso médico cristão-novo estrangeirado concluía então com algumas sugestões sensatas, mas, pelo que vemos ainda em 2023, aparentemente inalcançáveis: «conservar-se pelo sustento», «pelo trabalho», «pelo comércio».
As respostas
Respostas? Mas que respostas? Ou bem que elas já foram todas dadas ou bem que não se conhecem. Mais palavras para quê? É Portugal, um “problema estrutural”.
António Bento é professor de Ciência Política na Universidade da Beira Interior. Integra como investigador o PRAXIS — Centro de Filosofia, Política e Cultura e o Centro de Estudos Judaicos.
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