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Eduardo Marçal Grilo, 76 anos, abre-nos a porta do seu escritório em Lisboa. A música clássica ouve-se em pano de fundo e não desaparece durante todo o tempo em que conversámos. À nossa volta, as paredes estão forradas de livros. “Eu vivo no meio dos livros com gosto e prazer”, diz, como se adivinhasse a pergunta. “A leitura é essencial. É uma forma de aprender. Mas com as pessoas aprende-se mais.”
Logo a seguir diz que gosta muito de aprender, de ouvir falar os outros, e isso sente-se. Não é preciso conversar durante muito tempo com o antigo ministro da Educação para perceber que é um apaixonado pelo conhecimento, que gosta de pensar o país e o ensino e que atribui um valor fundamental à educação artística e à ética.
Já encontrou, aliás, “os três pilares fundamentais disto tudo”: o conhecimento, as atitudes e os valores. E acredita que quem tem estes pilares sólidos está preparado para a imprevisibilidade do futuro. Até mesmo as crianças que, na sua opinião, irão ter profissões que hoje ainda não somos capazes de imaginar.
Dos tempos de ministro — “quatro anos de desgaste muito rápido” — diz ter saudades das pessoas fantásticas que conheceu. Das manifestações que acabavam com a sua imagem a ser queimada não sente falta, mas garante que se hoje vir as imagens na televisão é capaz de achar piada. Nem de propósito, tem na parede a fotografia de um grilo gigante, uma estátua que está na Universidade do Porto, e que foi usado nas manifestações contra as suas políticas. Recentemente visitou a universidade. “Perguntei ao aluno que me foi buscar: ‘O que é aquilo?’ O boneco é enorme, é uma coisa gigantesca. E ele diz ‘é uma coisa e tal’. E eu respondo: Não pá, isto sou eu. Não está a ver que é um grilo?'”
Engenheiro mecânico de formação, foi director-geral do Ensino Superior, presidiu ao Conselho Nacional da Educação, foi ministro de António Guterres e foi administrador da Gulbenkian, entre outros desafios profissionais.
Este ano volta a ser presidente do Conselho Estratégico da Futurália, a maior feira de educação do país que começa amanhã com novidades na área da empregabilidade. É esse o motivo para a nossa conversa mas que nos leva até 1995, ano em que agarrou a pasta de Educação.
“Trabalho há 52 anos e já passei por muita coisa, os quatro anos do ministério são para aí 8% daquilo que eu fiz. As pessoas é que acham que ser ministro é uma coisa extraordinária. Não é… Para mim foram 4 anos em que estive ali, mas depois mudei.”
“Hoje em dia, mesmo que os miúdos tenham uma farda distingue-os pelos sapatos”
Posso chamar-lhe pai do pré-escolar?
(Risos) Bom… Não sei se sou o pai. Bati-me muito por isso quando fui ministro da Educação, dediquei-lhe muito do meu tempo em todos os aspectos, no legislativo, na negociação com os vários parceiros. Nada se teria feito com o pré-escolar sem uma coordenação entre o Ministério da Educação e entre o do Trabalho e da Segurança Social, como se chamava na altura. A Segurança Social era essencialíssima, porque o pré tem uma vertente educativa e uma social — é um grande apoio para as famílias, sobretudo quando o pai e mãe trabalham. Se sou o pai? Não gosto muito dessa designação.
Com a distância do tempo, acha que valeu a pena? Temos melhores alunos por causa disso?
Acho que valeu muito a pena. Havia uma frase que utilizei em várias intervenções: “Para uma boa carreira académica é preciso um bom começo.” E o começo é o pré-escolar.
Foi o seu caso? Teve um bom começo?
Tive o privilégio enorme de nos anos 40 — nasci em 1942 — ir para um Jardim Escola João de Deus que havia em Castelo Branco, em 1946, no final da guerra. O pré-escolar é para mim um período inesquecível da minha vida e o João de Deus era muito especial pela maneira como estava concebido naquela altura. Era muito igualitário, tinha meninas e meninos de níveis socioeconómicos muito diferentes, mas quando entrávamos dentro do jardim escola éramos todos vestidos da mesma forma, os bibes eram todos iguais.
Os bibes do João de Deus ainda se mantêm.
