A menos de cinco meses das eleições legislativas, e depois da tempestade interna, o Bloco de Esquerda quer apresentar-se aos portugueses como um partido que “fala a verdade” sobre a Europa, o fim da austeridade e as metas orçamentais: são impossíveis, não são para cumprir, e todos sabem disso, diz Catarina Martins em entrevista ao Observador. Negociar tem de ser a palavra de ordem e no momento em que deixar de ser possível fazê-lo, a União Europeia acaba. Porque essa é uma questão de vida ou morte da democracia da própria União, diz.
Critica duramente a chantagem, dos media inclusive, em torno de soluções únicas de governação, que bloqueiam, segundo diz, a passagem dos desiludidos da abstenção para os restantes partidos mais afastados do centro. E tem um desejo: que a política deixe de se fazer em torno de dados trimestrais, mas sim em torno dos problemas concretos da vida das pessoas.
Começávamos pela Grécia, a última resolução política do Bloco de Esquerda fala de desobediência face ao Conselho Europeu, Eurogrupo, e Comissão Europeia. Não é ser mais papista que o Syriza?
Não. Mas se calhar é preciso falar das duas coisas brevemente para perceber que não são exatamente o mesmo. O que o Bloco de Esquerda assume perante a sociedade portuguesa é que não vai assumir metas orçamentais que são uma imposição europeia. E é bom perceber que nenhum partido as vai cumprir, porque são impossíveis, e toda a gente sabe que são impossíveis. O problema está em saber quem é que é capaz de assumir essa impossibilidade e dizer à partida o que vai fazer com ela.
A pergunta não é tanto como é que é possível fazer essa desobediência na Europa, a pergunta é mais se nós toleramos que as escolhas políticas continuem a ser feitas com base numa mentira, dizendo que é possível cumprir metas apenas para ser eleito com base em programas que dizem que aliviam a austeridade sabendo que já têm lá a semente para mais austeridade, porque essas metas são impossíveis.
A Grécia está numa situação bastante pior do que a portuguesa neste momento, o ponto de partida era o mesmo e no entanto não está a conseguir convencer a União Europeia ou a negociar com a União Europeia uma solução que preencha os espíritos de ambas as partes. Porquê?
Nós estamos a viver na União Europeia um momento em que se está a definir se a União Europeia é compatível com democracia ou não.
Nas negociações que têm existido entre o Governo grego e o resto do Eurogrupo tem-se falado muito pouco de razoabilidade das posições, tem-se falado pouco do propósito das várias posições. A questão é que antes do Governo liderado pelo Syriza na Grécia, a Grécia não estava em posição de cumprir nenhuma das suas obrigações. Tinha uma economia fragilizada, uma dívida monstruosa, com pagamentos que não era possível pagar, e o que é que a UE se preparava para fazer? Um novo empréstimo gigantesco à Grécia. Ou seja, somar ao problema da dívida, que é gigantesco, mais dívida ainda.
Mas o pressuposto é que a Grécia, de todo o modo, precisa de algum dinheiro, venha ele de onde vier…
Sim, mas o que eu quero dizer é que não se pode dizer que estava tudo bem e que agora ficou tudo mal. Já se sabia que a Grécia não tinha dinheiro, não tinha liquidez, e a solução da União Europeia era aprofundar a austeridade, pondo mais dinheiro na Grécia. E o que o governo do Syriza diz é ‘não nos dêem mais dinheiro, não podemos suportar mais empréstimos destes’. Numa economia que não cresce, estar a pôr empréstimos sobre empréstimos com condições que depois fazem com que a própria economia fique cada vez mais frágil é um poço sem fundo. Assim, o que os gregos dizem é: em vez de pagarmos a dívida, da mesma forma que os outros governos também não pagaram porque a dívida só cresceu, propomos que nos garantam a liquidez que já estava acordada antes e em troca nós pagamos os empréstimos e temos uma política de crescimento económico para a Grécia poder sobreviver – e fazer uma reestruturação da dívida, porque isso é essencial.
E o que é que a UE está a responder? Está a dizer que não aceitam que haja uma alternativa à austeridade, que prefere perder mais dinheiro obrigando a Grécia a sair do euro, do que aceitar uma reestruturação da dívida e uma alternativa. Parece que a democracia na Europa deixa de valer no dia em que algum povo escolher alguma coisa de diferente do que o Governo alemão decide. E é por isso que, mais do que perceber se em cada momento o governo grego tem ou não razão, é muito importante que o governo grego seja bem sucedido para dizermos que a democracia vale alguma coisa na Europa, porque senão desistimos.
