Índice
Índice
[esta entrevista foi originalmente publicada a 8 de julho de 2017 e atualizada após a morte de Rita Lee, aos 75 anos, a 9 de maio de 2023:]
A cena é com Simone de Oliveira, a preto e branco, cabelo preso a gritar “é milho-rei”. A “Desfolhada Portuguesa” era a imagem que o país tinha de uma cantora do seu tempo, em 1969. Agora tente imaginar, no mesmo ano, uma loira de cabelo solto, nas cores Verão do Amor, com olhos brilhantes de quem passou os últimos dias a viajar em ácido, acusando as pessoas na sala de estarem ocupadas a nascer e morrer. Era Rita Lee, em plena Lisboa marcelista, no Teatro Villaret, acompanhada pelos restantes Os Mutantes. “Lembro que naquela noite também me esbaldei numa boite chamada Ad Lib”, revelava a cantora ao Observador, numa conversa por email com respostas sempre rápidas quando Uma Autobiografia foi lançado em Portugal. Rita não acreditava em coincidências, e se lhe explicássemos que “Ad Lib” é latim para “estar à vontade”, encontraríamos assim uma definição perfeita para a biografia da rainha do rock brasileiro.
Primeiro ponto: escrever sobre Rita Lee não é escrever sobre Os Mutantes. Sim, a paulista magricela foi a loira do psicadelismo tropicalista, mas foi sobretudo a ruiva glam dos Tutti-frutti, “o Bowie das selvas”, a cantora new-wave, disco, MPB e a apaixonada que fez a pop mais sensual e feminina que a censura permitiu. Vamos a contas? São 55 milhões de discos vendidos, superando qualquer mulher no Brasil e sendo até hoje quem tem mais músicas em aberturas de telenovela, o que equivale a Grammy na terra da Gabriela (olha o melão, Ivete!). Ainda alguém se lembra d’Os Mutantes? Depois de anos menosprezada pela crítica musical, a tarefa de escrever sobre Rita Lee coube finalmente a quem entende mais do assunto, a própria. “No fim virou uma terapia onde exorcizei traumas e me diverti com minhas imbecilidades”, explicava por e-mail a cantora mais reclusa do Brasil, no seu jeito característico entre o “à vontade” e auto-depreciativo.
No escurinho do cinema
Rita Lee Jones nasceu em São Paulo no peculiar dia 31 de Dezembro, filha caçula de Charles Jones, de família norte-americana, e de Romilda Padula, por sua vez de origem italiana. Neste embrião paulista de imigrantes, entre maçons americanos e italianos ultra-católicos, cresceu a mais nova de três irmãs, num ambiente descrito no livro como um verdadeiro “harém desvairado”, sempre sob o dedo firme do “Sargento” Charles. “Comecei escrevendo lembranças da minha infância, tipo um diário”, contava. Para os mais atentos, alguns dos grandes sucessos de Rita já descreviam uma espécie de diário adolescente, onde uma menina travessa está escondida com o seu “lança-perfume” ou chupando “drops de aniz no escurinho do cinema”. “Lembro como se fosse hoje cenas da família onde aprendia a conhecer o mundo através dos personagens que me cercavam”, explicou sobre os tempos no harém desvairado que ocupam o início da biografia, “eram todos de personalidade forte”.
No terraço imenso de casa recorda detalhadamente o primeiro disco voador que viu, ou como ela sempre disse melhor, “o primeiro disco voador a gente nunca esquece”. O espírito esotérico levou-o aos palcos da escola, numa primeira tentativa falhada com direito ao pesadelo de qualquer criança: chichi nas calças em público. Os nervos de palco não a iriam trair novamente. Entre traquinices e primeiras paixões, a biografia revela um episódio dramático, uma cena brutal de violação que roubou a virgindade à então jovem Rita, que em qualquer outra pessoa seria um trauma insuperável. Porquê revelar agora essa tragédia, quase aos 70 anos de vida? “Para exorcizar o drama de uma vez.” Segue em frente, assim era o mote de vida Rita Lee.
“O primeiro superstar do rock por quem me apaixonei foi James Dean.” Lembrava assim a grande paixão de escola, com o quarto repleto de imagens do rebelde sem causa, sendo substituído depois pela brilhantina de Elvis e, como manda a regra, seguiram-se os Beatles. Esse tal de roquenrow de Liverpool bateu forte na sensibilidade da menina e quase de imediato juntou no colégio a banda feminina Teenage Singers, que criaram uma rivalidade amigável com os Wooden Faces, meninos do colégio rival. Os moleques eram obviamente “ozmano”, como ela chama sarcasticamente Sérgio e Arnaldo Baptista. Sobre Sérgio escreve que era “95% técnica, 5% alma”, enquanto do namorado Arnaldo conta que “não era nada cavalheiro, eu também não era nenhuma dama”. O nome desta super banda de colégio foi O’Seis, depois Os Bruxos e, finalmente, Os Mutantes, por sugestão de Ronnie Von, o apresentador de TV que faria depois o épico com o título caricato “A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nunca Mais”. “Eles vieram de outro planeta”, apresentava Ronnie no seu programa, como se fosse preciso explicar isso ao ver os três vestidos de figurinos extraterrestres, escolhidos a dedo pela estonteante vocalista.
“Levava uma vida sossegada/ Gostava de sombra/ E água fresca/ Meu Deus/ Quanto tempo eu passei/ Sem saber/ Uh! Uh!/ Foi quando meu pai me disse/ Filha, você é a ovelha negra da família/ Agora é hora de você assumir/ Uh! Uh! E sumir!.”
A letra do grande clássico “Ovelha Negra” recorda o momento que a franzina caçula abandona o harém desvairado e começa a vida lisérgica mutante, apoiando todos os “rebeldinhos sem causa”, preferindo sempre um Lee Oswald a qualquer Kennedy. “Nada dramático, com 18 anos saí da casa dos meus pais e fui morar numa comunidade hippie”, contou-nos com a maior naturalidade, “a família não aprovou muito mas acabou entendendo”.
Tropicaliente
Em outubro vão ser exatos os 50 anos desde que aconteceu a cena seguinte. Gilberto Gil entra no estúdio de preparação para o III Festival de Música Popular e encontra os três Mutantes rodeados de uma parafernália high tech de fazer inveja a qualquer Hendrix — imaginamos nós que uma luz deve acender-se na cabeça do baiano. Gil sugere mudar o repertório e tocar “Domingo no Parque” para concorrer ao prémio. “A gente não sabe tocar música brasileira, a gente só faz rock”, explicam os paulistas. “Então vamos fazer rock brasileiro, oras”, respondeu na simplicidade de quem nasceu em Salvador da Bahia. “O grande desafio da minha vida profissional mesmo começou com ‘Domingo no Parque’”, garantia-nos Rita, que quase sem querer entrou pela porta da frente do nascimento da Tropicália, movimento que mudaria o música popular brasileira para sempre. E assim — apesar das vaias e acusações de imperialistas colonizadores — Os Mutantes descobrem que são brasileiros. “O Tropicalismo me apresentou ao Brasil do ‘Proibido Proibir’, com Gil e Caetano aprendi a compor em português.”
Finalmente brasileiros, e com a little help from alguns friends, aparece um reportório, o nome sarcástico da imprensa (“os brasilian bítous”) e um silêncio ensurdecedor da rádio. Os álbuns, hoje considerados fundamentais, sucedem-se em fracasso, o tropicalismo é enterrado, os baianos são exilados e, por mera conveniência social, Rita acaba casada com Arnaldo na comunidade hippie. “O que me surpreendeu foi minha falta de pudores comigo mesma”, indicou-nos na altura sobre as recordações que levaram aos momentos mais tenebrosos da biografia: “Escrevi com leveza sobre o lado sombrio e o lado divertido”. O casamento estava destinado ao fracasso, e a banda também, cada vez mais progressiva e maçante, com Arnaldo entrando na fase mais “Lóki”. Rita é expulsa da banda e, como já devem ter percebido, segue em frente (“você não tem calibre como instrumentalista”, explica-lhe o então marido). Fica a lição que afinal estes miúdos não eram super-heróis mutantes, mas pessoas de carne e osso, ou melhor, quase crianças.
Meio desligada em Lisboa
A ex-vocalista renasce de cabelo ruivo, perto da mutação final que seria a rainha do rock. Entra na fase de descoberta e passeia pelo mundo voando sempre na primeira classe do melhor ácido, conhecendo muito além de Portugal, onde a banda já tinha tocado, por iniciativa de Raul Solnado. “Eu conto no livro como Os Mutantes sacanearam a apresentação de um cantor brasileiro para o qual abrimos o show”, revelou-nos. Aparentemente, o público do Villaret estava convencido que eram argentinos, e apesar do bom concerto, a banda decidiu não colaborar mais com o espetáculo. Ao sair do palco cortaram a energia a Edu Lobo, main event e papa fina da bossa nova.