Havia o verde, o vermelho… tinha os bibes e tinha outra coisa: os sapatos. Nós tirávamos os sapatos e calçávamos uma alpercatas iguais de sola de corda. Não dava para diferenciar. Hoje em dia, mesmo que os miúdos tenham uma farda distingue-os pelos sapatos. Uns têm Nike e os outros têm outra marca qualquer, distinguem-se por aí. Mas ali não. E tive contacto com a música, com o teatro e aprendi muito. Há um livro de um americano que se chama “All I really need to know I learned in kindergarten”. É muito verdade. Tudo aquilo que eu preciso em termos de atitudes e comportamentos ganha-se muito no pré-escolar.
Estava a falar de haver diferentes níveis socioeconómicos no mesmo colégio. Acha importante não termos colégios de elite e escolas de pobres?
Acho. Acho que aprendi imenso por isso. Depois andei numa escola pública. Como já sabia ler e escrever fui directo para a segunda classe e até à quarta estive numa escola primária pública em que havia estratos socioeconómicos muito diferentes. Havia colegas meus que andavam descalços e que não seguiram para o liceu. E depois, no liceu, que era uma escola pública, o contacto com pessoas de níveis, origens e regiões diferentes foi muito importante para perceber que o mundo não é o pequeno mundo em que nós vivemos.
Do seu tempo de ministro, a sua maior dor de cabeça foram as propinas?
Foi… quer dizer… Em termos mediáticos, foi a maior dor de cabeça. O pré-escolar deu-me muitas dores de cabeça. Aquilo não se fez de um dia para o outro. As propinas tiveram uma grande importância do ponto de vista mediático. Elas vinham de um processo em que o governo anterior, o último do professor Cavaco Silva, tinha feito uma lei que era tecnicamente errada. Assentava em diferenciações de pagamento baseados nas declarações de IRS. Portanto, aquilo deu umas distorções enormes. Havia quem tinha rendimentos e não pagava e quem tinha poucos rendimentos e pagava. Era uma injustiça enorme e que foi gritante aos olhos dos estudantes que se revoltaram contra aquilo.
E o que é que fez?
Tinha de se encontrar uma solução que fosse minimamente equilibrada e que não pusesse em causa princípios que pudessem ser contestadas à primeira. Foi difícil. Tive as manifestações, mas sabe… grande parte dos elementos que a nível dos estudantes tinham maior notoriedade ficaram meus amigos. Alguns muitos brilhantes, outros nem tanto. Eram pessoas que tinham interesse que as coisas funcionassem bem, que o Ensino Superior melhorasse. Depois houve muita contestação disparatada, algumas por razões políticas menores, política partidária, como eu era independente tinha sempre alguma dificuldade, mas estava num governo do Partido Socialista. Dor de cabeça? Tive uma grande, a pressão que existia para transformar os politécnicos em universidades e esse foi um problema com o qual tive de lidar e que inclusivamente me levou numa certa fase do processo a pensar que se as coisas não corressem de determinada maneira eu teria que regressar à Fundação Gulbenkian, onde já estava há não sei quanto anos.
Mas não aconteceu…
Não aconteceu. Fui até ao fim.
Como é que se gere uma máquina como a do Ministério da Educação?
É evidente que o ministro não gere a máquina toda. O ministro é mais uma referência do que outra coisa e sobretudo temos de ter em cada departamento, sector, região as pessoas indicadas. O ministério é uma máquina complicada, muito grande, talvez até grande de mais. Acho que se gere sobretudo com muito bom senso, uma grande preocupação na utilização dos dinheiros públicos, uma procura de optimizar os recursos que temos. Naquela altura não me posso queixar dos recursos, no pré-escolar fez-se um investimento fortíssimo e nas bibliotecas escolares — um outro projeto que lançamos e que 22 anos depois me orgulho muito. A grande alma das bibliotecas escolares foi a doutora Teresa Calçada. Este projeto correu bem, mas correu muito bem sobretudo pela continuidade da liderança.
“Há um grilo na Universidade do Porto que sou eu”
Tem saudades dos tempos do ministério?