Todos percebem: quem não produz não paga dívida, tem uma dívida cada vez maior. Parar a economia de um país para pagar uma dívida que é cada vez maior, não funciona.
É preciso um perdão de dívida para a Grécia?
Claro. Vai ser preciso, como para Portugal. Porque Portugal neste momento está a confiar nos juros estarem baixos, mas o memorando da troika em Portugal previa toda uma outra trajetória, também isso falhou. A dívida estava em 90%, dizia-se que agora estaria em 114% do PIB, mas está em 128%. Falhou. E falhou também toda aquela ideia da economia exportadora. Aliás, a recessão em Portugal só parou não pela política de austeridade mas pelo avesso da política de austeridade, ou seja pelo crescimento da procura interna que foi conseguido com as decisões do Tribunal Constitucional, só aí parou ligeiramente a recessão.
O Bloco de Esquerda acha que em Portugal a dívida é pagável ou não?
O que o memorando da troika nos dizia era que a dívida agora estaria a 114% do PIB e está a 128%. Dizia que o desemprego não atingiria os valores que atingiu mas atingiu, dizia que íamos ter uma economia que ia sobreviver de uma inversão da estrutura do próprio PIB, ou seja, em que a procura externa ia ter um peso muito maior do que a procura interna, e o que nós vemos é que a recessão abrandou acima de tudo porque a procura interna deu esse contributo muito positivo. Ou seja, não há uma nova economia exportadora diferente em Portugal, não há uma alteração radical do tecido em Portugal, há muito desemprego, o país produz menos, e ainda por cima o investimento caiu de tal maneira que nestes anos não se investiu.
E portanto o que é preciso fazer? Não empurrar o problema com a barriga, porque se não olhamos de frente para o problema que temos da dívida vamos estar sempre a fazer promessas que são falsas.
Tem de ser possível negociar. No momento em que não for possível verdadeiramente negociar, a União Europeia acabou. O que nós dizemos é que é difícil, mas não está no tempo de desistir. Está no tempo de forçar a negociação e de os países terem vozes claras e vozes fortes sobre isso.
O BE está a estimar em quanto um perdão da dívida portuguesa?
Há vários estudos sobre isso. Nós estamos a estudar, mas sabemos que é possível, não havendo perdão, haver pelo menos uma extensão muito grande dos prazos, das maturidades, estender de tal forma que não seja preciso o perdão da dívida. É preciso fazer baixar a dívida pública, isso é um elemento de soberania essencial. Mas é preciso fazê-lo de maneira a que o país se aproxime num número de anos razoável de um nível de dívida pública que não ultrapasse os 60% do PIB.
Como é que o Bloco de Esquerda entende que o PS e, por outro lado, o PSD e o CDS, tenham nas sondagens ainda qualquer coisa como 70% das intenções de voto dos portugueses?
Tem havido alguma dificuldade no debate político em Portugal. Acho que tem existido uma chantagem sobre soluções únicas de governação – únicas do ponto de vista dos partidos que normalmente alternam no poder, e únicas do ponto de vista do seu alinhamento com o consentimento da austeridade europeia. Temos um problema gravíssimo em Portugal que é a quantidade de pessoas a quem esta alternância prometeu alternativas mas nunca trouxe alternativa nenhuma, e que por isso ficaram desiludidas com a política.
Mas essas são pessoas que depois não se deslocam…
Deslocam-se para a abstenção. A verdade é que os 70% do chamado bloco central, ou arco da governação, não são os mesmo hoje que eram há uns anos, em termos de pessoas, em número de eleitores.
Essas pessoas não se sentem atraídas pelas outras alternativas?
Estou a reconhecer esse problema, precisamente. Existe o problema de as pessoas perceberem que não existe uma verdadeira alternativa viável para o país dentro dessa alternância, mas ao mesmo tempo não tem existido a capacidade de chamar essas pessoas a participar da forma que quiserem e entenderem tendo uma voz ativa. Nestes meses que nos faltam até à campanha legislativa o mais importante que temos de fazer é precisamente chamar as pessoas, ouvi-las, perceber quais são os problemas concretos. Fazer com que a política não seja o debate sobre aquela décima de flutuação de trimestre mas que possa verdadeiramente dizer alguma coisa do que conta da vida das pessoas, ouvi-las.
O PS apresentou entretanto uma proposta económica que é muito assente na recuperação do poder de compra, acha que é uma proposta de esquerda?