A reação de Edu não é contada no livro, mas com toda a certeza optou por ignorar os miúdos hippies que viviam na eterna “porra-louca”, sempre meio-desligados. “A coisa batia de repente tipo shazam”, escreve a vocalista na biografia, sobre os ácidos que chegavam em garrafas de maionese Hellmann’s. “Para sobreviver a uma ditadura como a que houve no Brasil só tomando muito LSD”, explicou-nos por email. Segundo Rita, existe sempre um anjo da guarda que a salva dos maiores perigos e overdoses da vida, e qualquer risco era sempre bem-vindo, ou como cantou em “Eu e Meu Gato”, “mas o que eu gosto é de andar na beira do abismo, arriscando minha vida por um pouco de emoção”. Em vez de fazer como Caetano e gritar “vocês não estão entendendo nada”, escolheu o lado absurdo, ludibriar a ditadura fazendo da vida uma eterna divina comédia, e no processo usar esse estado mais alto de consciência para a criação. “Desde antes dos egípcios que artistas usam drogas”, justifica.
“Pra quê sofrer com despedida/ Se só vai quem chegou e quem foi vai partir?/ Você sofre, se lamenta, depois vai dormir”.
Outro clássico, este “Cartão Postal”, traduzindo em letra a receita do “segue em frente” e, vai uma sugestão, a sua melhor canção. “Das parcerias com o Paulo Coelho essa também é das minhas favoritas”, concordava, “letra e música simples e sofisticada”. O escritor carioca tinha acabado de romper com Raul Seixas e arriscou a parceria com Rita, agora na banda Tutti Frutti, ainda procurando um primeiro sucesso. “Dizem que Fruto Proibido foi um marco no rock brasileiro, eu sou suspeita”, contou-nos na sua modéstia habitual. Fruto Proibido foi o seu primeiro sucesso nacional — e muito mais do que isso, foi o melhor glam produzido no país, a obra-prima da menina que ainda estava convencida que cantava “fraquinha e meio desafinada”, e com lugar garantido no panteão do rock brasileiro.
O David Bowie das selvas
A ruiva passou a vocalista e front woman, o “David Bowie das selvas”, provando como “rock também se faz com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê”. Somente a capa de Fruto Proibido já era um poderoso testemunho, com Rita a fumar relaxada no sofá, perna descoberta, desafiando-nos de frente, rodeada pelo “cor de rosa choque”, que mais tarde traduziria na letra “Sexo frágil/ Não foge à luta/ E nem só de cama vive a mulher”. “No meu tempo mulher que trabalhava com música era tida como puta, você pode imaginar o tipo de desafio que passei…”, revela. O feminismo de Rita é muito próprio, ela explica que pode comer a maçã proibida, mas isso não significa que queira, ou sequer que precise de qualquer homem para justificar a fome. Vejamos “Elvira Pagã”, uma das primeiras canções que escreveu após o fim dos Tutti Frutti:
“Todos os homens desse nosso planeta/ Pensam que mulher é tal e qual um capeta/ Conta a história que Eva inventou a maçã/ Moça bonita, só de boca fechada/ Menina feia, um travesseiro na cara /Dona de casa só é bom no café da manhã”.
“Foi uma feliz e inesquecível parceria com meu compadre Gilberto Gil”, contou-nos sobre Refestança, o álbum ao vivo com o baiano que celebra este Novembro 40 anos de lançamento, e divide as águas da sua carreira, ainda com Tutti Frutti, mas já com Roberto de Carvalho, o futuro marido. Nesta altura a banda já se estava a desmoronar, sobretudo pelo controlo possessivo da empresária Mônica Lisboa e Luis Sérgio Carlini, que mais tarde ficaria com o direito exclusivo do nome Tutti Frutti. Para Rita, a empresária era mais uma pessoa tentando castrar sua música, e o apelido mordaz que inventou foi “Governanta”, que os Doces Bárbaros (Gil, Caetano, Gal e Bethânia) imortalizaram em disco: “Quando a governanta der o bode/ Pode crer que eu quero estar com você/ Superstar com você”. Os baianos sabiam, esta mulher estava destinada a palcos maiores, bastava largar essa história de fazer bandas.
Em 1976 teve ainda uma traumática passagem pelo prisão, que culmina no momento rock’n’roll de entrar em palco grávida vestida de xadrez acompanhada por dois polícias (estava em prisão domiciliar). Apesar da eterna vida porra-louca, aqui já era uma outra mulher, grávida do recém namorado Roberto de Carvalho, guitarrista de Ney Matogrosso e em breve, o seu maior parceiro musical, que ajudaria finalmente a ser a “superstar” antecipada pelos Doces Bárbaros. “Roberto abriu meus horizontes harmónicos e melodiosos”, contava-nos então sobre o marido atual e pai de três filhos. “Com ele pude mergulhar em outros ritmos além do rock como, por exemplo, a bossa nova que é la crème de la crème da MPB de todos os tempos”. Em pouco tempo, a menina “meio desafinada” cantava com os gigantes João Gilberto, Elis Regina, Nara Leão e tinha como fã ilustre Charles, Príncipe de Gales, que pedia para ouvir “Lança-Perfume” a qualquer oportunidade.
https://www.youtube.com/watch?v=GDS5dDQ4_LI
E agora, duas pessoas apaixonadas, vão fazer música sobre o quê? Amor, pois claro, e sexo, porque não. Rita encontrava finalmente a voz suprema, a linguagem fatal, ainda de olhos no abismo, pedindo “me deixa de quatro no ato”. O homónimo de 79 (também conhecido como Mania de Você) — arrisco ser outra obra-prima –, o primeiro pós-Tutti Frutti, já na terceira vida de artista. Para trás fica o psicadelismo e o glam, segue em frente que estamos nos 80s e aqui o jeito é de despreocupação pop, pista de dança com a pimenta sensual da ruiva que começa a liderar as tabelas de vendas. Os sussurros de orgasmos desafiam mais a censura que Chico Buarque, e ainda vinham com convites para banhos de espuma, música para ouvir na posição de “Misto-quente/Sanduíche de gente” (“Caso Sério”) com “El cuerpo caliente, um dolce farniente” (“Banho de Espuma”).
Sucesso atrás de sucesso, e estava coroada a rainha do rock. “Depois que mixo uma música nunca mais a ouço, porque só noto os defeitos dela”, responde quando é desafiada a escolher uma favorita entre os 36 álbuns editados. Quem certamente não consegue escolher é grande parte dos críticos musicais brasileiros, que nunca aceitaram a Rita após a saída dos Mutantes, ou como a própria cantou, “falar bem de mim, é perder o emprego”. Exceção feita a Guilherme Samora, fã incondicional e jornalista estudioso da obra que serviu de ghost writer para esta mesma biografia. Os dois trabalharam em conjunto para criar este livro, uma parceria amigável como a cantora sempre as fez, desde que juntou a banda com as amigas de colégio. “É sempre a melhor receita”, garantia nesta entrevista.
“Deu tão certo”
Quase com 70 anos, Rita era já, na altura desta troca de pergunta-resposta, um monumento, imponente e iconográfico, com o cabelo ruivo, franja e óculos escuros. Certa vez perguntaram-lhe se faria um ensaio de nudez, ela respondeu que sim, mas vestida de freira e sem óculos e franja, ou seja, nua de Rita Lee. A estrada pós-sucesso contínuo acidentada, épica e perto do abismo, ao lado do marido compreensivo que a acompanhou até ao último grande momento rock’n’roll, quando foi presa em 2002 por desacato no seu concerto de despedida (Yeaaaah!). Hoje segue fora dos palcos, reclusa, caseira, vegetariana, protetora dos animais (chega a roubar cobras a Alice Cooper), excomungada (outro momento rock) e a imortal “defensora dos frascos e comprimidos”.
Por fim, um episódio curioso. Na fase mais ácida pós-Mutantes, a passear no mundo com um colar de missangas e LSD, Rita Lee já não tinha a certeza se passou uma longa temporada a morar numa quinta em Portugal, ou se simplesmente viajou na maionese. O certo é que somos nós que podemos continuar viajar com ela, nesta biografia, na peregrinação que Os Mutantes cantaram em 1969, ano da “Desfolhada Portuguesa”:
“Rita Lee foi passear/ Rita Lee vai encontrar o amor”.
“Pensei que ninguém fosse interessar pela minha vida besta”, admitia ao Observador: “Deu tão certo que fui parar até em Portugal”.