Tenho saudades do contacto com as pessoas, pessoas fantásticas. Desde os jardins de infância até ao Conselho Europeu dos Ministros de Educação. Fiquei amigo de muitas pessoas por essa Europa fora, mantenho relação muito próxima com alguns diretores de escolas, com muitos estudantes, autarcas, ministros. Agora, tenho uma grande saudade de ter uma manifestação com dez mil pessoas em frente do parlamento e que depois queimaram a minha imagem? Não tenho propriamente uma saudade. Se hoje vir as imagens na televisão sou capaz de achar piada. Ali (aponta para uma moldura com uma fotografia) está o boneco. Está a ver? Aquilo é um grilo. (Risos) Aquilo foi feito por uma manifestação de estudantes da Universidade do Porto e depois transformaram aquilo num monumento que está na universidade. No outro dia fui lá falar a convite dos estudantes e perguntei ao rapaz que me foi buscar: “O que é aquilo?” O boneco é enorme, é uma coisa gigantesca. E ele diz “é uma coisa e tal”. E eu respondo: “Não pá, isto sou eu. Não está a ver que é um grilo?” Eles restauraram o boneco e tirei umas fotografias, até tenho uma fotografia ao lado do grilo. São coisas curiosas que nos acontecem na vida. Trabalho há 52 anos — comecei em setembro de 1966 — e já passei por muita coisa, os quatro anos do ministério são para aí 8% daquilo que eu fiz. As pessoas é que acham que ser ministro é uma coisa extraordinária. Não é… Para mim foram 4 anos, estive ali, depois mudei.
No meio de todas as saudades não falou nos sindicatos.
Os líderes com quem trabalhei — Manuela Teixeira e Paulo Sucena — eram duas pessoas muito qualificadas, interessadas e sérias. Ao Paulo Sucena chamei-lhe sempre uma espécie de príncipe do sindicalismo português. Uma pessoa admirável, um homem culto, muito equilibrado nas suas posições. Claro que os sindicatos têm uma lógica de funcionamento muito própria. Não tenho saudades daquelas lutas um bocadinho absurdas mas tenho dos encontros que tive a sós com eles. Antes das negociações convidava-os para tomar um café comigo, em separado. E dizia: vamos iniciar um processo e nós vamos negociar de boa fé mas temos limitações. Todos os governos têm limitações financeiras, estas coisas não são elásticas. E isto era bem recebido por eles. Tivemos sempre uma relação muito cordial.
Os sindicatos representam os interesses dos professores ou nem sempre?
Têm uma lógica própria de funcionamento. Às vezes íamos às escolas e os professores não sentiam aquilo que andávamos a negociar como os verdadeiros problemas. Estavam sintonizados noutras coisas. Os sindicatos têm um papel político muito importante e são o que são, com uma influência partidária enorme. Mas foi um período de enorme intensidade. Quatro anos no governo correspondem a muitos anos noutra actividade qualquer.
Ser ministro é uma profissão de desgaste rápido?
(Risos) Exatamente. São quatro anos de desgaste muito rápido, não se tem tempo para nada. Eu não tinha vida partidária porque não pertencia ao partido e resguardava-me muito, porque prezo muito a família e todo o tempo que tinha era para ela. É um período que marca muito, é indiscutível, mas não tanto quanto as pessoas julgam. Hoje olho para aquele período e trabalhei com muitas pessoas, tive muitas noites com problemas, fiz muitas viagens, tinha um horário muito intenso, almocei várias vezes na autoestrada. As pessoas estão convencidas que os ministros fazem uma vida de luxo, mas é uma vida de loucos.
Na altura em que saiu do ministério disse que o barco está a seguir numa boa direcção. Como é que está o barco hoje?
Foi essa frase, foi. Há uns escolhos, de vez em quando aparecem uns escolhos, mas a ideia que tenho — muito de fora e em genérico — é que se tem melhorado muito. A extensão da escolaridade obrigatória correu muito bem. O combate ao abandono precoce está a correr razoavelmente, as taxas de insucesso poderiam estar melhores, mas tem-se feito um grande esforço. Ainda temos muita heterogeneidade e muitas distorções. Temos muito sucesso que depende em exclusivo do nível socioeconómico dos alunos, o que não é bom. Não estamos a ser capazes de captar algumas das camadas mais desfavorecidas, estamos a ter dificuldade em puxá-los. Mas há muitas escolas a fazerem trabalhos absolutamente fantásticos.
Esta coisa dos rankings é interessante, mas não se pode atribuir o papel decisivo que alguns acharam que iam ter. Mas é importante que continuem a ser feitos, sobretudo para as escolas olharem para dentro e verem onde podem fazer melhor. É a importância da exigência. As escolas têm de ser cada vez mais exigentes consigo próprias.
Este ano volta a ser presidente do Conselho Estratégico da Futurália, a maior feira de educação do país. Que novidades haverá?
Vamos ter, pela segunda vez, uma conferência agregada ao certame e que é dedicada ao património, conhecimento e educação. É um evento dentro do próprio evento. A segunda novidade é um espaço novo, dedicado à empregabilidade que também o objetivo de alargar o âmbito da Futurália – está muito virada para os estudantes e a queremos alargar isto para um público mais vasto, desempregados, desempregados de longa duração, pessoas com idades de 30, 40, 50 anos e que possam perceber neste espaço como podem aumentar a sua capacidade para obter um emprego.
Porque o património?
Porque é o Ano Europeu do Património. O comissário nacional, o Guilherme D’Oliveira Martins, é um dos speakers e fará uma intervenção de fundo.
É um tema que seduz os alunos?
Não sei, sinceramente. O grau de atratividade depende muito do trabalho que é feito nas escolas. Quando elas pegam num tema e envolvem os alunos e os põem a pensar, eles são atraídos. Vou-lhe dar um exemplo: fez-se com a Memoshoá (Associação Memória e Ensino do Holocausto) um concurso a nível nacional para assinalar o Holocausto. É um tema pesado e tem 70 anos. Mas foi possível mobilizar centenas de alunos e de escolas. Havia trabalhos interessantíssimos. Isto para dizer: se as escolas trabalharem bem os temas, os miúdos aderem.
Há disponibilidade dos alunos para aprenderem temas diferentes?
Há, há disponibilidade para aprenderem coisas que achamos que são esotéricas. O próprio sucesso da Futurália depende daquilo que os professores são capazes de fazer nas escolas antes da feira. A Futurália não pode ser um momento lúdico em que se vai ver umas coisas engraçadas. É um momento em que muitos miúdos se interessam pelo que é um determinado curso.
E isso ajuda-os a escolher o seu futuro?
Os miúdos têm uma ideia distorcida de que o curso vai condicionar definitivamente aquilo que vão ser como profissionais. Quem vai para medicina quer ser médico, mas já há muito médico a fazer investigação científica. Contribuem para a medicina, mas de uma forma diferente. A Futurália dá aos alunos de 15, 16, 17 anos a possibilidade de contactar com as pessoas que estão nos stands e que são pessoas jovens, 20 e poucos anos. E percebem: bem, este faz isto, mas tirou aquele curso. É importante recolher da Futurália a ideia de que o país tem hoje uma panóplia enorme de oferta de cursos.
E são bons os cursos que oferecemos?
A esmagadora maioria são bons cursos. Estão ali muitas escolas profissionais que fazem um trabalho magnífico. Nos últimos 20 anos houve um reforço enorme da capacidade das escolas, já não são o que eram. Um exemplo: eu doutorei-me em 1973 e no Técnico havia pouco mais de 30 doutorados. Hoje tem mais de mil. Não se podem fazer comparações com o que era o ensino há 30 anos. Ainda há umas pessoas que ficaram paradas no tempo e que dizem “no meu tempo é que era”, como se as coisas estivessem sempre a piorar. Estes jovens têm uma diversidade imensa de cursos mas o que seria importante recolher da Futurália é a ideia de que vale a pena fazer um curso bem feito. Vale a pena estudar, trabalhar, vale a pena dedicarem-se, fazerem um esforço, vale a pena concentrarem-se no curso e fazerem-no bem feito. Lerem muito, terem os olhos bem abertos e ficarem com uma boa formação de base que é essencial: dos conhecimentos, das atitudes, dos valores.
Todas as escolas dão bons conhecimentos de base?
É sempre muito variado. Toda a vida houve e haverá escolas e escolas. Umas melhores que outras, há professores mais empenhados, mais bem preparados, há escolas mais bem organizadas, mais bem lideradas… Acho que nas escolas o futuro está razoavelmente acautelado. Mas ainda há muitos problemas na área da educação, há problemas sérios, de combate ao insucesso, de abandono escolar… Mas não podemos ter aquela visão apocalíptica de que no meu tempo é que era bom, o que não é de verdade, de todo.
Em termos de Ensino Superior diria que estamos cada vez melhores?
O progresso é evidente. Eu fui director geral do Ensino Superior no final dos anos 70, a seguir à revolução, e andou para aí muita gente a destruir as escolas e as universidades… Nós tivemos de andar a apanhar alguns cacos que os revolucionários tinham deixado, deixaram escolas desmotivadas, sem corpo docente, e hoje essas são grandes escolas. Por exemplo, o Instituto Superior de Economia em 1976/77 tinha menos de 10 doutorados. Hoje é uma grande escola, que tem força, capacidade, um corpo docente forte, tem investigação científica, tem relações com o exterior, atrai estudantes. O progresso é muito evidente. Quando visito a Futurália vejo o dinamismo que anda por ali, gente muito nova a promover as próprias universidades. É uma satisfação enorme perceber que o futuro está assegurado para esta gente, que há garantias de que se preparam para a imprevisibilidade.
A imprevisibilidade é o pior do futuro?
O pior do futuro… Não é o pior, o mais difícil do futuro é a sua total imprevisibilidade. E agora mais do que nunca. Como se costuma dizer, o futuro já não é o que era e estes miúdos que visitam a Futurália seguramente vão trabalhar em profissões que ainda não existem. Como é que são preparados para isso? Como é que se prepara uma pessoa para uma coisa que não se sabe o que é?
Talvez levando a revolução 4.0 para as escolas? Como é que a educação se adapta ao que está a acontecer?
Com conhecimento, atitudes e comportamentos, e valores. São os três pilares essenciais disto tudo. Os conhecimentos, obviamente: a língua portuguesa, a matemática, as ciências experimentais, a música, as artes plásticas, a história. O conhecimento dessa coisa toda. Podemos depois pensar o que é que se dá dentro disto. O conhecimento é de tal maneira vasto… O que é que a pessoa tem de saber? Não é uma matéria fácil. Mas este é o pilar dos conhecimentos que é essencial. Sem isto, não se consegue nada. Não se domina uma língua, não se domina português, não se domina inglês.
Não se domina a matemática…
Bom, aí uma pessoa nem tem raciocínio lógico. A outra componente que acho que é essencialíssima é a das atitudes e dos comportamentos: a responsabilidade, a liderança, o trabalho em grupo, a iniciativa, o pensamento autónomo, a independência. Este pilar é tão importante como o dos conhecimentos. Quando nas empresas se seleciona candidatos olha-se muito para esta componente. Esta pessoa está disponível para fazer o quê? Qual é o contributo que quer dar? Quer ser um agente de mudança? Ou é um ser mais abúlico que fica à espera que lhe digam o que deve fazer? Não gosto muito do termo, mas é aquilo a que às vezes se chama empreendedorismo. Temos a ideia de que o empreendedorismo é alguém que é empresário. Pode ser-se empreendedor e não se ter empresa nenhuma, pode ser empreendedor ao serviço de uma empresa.
Há quem lhes chame fazedores, porque são pessoas que fazem…
Pois, pois… São pessoas que fazem coisas. Aliás, os engenheiros foram treinados para fazerem coisas. Fui muito treinado para fazer coisas, coisas concretas, projetar — fui projetista durante alguns anos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil — e projetava equipamentos, depois via-os a funcionar. Fazia coisas. Imaginava-as e fazia-as. Isto é muito importante na seleção para as empresas: esta pessoa vem ou não vem acrescentar valor?
Até porque se tivermos duas pessoas com um percurso académico muito semelhante é preciso olhar para o que as distingue.
Exatamente. Está a ir ao ponto. E há o terceiro pilar, o dos valores: o sentido ético, a solidariedade, o respeito pelos outros, a tolerância. Quando falo em tolerância não é a da pessoa superior que diz “está bem, eu tenho razão, mas…” Não. É o respeito, o tolerance dos ingleses, o sentido ético — que é uma coisa que falha tanto, há tanta falha de ética em tanto sítio, a tanto nível, na política nos negócios na vida, na vida das pessoas…
E assim se aumenta a empregabilidade?
Há pessoas que não percebem que a empregabilidade aumenta se a pessoa adquirir determinado tipo de experiências. Esta coisa do gap year que os miúdos usam na passagem do secundário para o superior, em que fazem um ano de intervalo e viajam, é de um enorme enriquecimento. Ganhar mundo é muito importante. Contactar com outras culturas, perceber que há outra forma de pensar, de olhar para o mundo. O mundo não é isto. Não é esta coisa pequenina em que vivemos, o mundo é uma coisa mais aberta. Por outro lado, no que respeita aos comportamentos, há um aspecto em que insisto muito que é o sentido da exigência. A exigência é a importância que cada um atribui a fazer amanhã melhor aquilo que fez hoje. É a pessoa querer ultrapassar-se a si própria.
Todos estes pilares de que fala pode ser uma escola a ensiná-los?
Vamos lá ver… Não diria que é ensinar. Não se diz “vamos dar uma aula de responsabilidade”. Não há nenhuma aula de responsabilidade, nem de pensamento autónomo. O que é preciso é pô-los em situações em que eles assumam responsabilidade pelas coisas. E os professores têm de perceber que eles próprios são responsáveis e isto deve ser transmitido por prática. O sentido de responsabilidade transmite-se a quem vive esse ambiente.
“As pessoas têm de ser absolutamente impolutas”
Ou seja, educar pelo exemplo.
Exatamente. Acontece nas empresas. Os exemplos têm de vir de cima. A corrupção, que é um mal que abarca o mundo todo, tem de ser combatida e o exemplo tem de vir de cima. As pessoas têm de ser absolutamente impolutas para não termos aqui uma sociedade em que se diz “se aquele faz, eu também faço”. Os exemplos de têm de vir de cima, em tudo: na responsabilidade, no combate à corrupção, no sentido ético, na capacidade para liderar. Se for a uma escola, percebe logo se tem uma grande liderança ou não.
Estamos a falar dos diretores de escolas?
Estamos a falar dos diretores — mas as direções não são só uma pessoa —, dos diretores de turma, diretores de ciclo. Das pessoas que perguntam, se interessam, tomam conta. Pessoas que são capazes de dizer qual é o caminho. Lembro-me de entrar em escolas e ao fim de meia dúzia de minutos percebia se havia uma visão de conjunto… Eu que sou engenheiro mecânico entrava nas escolas que tinham oficinas e quando me parecia que qualquer coisa não estava bem pedia para vê-las. Percebe-se logo. Ou as máquinas estão impecavelmente limpas ou não. E eu dizia: “Sr. diretor isto não é aceitável. Não se pode ter um torno com bocados de limalha em cima.” Quando isto ocorre é porque algo não funciona na escola.
Estive numa escola magnífica, que foi o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e que tinha uma grande liderança, o engenheiro José Manuel Rocha. Exemplo de vida, de sentido ético, de responsabilidade, de liderança e isso aprende-se. Nunca tive aulas com o engenheiro mas aprendi imenso com ele, mais do que com muitos professores.
Hoje há cada vez mais instituições estrangeiras a captar os nossos alunos e isso é visível na Futurália. Está a acontecer de forma consistente nos últimos anos?
Nós também estamos a fazer isto, as nossas universidades também estão a tentar trazer estudantes do exterior. Nós não podemos falar da globalização e depois dizer que queremos trazer bons estudantes, mas que não queremos que os nossos bons vão para fora. Isto é impossível. As fronteiras tornaram-se osmóticas, há um fenómeno de osmose, as coisas passam de um lado para o outro.
Aqui há uns anos referia-se ao nosso ensino universitário como um bem de exportação…
É um bem de exportação. Quer maior bem de exportação do que ele é para Inglaterra? Estive no Imperial College em janeiro e a grande diferença em relação ao tempo que lá estive é o grau de internacionalização — e que naquela altura já era alta, no meu curso metade eram estrangeiros. E em Portugal começa a ter cursos que têm mais estrangeiros do que portugueses.
Mas não acha que isso é bom para todos?
É bom para todos. O que me pode dizer é que é uma pena que percamos muitos estudantes para o exterior porque são importante para o país, porque perdemos recursos humanos.
“Os estudantes portugueses são bons e dão muitas garantias às universidades estrangeiras”
Aqui há uns anos falávamos da fuga de cérebros, mas era mais tarde, eram pessoas que já estavam no mercado de trabalho.
Saem cérebros do país como ganhamos cérebros vindos de outro lado. Se for aqui ao Instituto Gulbenkian de Ciência — a que estive ligado durante muitos anos e a que ainda estou, nem que seja afetivamente — tem uma percentagem altíssima de investigadores estrangeiros. Mas depois não podemos dizer “ah… os nossos estão a ir para os Estados Unidos”. Claro que as universidades vêm à Futurália porque precisam de ter estudantes. Há muitas universidades no norte da Europa com capacidade de ensino muito para além do número de estudantes do próprio país. A Noruega ou a Suécia estão cheios de coisas dessas.
O que é que os estudantes portugueses têm de tão atrativo?
São bons. Os estudantes portugueses são bons e dão muitas garantias às universidades, são de bom sucesso. E nós perdemos quando eles saem? O que se chama hoje perder? Este rapaz português que está no Royal Ballet em Inglaterra e que é um brilhante bailarino. Perdemo-lo?
“O Cristiano Ronaldo é o maior embaixador de Portugal desde sempre”
Passa a ser um embaixador, não é?
Que é o melhor que há. Tenho um grande desgosto que o Cristiano Ronaldo não jogue no Sporting, porque sou do Sporting, mas se lá estivesse não teria aquele currículo. Teve uma carreira excepcional, foi para o Manchester, para o Real Madrid e tornou-se uma figura fantástica, o maior embaixador de Portugal desde sempre, acho eu.
No fundo, ganhamos em vez de perder….
Com certeza. Se me disser que há aqui uma empresa em Portugal que tinha 60 engenheiros e que eles se deslocaram para a Alemanha é uma pena enorme, porque nos introduz um prejuízo imenso. Temos de ter políticas que permitam que o país tenha condições para manter as pessoas aqui, nas universidades, nas empresas, na administração pública, na banca. O sistema universitário progrediu muito mais rapidamente do que progrediram as empresa em termos de recursos humanos qualificados. Há empresas que olham para a universidade com algum ceticismo, com cerimónia — “eles pensam umas coisas que a nós não nos interessam”. E a universidade olha para as empresas e pensa “não é para mim, eu movo-me num patamar mais elevado de reflexão científica”. É um disparate. Se há área em que temos de fazer um grande esforço é neste diálogo entre as empresa e as universidades.
Acha que tratamos bem os nossos alunos?
Umas escolas bem, outras não tão bem. Depende de escola para escola, de departamento para departamento. Portugal é muito heterogéneo, é um país que tem muitas vezes o melhor ao lado do pior. Temos empresários com uma grande capacidade, abertos ao mundo, espírito de inovação, que querem fazer melhor e há outros que estão num rame-rame há anos.
“Nós gostamos de nos autoflagelar, os portugueses dizem mal de si próprios”
A nossa noção do que fazemos bem ou mal, sobre quem somos nós portugueses, o que valemos, não está a mudar?
O país ganhou alguma auto-estima. Nós gostamos de nos autoflagelar, os portugueses dizem mal de si próprios. Mesmo quando nos cumprimentamos dizemos “estás bom?” e a pessoa responde “vamos andando”. Mas o que disse tem muito de verdade. Há vários ‘portugais’. Um número grande dos nossos universitários não deve nada a um universitário inglês ou americano ou alemão ou chinês. Em termos de auto-estima saímos de uma situação muito delicada, de pré-bancarrota, e iniciou-se um processo de recuperação em vários aspectos e algum na auto-estima.
Houve ajuda?
Os Presidentes da República — todos eles sem excepção — têm vindo a dar uma grande importância em mostrar ao país as coisas boas. O actual Presidente, o professor Marcelo, tem vindo a contribuir decisivamente para um clima diferente no país, um clima mais distendido, mais optimista. Diz-se que as pessoas só não são pessimistas porque estão mal informadas, se estiverem bem informadas são pessimistas. A ideia de que tudo pode ser apocalíptico, que tudo pode acontecer de mau, acaba por castrar a capacidade da pessoa. Um bocadinho de auto-estima é importante, no sentido de dizer “eu sou capaz”. Uma coisa que os portugueses têm de pior é gerir mal o insucesso, não são capazes de perceber exactamente onde falharam, analisar o erro, no sentido de não voltar a cometer esse erro. Isso é o que se chama saber gerir o insucesso: a pessoa falhou mas não se vai embora. Percebe onde falhou e da próxima vez corrige.
Fará melhor.
Com os miúdos acontece o mesmo. Nós dizemos “tens de acreditar em ti próprio, tu tens de ser capaz”. Eles são muito melhores do que a gente julga, têm muitas mais capacidades do que julgamos. Muitas vezes limitamos a sua capacidade por fatores que são nossos e não deles. Este último livro que publiquei termina com um capítulo em que digo mais ou menos isto: é preciso pôr os miúdos a voar.
É preciso dar-lhes asas. As asas são o que dizíamos há bocadinho, o conhecimento, as atitudes e os valores. Damos-lhes isso e eles voarão por si. Não precisam de nós para nada. Mas, dirá, se voarem também podem cair. Podem. Mas quando caírem aprendem, porque caíram e da próxima vez já não caem por essa razão. Podem cair por outra, mas não por essa. Porque aprendem. A aprendizagem faz-se através do erro.
Uma crítica recorrente ao ensino é que as salas de aulas mudaram muito pouco nos últimos 100 anos. Concorda?
Eu costumo dar muito esse exemplo com o meu avô. Foi professor primário do final do século XIX, princípio do séc XX, há cento e tal anos, e acho que ele hoje dava uma aula se ela estivesse com a mesma configuração que tinha no tempo dele. E a maioria ainda está… Mas também lhe digo isto, há muitas mudanças que se podem fazer, as tecnologias são muito importantes… Mas há um tempo da escola em que a aula clássica mantém a sua pertinência. Quando o professor expõe uma matéria olhando nos olhos os seu alunos numa aula de proximidade, esta aula clássica continua a ter a sua importância. Não podemos menosprezar isso. Os computadores são muito importantes, mas não deixam de coexistir com a aula clássica, em que o professor fala, expõe e o aluno toma notas, regista, escreve, percebe e encadeia.
Mas modernizar uma sala de aula não pode ser só distribuir tablets…
Não. Quando trabalhei no Euronext, em Bruxelas, havia um andar com vários tipos de sala de aulas com as coisas mais diversas, a maneira como os estudantes se repartiam pelas salas, salas para grupos…
Porque às vezes basta isso. Basta mudar a disposição da sala e o aluno já está com outro tipo de atenção, não é?
Claro. Para trabalhar em grupo não podem estar em carteirinhas uns atrás dos outros. O espaço tem de ser gerido. O mais importante é a forma como as pessoas se distribuem na sala para fazer determinado tipo de trabalho ou como é que os colocamos para ouvir uma palestra. Eu adoro ouvir pessoas a falar, aprendo imenso com as pessoas a falar. A leitura é essencial. Eu vivo no meio dos livros com gosto e prazer. A leitura é para mim uma forma de aprender, mas com as pessoas aprende-se mais. Gosto muito de aprender.
Não só a forma de estar nas aulas, mas também a forma de dar algumas matérias. Deve repensar-se os conteúdos?
Acho que a grande dificuldade dos conteúdos é combinar duas coisas: os conhecimentos básicos com um certo grau de atratividade. Não podemos só dizer que é preciso saber aquilo porque é muito importante. O conhecimento hoje é de tal maneira vasto que é um exercício muito complexo dizer onde parar. Os matemáticos acham que muita, muita, muita coisa é importante e eu não sei se é. Há que fazer escolhas, porque o tempo também é limitado.
Se nos ensinam muito em pouco tempo depois não se aprende nada.
Não se aprende nada. Às tantas o miúdo está perdido no meio daquilo tudo. Julgo que uma das coisas mais importantes na educação é a capacidade para distinguir o essencial do acessório. Quando estudei física, não fui um grande estudante de física, gostei muito da mecânica quântica, da equação de Schrodinger, do princípio da incerteza de Heisenberg. Foi útil, mas se me perguntar “hoje sabes como isso funciona?”, eu não sei. Mas percebi que aquilo foi muito útil do ponto de vista da minha cabeça, da minha maneira de pensar, do meu raciocínio.
Há coisas que aprendemos, esquecemos mas fica cá qualquer coisa…
Fica, fica. A cultura é aquilo que fica depois de se esquecer tudo.