Uma União Europeia (UE) que “jogou um jogo muito inteligente”, ao manter-se unida, contra um Reino Unido com uma “classe política paralisada”. É assim que Federico Fabbrini, professor e diretor do Instituto Brexit — criado de raiz pela Universidade de Dublin, em 2017, para analisar a saída do Reino Unido da UE —, explica o ponto a que chegou a situação no que diz respeito ao Brexit. Dois anos depois de os britânicos terem votado no referendo pela saída, o país pediu um curto adiamento para evitar uma saída sem acordo, mas continua sem uma solução que a impeça.
Claramente defensor do projeto que uniu as várias nações europeias, este especialista em Direito Europeu esteve em Lisboa a propósito da sua participação na conferência “Para onde vai a Europa?”, organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde se sentou para falar com o Observador numa conversa com um único tema — Brexit. Por estes dias, nada mais poderia estar em cima da mesa num encontro com o diretor de um Instituto que classifica o Brexit como provavelmente o “evento político mais importante na Europa desde a queda do Muro de Berlim”.
Fabbrini não arrisca prever o que poderá acontecer nos próximos dias, mas uma coisa considera certa: caso haja um no deal, o impacto na ilha da Irlanda, onde vive e dá aulas, será tremendo. “A médio e longo-prazo, ironicamente, isto poderia fortalecer os argumentos dos que defendem uma reunificação das Irlandas“, arrisca. “Mas qualquer união a médio ou longo-prazo seria feita a custo de perturbações económicas, políticas e até sociais e culturais.” Já para não falar do risco do regresso da violência, que o académico considera existir, através da ação de um IRA (Exército Republicano Irlandês, organização paramilitar a favor da reunificação da ilha) que está atualmente adormecido, mas não destruído.
Do ponto de vista de Bruxelas, as consequências de um hard Brexit são mais geríveis, embora não desejáveis, explica o professor, que fez parte da equipa de peritos que analisou para o Parlamento Europeu o impacto que este cenário teria na União. O Brexit tem sido um ponto no qual os 28 países da UE revelaram “uma unidade incrível”, que contrasta com as divisões profundas que atravessam o bloco, face a várias crises (financeira, de refugiados e até de questões de regime, como no caso da Hungria e da Polónia). Mas o bom resultado também se deve à falta de habilidade dos britânicos, crê: “Em retrospetiva, creio que o principal erro de Theresa May foi não estar disponível para trabalhar com a oposição num tema que é uma emergência nacional”, resume Fabbrini. “Não conseguiu perceber que o Brexit representa uma verdadeira mudança política, social e económica que atravessa a sociedade e que a divisão entre Labour e Partido Conservador já não reflete a verdadeira distinção política no Reino Unido.”
Pelo meio, Federico Fabbrini não tem dúvidas: o Reino Unido não deve participar nas eleições europeias, já que o Brexit “envenenaria” toda a campanha eleitoral. Mas o remédio que arde também pode ter ajudado a curar: “O espetáculo a que estamos a assistir em Westminster é um exemplo terrível que mina as afirmações de Marine Le Pen, Matteo Salvini e todos os outros que são a favor de sair da UE, ao demonstrar o que isso significa na prática”, resume o investigador.
Estamos num ponto em que o Conselho Europeu concedeu um curto adiamento ao Reino Unido até maio, mas com a condição de aprovação do acordo. Crê que o risco de um no deal foi completamente evitado ou 12 de abril será o novo dia de hard Brexit?
O ponto em que estamos é numa situação de quase paralisia total em Westminster. Depois de dois anos de negociações, o Reino Unido encontra-se profundamente dividido sobre o Brexit, não há uma maioria em torno de nada no Parlamento britânico e isto obviamente cria grandes problemas, porque o processo de saída sob o Artigo 50 está desenhado para ocorrer num prazo de dois anos. É por isso que Theresa May, a 20 de março, pediu ao Conselho Europeu uma extensão, para tentar ganhar mais tempo, mas também, por outro lado, para colocar no lado europeu a responsabilidade de tomar uma decisão.
Creio que a resposta do Conselho Europeu a 21 de março foi muito clara ao colocar um limite à extensão a 22 de maio, para que o Brexit não afetasse negativamente as eleições que aí vêm para o Parlamento Europeu. E o Conselho Europeu também colocou a bola de novo no campo britânico, ao dizer que é o Reino Unido que tem de decidir se aprova o acordo. Se não o fizer, o adiamento é só até abril e o Reino Unido tem de clarificar o que deseja.
O risco de um hard Brexit em abril continua a ser bastante significativo, porque não parece haver uma maioria no Parlamento a favor do acordo e, portanto, é muito possível que esta semana o acordo seja chumbado por uma terceira vez. Se isso acontecer, receio que as probabilidades de uma saída desordenada aumentem.
Os líderes e os eleitores europeus estão fartos desta situação? Ou esta cimeira europeia demonstrou um gesto de boa-fé que revela que ainda é possível negociar um pouco mais?
Há uma fadiga crescente entre os chefes de Estado e os governos do Conselho Europeu, mas também entre o eleitorado europeu. O Brexit é um tema prioritário para alguns Estados-membros, sobretudo para a Irlanda, e até certo ponto para a Holanda e para outros Estados do norte. Mas não é claramente uma política prioritária no resto da Europa, onde há muitos outros desafios. Creio que o comportamento do Reino Unido e a incapacidade da classe política britânica em conseguir alcançar acordos neste assunto cansou muito o resto da Europa. É por isso que muitos líderes estão agora numa posição em que gostariam de minimizar os danos do Brexit. A disposição para aceitar um adiamento curto sinaliza que há interesse em cortar os laços com o Reino Unido, para que os danos possam ser contidos e este assunto não se arraste para sempre.
A data escolhida foi em maio e não a 30 de junho, como May pretendia, para não influenciar as eleições europeias. Como é que um Brexit não acabado poderia afetar a campanha?
Se o Reino Unido participasse nas eleições, o Brexit envenenaria o debate eleitoral um pouco por toda a Europa. O Reino Unido é o terceiro maior Estado-membro, iria estar a enviar a terceira maior delegação de eurodeputados para Estrasburgo e é óbvio que levar a cabo eleições europeias na Grã-Bretanha seria como fazer um referendo por procuração. O eleitorado britânico iria estar muito polarizado e é muito provável que isto redundasse na eleição de uma grande fação de eurodeputados eurocéticos. De um ponto de vista europeu, isto é muito arriscado e pode provocar muitos danos. Também significa que estaria a distrair a União Europeia (UE) de outras prioridades. Daí que seja necessário conter os estragos.
Olhando para o acordo que estava em cima da mesa — e que ainda está, em teoria —, o backstop para prevenir uma fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte é o principal problema. Por que razão acha que os deputados britânicos consideram que uma união aduaneira com a UE é um preço demasiado alto a pagar para impedir a criação de uma fronteira ali?
É verdade que o backstop foi a parte mais complicada do Acordo de Saída. Aliás, a solução para a fronteira foi a parte mais complicada das negociações. Mas creio que é preciso dizer que, para os Brexiteers e para aqueles que defendem a saída da UE, a Irlanda sempre foi secundária. Foi assim na campanha para o referendo, ninguém pensou em quais seriam as implicações de um Brexit para a Irlanda do Norte. E depois do referendo e durante as negociações tornou-se óbvio que sair da UE e do mercado único iria pôr em risco o processo de paz na Irlanda do Norte. É por isso que o backstop está no Acordo de Saída, é uma solução para um problema criado pelo Brexit.
Para os Brexiteers, o backstop é um custo muito elevado, porque o Reino Unido é obrigado a permanecer numa união aduaneira com a UE e é forçado a cumprir uma série de regulações do mercado interno para lidar com a falta de controlos fronteiriços. Não é surpreendente que eles não estejam satisfeitos e que tentem garantir que há uma saída unilateral do backstop. Mas, ao mesmo tempo, se isso acontecesse, todo o trabalho que foi feito nos últimos dois anos para impedir o regresso de uma fronteira rígida poderia ser cancelado de uma penada pelo Reino Unido.
Visto de Dublin, o backstop é uma condição sine qua non para o Acordo de Saída, não pode haver acordo para o Brexit sem isso. E, claramente, as forças políticas no Reino Unido, que estão conscientes da situação na Irlanda do Norte, sabem isto. Há um consenso em Westminster de que é necessário proteger o processo de paz, mas essa maioria não conseguiu traduzir-se num apoio consistente ao Acordo de Saída.
Mas o DUP é um partido da Irlanda do Norte e, no entanto, está contra o backstop…
O paradoxo é que o DUP é o único partido da Irlanda do Norte representado em Westminster [o Sinn Féin recusa-se a ocupar os lugares para os quais foi eleito por não reconhecer legitimidade ao Parlamento britânico para governar a Irlanda do Norte], mas representa uma visão minoritária na Irlanda do Norte. A Irlanda do Norte votou para permanecer na UE em junho de 2016 e, atualmente, a maioria dos eleitores e dos partidos na Irlanda do Norte é a favor do backstop. Por isso, o DUP está numa situação excecionalmente poderosa, porque mantém o Governo conservador de pé e é a única voz da Irlanda do Norte em Westminster. Mas, na realidade, não representa o que a maioria dos cidadãos e das empresas na Irlanda do Norte desejam neste momento. É irónico que, pela primeira vez em muitos anos, o Partido Conservador esteja dependente do DUP para ter uma maioria numa altura em que a Irlanda do Norte é tão relevante nas negociações do Brexit.
Durante as negociações, a UE manteve-se firmemente do lado da República da Irlanda. Corrija-me se estiver errada, mas não parece ter havido nenhum momento em que a Europa tenha dito “Vamos deixar cair isto do backstop para encerrar este assunto”, pois não?
Sem dúvida. Em Dublin havia muito receio de que a certa altura a UE “vendesse” a Irlanda para conseguir um acordo e isso não aconteceu. Acho que isso não aconteceu porque a UE não tem qualquer interesse em sacrificar a unidade dos 27 [países] e em trair o interesse de um dos seus membros leais para agradar a um parceiro exterior que não é de confiança. O Reino Unido provavelmente pensou que isso iria acontecer, mas, na verdade, as negociações revelaram uma unidade incrível entre os 27 e isso deve-se também ao facto de a Irlanda nunca ter tentado fazer uma negociação bilateral com o Reino Unido. Sempre garantiu que as suas prioridades eram as prioridades da UE e isso compensou.
Ainda existe um risco de no deal, como falávamos. Se se confirmar, como é que o Brexit pode influenciar a situação entre as Irlandas?
Se um no deal acontecer, terá consequências tremendas para a ilha da Irlanda. A curto-prazo, podemos esperar perturbações enormes. Um no deal significaria inevitavelmente algum tipo de fronteira entre a República da Irlanda e o Norte e isso muito rapidamente minaria o processo de paz. A médio e longo-prazo, ironicamente, isto poderia fortalecer os argumentos dos que defendem uma reunificação das Irlandas. Esse assunto tinha sido afastado da agenda política com o Acordo de Sexta-Feira Santa, mas o Brexit está a trazê-lo de volta. Mas qualquer união a médio ou longo-prazo seria feita a custo de perturbações económicas, políticas e até sociais e culturais.
Acha que há o risco de um regresso da violência?
Acho que não podemos exclui-lo. O IRA continua a ser uma organização criminosa bastante poderosa, mas, desde o Acordo de Sexta-Feira Santa, retirou-se do debate político e focou-se em atividades criminosas tradicionais como o contrabando, tráfico de droga, prostituição, etc. Uma fronteira rígida oferecer-lhes-ia a oportunidade de voltarem a dedicar-se à política e de buscarem obter de novo legitimidade como força política. O facto de nos últimos meses ter havido um carro-bomba em Londonderry é um sinal de que o risco é tudo menos teórico e de que as coisas podem muito rapidamente descontrolar-se.
Quatro prisões após explosão de carro-bomba na Irlanda do Norte
Olhando para estes últimos dois anos, como é que analisa a prestação de Theresa May na condução deste processo?
Temos de reconhecer que Theresa May tem sido, sem dúvida, uma primeira-ministra resiliente. Nunca desistiu e tinha uma estratégia relativamente consistente durante as negociações. A estratégia era a de manter o Partido Conservador o mais unido possível, o que foi uma tarefa hercúlea tendo em conta as divisões internas dos tories.
As tentativas dela foram as de colocar a resolução a votação na Câmara dos Comuns à ultima hora para tentar forçar o Partido dela a apoiar o seu acordo ou a defender um no deal. Só que este é também o principal erro de avaliação que ela cometeu: não avaliou bem a capacidade de o seu Governo convencer os membros mais eurocéticos do seu partido. Em retrospetiva, creio que o seu principal erro foi não estar disponível para um consenso transpartidário e para trabalhar com a oposição num tema que é uma emergência nacional, tal como uma guerra seria. Em vez disso, continuou a trabalhar na lógica tradicional de maioria vs. oposição, conservadores vs. trabalhistas, e não conseguiu perceber que o Brexit representa uma verdadeira mudança política, social e económica que atravessa a sociedade e que a divisão Labour e Partido Conservador já não reflete a verdadeira distinção política no Reino Unido.
Olhando para esta semana, o mais provável é termos votações sobre diferentes cenários. Não parece haver uma maioria a favor de um segundo referendo nem de uma saída sem acordo… Crê que acabaremos por ver eleições antecipadas, para que a situação fique clarificada?
Não há dúvidas de que não há uma maioria clara para nada, é o que temos visto nas últimas semanas e esse é o problema. Sem qualquer tipo de posição consensual no Parlamento britânico, a predefinição é um hard Brexit. A possibilidade de novas eleições pode surgir como uma possível saída desta crise imediata, mas não creio que traria alterações profundas à composição do Parlamento. A verdade é que o Reino Unido é e continuará a ser um país altamente dividido no que diz respeito ao Brexit e à relação do Reino Unido com a Europa. Isso não vai desaparecer nos próximos tempos, continuará a ser uma questão durante muitos anos. Num contexto destes, é uma ilusão achar que a situação se clarificará. E isso, de uma perspetiva europeia, são más notícias, porque a esperança de que o Reino Unido arranje uma saída sozinho é vã. O que, claro, coloca em alta o risco de uma saída desordenada.
Durante as negociações, os países da UE mantiveram-se bastante unidos, como dizia há pouco no caso da Irlanda, mesmo durante um período em que a Europa estava fortemente dividida entre países do norte e sul, do leste e do ocidente… Acha que o Brexit tornou-se um fator de coesão ou isso só ocorreu naquele ponto em concreto e não ajudará a prevenir os outros tipos de divisão?
Como explicar a união dos 27 em relação ao Brexit? Creio que há umas quantas explicações. Uma é que o Reino Unido tinha, obviamente, já gastado toda a simpatia que os Estados-membros pudessem ter para consigo. Assim que o Reino Unido decidiu sair, foi muito difícil para os outros Estados-membros assumirem uma posição de entendimento face à posição dos britânicos.
A segunda razão é que era do interesse da UE delegar a negociação na Comissão Europeia, atuar como um só bloco e focar-se em outros tópicos onde a unidade não existe: a crise do Euro, a crise das migrações, a crise do Estado de Direito. Todas elas mostram que os 27 estão divididos nestas outras frentes. Isso mostra que a unidade dos 27 em relação ao Brexit foi instrumental.
A forma como o processo está a ser conduzido irá ter efeitos nas forças políticas eurocéticas dos outros países?
Acho que o Brexit teve e está a ter um efeito significativo nas forças eurocéticas por toda a Europa, porque o espetáculo a que estamos a assistir em Westminster — a total paralisia do sistema britânico, as grandes perturbações que a decisão de sair da UE está a criar num país com uma longa tradição de governação efetiva — é um anti-modelo, é um exemplo terrível que mina as afirmações de Marine Le Pen, Matteo Salvini e todos os outros que são a favor de sair da UE, ao demonstrar o que isso significa na prática. O Brexit, ironicamente, tornou-se algo positivo para o futuro da Europa, porque dá um exemplo muito tangível e muito visível do tipo de desastre que é sair da UE.
Ao mesmo tempo, não creio que o cidadão comum será muito afetado pela forma como a UE geriu esta negociação, isso é uma questão mais técnica e das elites. Mas estou convencido de que a UE jogou um jogo muito inteligente e mostrou quão eficaz a UE consegue ser quando está unida.