A recuperação do poder de compra dos portugueses é essencial, sobre isso estamos inteiramente de acordo. Recuperar rendimentos das pessoas é de esquerda naturalmente. Mas isso é diferente de saber se o programa que o PS apresenta, que não é só de recuperação de rendimentos, é um programa de esquerda. E aí julgo que não é. E não é por duas razoes: primeiro pelo quadro europeu em que diz que vai conseguir fazer recuperar os rendimentos e o poder de compra, ou seja, dizendo que irá cumprir metas que sabe à partida que sabe que são impossíveis. Depois, porque o PS assumiu boa parte do discurso da direita ao considerar que o problema em Portugal é a rigidez do mercado de trabalho, ao considerar que a economia precisa é de liberalizar todos os mercados, ao não dizer nada sobre as privatizações em curso.
O PS assumiu boa parte do discurso da direita.
O PS o que diz é que quer criar um regulamento para mais privatização, quando a direita alterou até a estrutura das Águas de Portugal para permitir a continuação das privatizações nesta área de bens comuns, setores estratégicos. O PS nada diz sobre isto, assume completamente o discurso da direita.
O que é que distingue hoje o Tempo de Avançar do Agir, estes do Bloco e todos do PS?
Há uma coisa que as pessoas sabem que o BE faz na Assembleia da República que mais nenhum partido faz. Pensemos por exemplo num dos últimos debates quinzenais, em que mais nenhum partido falou de Dias Loureiro. Não é por acaso que o Bloco de Esquerda é o único partido que consegue pôr o dedo na ferida sempre que está em causa a negociata contra o país, venha ela de grandes multinacionais norte-americanas, do estado chinês ou do capital angolano, venha de onde vier as pessoas sabem que o BE é a única voz que o faz.
O Bloco de Esquerda é o único partido que consegue pôr o dedo na ferida.
É por isso que pode estar na comissão do BES como está, que confronta o primeiro-ministro como confronta, que esteve sempre na primeira linha para que as pessoas soubessem o que se passa no país, tivessem opinião sobre isso e lutassem quando estão a ser verdadeiramente assaltadas pelos sistemas que fazem uma enorme promiscuidade entre interesses privados e públicos, que tem o nome de corrupção. E sabem que o BE não tem problema nenhum em denunciá-la sempre.
O Bloco é um partido que nunca deixou desligar-se a luta das propostas para a economia, emprego e crise, das lutas para a igualdade. Isso é muto importante. Quem é discriminado em tempo de crise sofre duas vezes, sofre a discriminação e sofre a crise. E portanto nós sabemos que a única forma de avançar é fazer acompanhar todas as lutas e nisso o BE tem tido um papel que mais ninguém tem tido no Parlamento que é ser consistente e determinado naquilo que propõe – nunca ninguém que votou no BE viu o BE defender uma coisa que fosse diferente do contrato que fez com os eleitores. Essa é a consistência que faz com que, quando falamos de política, sobre o BE, se saiba exatamente do que é que estamos a falar.
Neste momento, depois da crise interna há um bloco ou há um bloco partido?
Há um Bloco.
E o que é um bom resultado para o Bloco?
Estamos perante uma eleição muito bipolarizada, sabemos disso, existe uma pressão até mediática para fazer o debate em torno da coligação de direita e o PS. Mas nós consideramos que para lá dessa bipolarização há um problema diferente: é preciso que haja uma bipolarização também entre dois campos, o que propõe políticas de austeridade e o que assume a dificuldade de uma alternativa à austeridade, com uma desobediência onde ela deve existir à UE.
É muito importante para o BE manter o grupo parlamentar que tem tido.
Tem sido um grupo parlamentar ativo, forte, e é fundamental que não se perca na Assembleia da República a capacidade de ter deputados cujo compromisso para com as pessoas, para com a democracia, sejam mais fortes do que todos os outros…
Quando diz manter o grupo parlamentar diz em número?
Muitas vezes quando se fala das eleições fala-se muito de aritméticas e tácticas que tendem a condicionar as escolhas das pessoas, eu acho que as eleições devem permitir que as pessoas escolham. Era tão bom que as pessoas fossem chamadas a votar naquilo em que acreditam e não naquilo que acreditam que pode vir a ser porque os outros acham que pode vir a ser outra coisa qualquer. Isso é o drama da nossa democracia, é o drama da desilusão e da abstenção. Isso é verdade tanto à esquerda como à direita.
Para o BE é importante manter o grupo parlamentar, mas acima de tudo é importante que consigamos conversar com o país, que precisa de soluções. E precisamos que haja muito mais gente a levantar-se e a mostrar que tem posição nestas eleições. Eu lembro-me que Cavaco Silva foi eleito com 23% dos votos, como é que é possível termos tido um Presidente da República com 23% dos votos? É importante sairmos destas aritméticas fechadas, isso é o mais importante.
Veja aqui a versão integral da entrevista a Catarina Martins ao Observador: