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A primeira batalha parece até ver bem encaminhada, mas para a segunda ainda quase ninguém arrisca prognósticos. Ao contrário do que se chegou a temer, foi possível reanimar Christian Eriksen, o futebolista dinamarquês que caiu este sábado inconsciente no relvado durante um jogo entre a sua seleção e a seleção da Finlândia, no terceiro jogo do Euro 2020.
O jogador está “estável”, consegue “respirar e falar” e o desfecho mais negro, que se chegou a temer — e que seria a incapacidade de reanimação —, não se confirmou. Só as próximas horas, porém, permitirão perceber o alcance e as consequências deste colapso.
Sobre a possibilidade de voltar a jogar futebol é que as dúvidas são ainda maiores, não se sabendo quanto tempo esteve o jogador inanimado (até pelo cordão de proteção em seu torno feito pelos colegas de equipa) nem o resultado de exames que poderão identificar alguma patologia até agora desconhecida ou a causa da paragem cardiorrespiratória.
Os minutos mais longos da vida de Eriksen
O relógio marcava os 42 minutos. No estádio Parken, em Copenhaga, a seleção dinamarquesa continuava a insistir à procura do golo e, como sempre, insistia comandada por ele, inevitavelmente por ele: Christian Eriksen, o “rapaz introvertido” que da pequena cidade de Middelfart (pouco mais de 15 mil habitantes) chegou à elite do futebol mundial.
O “herdeiro humilde” de Laudrup passara os 40 minutos anteriores a fazer o que sempre fez no futebol profissional, pelo menos até à mudança recente e menos feliz para Itália e para o Inter de Milão: pedir a bola, organizar o jogo de ataque e gerir o ritmo, acelerando e temporizando como um número 10 moderno, com a capacidade de trabalho típica do futebol atual mas com um certo charme nas botas e a criatividade dos craques antigos.
Foi então que, repentinamente, depois de se movimentar para receber uma bola vinda de um lançamento lateral de um colega — do lado esquerdo do ataque da Dinamarca —, Eriksen arrepiou e deixou o mundo em suspenso, desta vez por um mau motivo. Não foi, como de costume, por um golo, por um livre direto brilhantemente marcado, por uma assistência a isolar o colega mas porque começou a cambalear e caiu sozinho, redondo no chão.
Os colegas abeiraram-se de pronto, correndo em sua direção e percebendo que se poderia ter passado algo de muito grave. E os longos minutos que se seguiram deixaram fãs de futebol colados ao ecrã, colegas da seleção dinamarquesa e colegas de profissão finlandeses, estreantes na prova, desesperados no relvado, muitos sem conter as lágrimas, rostos de pânico nas bancadas e Sabrina Kvist, a sua namorada, a descer ao relvado aterrorizada.
O tempo passava, Christian Eriksen era reanimado no relvado e a espera e a falta de reação do jogador parecia demasiado longa, deixando antever um desfecho terrível até pelas semelhanças da queda com a de outros futebolistas que tombaram durante jogos de futebol e não resistiram. Depois de o jogo ter sido temporariamente suspenso, as equipas saíam do relvado e os colegas dinamarqueses de Eriksen — protegendo-o sempre das câmaras, formando sempre um círculo em seu torno — acompanharam-no enquanto o médio era transportado de maca para fora do relvado.
As imagens arrepiantes da comoção, depois de Eriksen cair inanimado no relvado
Uma fotografia captada durante a saída do jogador do relvado mostrava-o aparentemente consciente e permitia acalentar esperanças de que o estado de saúde do futebolista não fosse tão terrível quanto se temia. Uns minutos depois, a UEFA dava conta de que Christian Eriksen tinha sido transportado para o hospital e que estava já em situação “estável”. Era finalmente possível começar a respirar de (algum) alívio: o mundo precisa do “rapaz introvertido” de Middelfart.
Para que o desfecho mais temido não se tivesse verificado, pelo menos para já, terá sido importante o contributo do capitão da seleção dinamarquesa Simon Kjaer. Kjaer, que também joga em Milão mas no AC Milan (rival do Inter, onde joga o colega), correu na direção de Christian Eriksen e colocou-lhe a mão no interior da boca, para não morder a língua, e garantindo assim que este não sufocava enquanto estava inconsciente. Terá também colocado-o de lado, na posição correta para estes casos, como manda o protocolo dos primeiros socorros, tentado proceder a uma massagem cardíaca, segundo o jornal espanhol Marca, deixando-o pronto para ser sujeito a manobras de reanimação por parte da equipa médica que se aproximava.
Depois a ação rápida dos médicos que se encontravam no relvado e continuaram a massagem cardíaca, o uso do desfibrilhador e a rapidez com que chegou ao hospital, que fica nas imediações do estádio, poderão ter sido determinantes para que tenha recuperado rapidamente. Ao ponto de poder ter feito uma vídeochamada da cama do hospital para os colegas e a pedir-lhes que retomassem o jogo (que a Dinamarca acabou por perder por 0-1).
O que lhe aconteceu e o que será o seu futuro, de acordo com os médicos
É cedo, demasiado cedo, para arriscar prognósticos quanto ao que poderá ou não ser o futuro de Christian Eriksen como atleta de alta competição, embora já se vá expressando algum ceticismo quanto à possibilidade do médio dinamarquês regressar aos relvados. Tudo depende, nesta fase, de dois dados: do tempo que Eriksen esteve inanimado e do resultado dos exames que foram feitos este sábado ao atleta.
À Rádio Observador, o médico cardiologista José Braz Nogueira fazia este sábado à tarde um retrato clínico do que viu: “O que aconteceu foi uma perda de conhecimento súbita. Uma das causas possível é uma paragem cardiorrespiratória. Essa situação é reversível se a manobra de reanimação for feita rapidamente. Neste caso pareceu-me que houve socorro imediato. Não percebi muito bem se a massagem cardíaca foi iniciada imediatamente, mas aparentemente a reanimação cardiorrespiratória teve bons resultados”.
Notando que “uma das causas mais frequentes destas paragens cardíacas é uma arritmia”, e que para a reanimação “reverter” aquele estado em que Eriksen estava muito contribuiu a massagem cardíaca, primeiro, e o uso de um “desfibrilhador”, depois, o médico cardiologista quis vincar que “de certeza absoluta que jogadores, ainda por cima a participar numa competição deste género, são vistos com especial cuidado. Em princípio, se houvesse uma patologia de base que propiciasse uma situação de risco cardiovascular de certeza que estes jogadores não estavam a jogar”.
Referindo o exemplo do guarda-redes de andebol do FC Porto Alfredo Quintana, que teve “recentemente uma paragem cardiorespiratória e nesse caso infelizmente não houve possibilidade de recuperação”, José Braz Nogueira alertou que “neste caso aparentemente a massagem cardíaca não foi iniciada de imediato, houve um pequeno hiato”, o que pode dificultar a recuperação desportiva. “O jogador estava deitado de bruços e depois é que o puseram em situação propícia à massagem cardíaca”, alertou, não deixando de dizer que ainda assim “foi tudo feito” de forma relativamente rápida e “aparentemente com bons resultados”, o que terá permitido estabilizar o jogador.
Os outros casos: de Fehér a Alex Apolinário e Abdelhak Nouri
Ao assistir-se a estes momentos, é quase inevitável pensar em como as paragens cardiorespiratórias podem também acontecer a desportistas e atletas de competição, em alguns casos — como o de Eriksen — com menos de 30 anos, sem antecedentes clínicos que permitissem prever o colapso e com uma performance desportiva de alto rendimento.
O cardiologista José Brás Nogueira explica que “de vez em quando acontece” este tipo de situações a atletas de alta competição, “apesar de todos os exames a que esses atletas são sujeitos”. E dá um exemplo: “Lembro-me do caso do Fehér, que tinha feito recentemente, penso eu, um ecocardiograma e a causa da morte dele aparentemente esteve relacionada com uma patologia cardíaca que passou despercebida nos exames. Isso pode acontecer, como se vê por este ano ou como se viu no ano que passou — já houve três ou quatro casos de que tenhamos conhecimento de situações parecidas com esta em atletas”.
Casos já citados como os do futebolista Miklós Fehér, que morreu em campo em janeiro de 2004 num jogo entre Benfica e Vitória de Guimarães, ou o do andebolista Alfredo Quintana, que morreu este ano aos 32 anos vítima de um enfarte do miocárdio, são alguns dos exemplos mais mediáticos.
Há, porém, vários outros casos, como o do futebolista do Alverca Alex Apolinário — que morreu em janeiro de este ano num jogo devido a uma paragem cardiorrespiratória —, o do antigo guarda-redes do FC Porto Iker Casillas, que resistiu a um enfarte do miocárdio embora não tenha podido voltar a jogar, ou ainda o do antigo futebolista do Ajax Abdelhak Nouri, que teve um problema cardíaco, chegou a estar posteriormente em situação de saúde “estável”, mas acabou por ficar com “danos cerebrais sérios e permanentes”.
Outros casos mediáticos foram o de Davide Astori, antigo capitão da Fiorentina que morreu em 2018 com uma paragem cardiorrespiratória num quarto de hotel durante um estágio da equipa, e de Antonio Puerta, futebolista do Sevilha que em 2007 sofreu uma sequência de ataques cardíacos durante uma partida do seu clube com o Getafe — e que apesar de até ter conseguido caminhar sozinho em direção ao balneário, acabaria por morrer três dias depois.
Humilde, introvertido, líder pelo exemplo: a vida e a carreira de Christian
O começo de Eriksen na Dinamarca: “Dormia abraçado a uma bola de futebol”
Christian Eriksen não nasceu com uma bola de futebol nos pés, mas não faltou muito: aos três anos já jogava no quintal de casa dos pais, Thomas e Dorke Eriksen, como relatou num longo artigo (intitulado “O Rei da Dinamarca”) o site Goal.
Toda a família tinha uma paixão pelo desporto em que o filho se notabilizaria: a sua irmã Louise Eriksen, três anos mais nova, também se tornou futebolista (joga hoje, aos 25 anos, no clube dinamarquês KoldingQ) e o pai, que trabalhava como gestor de vendas na indústria automóvel, também esteve próximo de se tornar futebolista profissional e treinava uma equipa de futebol formação da sua cidade. “Ele dormia abraço a uma bola de futebol até ter 10 anos. Era o peluche dele”, chegou a contar o pai, numa entrevista.
Christian cresceu idolatrando jogadores como Francesco Totti e Brian e Michael Laudrup, sendo que seria com o segundo — estrela maior da história de futebol dinamarquês — que seria mais comparado quando se tornou profissional.
Em miúdo, Eriksen era “terra a terra”. Enquanto os colegas “aspiravam a ter reconhecimento e fama”, o número 10 dinamarquês cresceu “com toda a gente a elogiá-lo pelo talento e pelas habilidades” mas “manteve-se calmo, trabalhando arduamente e sendo sempre muito crítico sobre si mesmo”, apontou ao Goal um técnico que o orientou nas seleções jovens dinamarquesas, Glen Riddersholm, acrescentando: “Era um rapaz muito calmo. Não era exatamente tímido mas era introvertido. Apesar de não falar muito, era um líder natural dentro de campo. Liderava pelo exemplo e fazia coisas simples nos jogos que eram simplesmente espetaculares”.
Não foi como virtuoso nem foi pelos dribles vertiginosos que Christian Eriksen começou a dar nas vistas, ainda nos escalões de formação do futebol dinamarquês — o que o demarcava dos outros já aí, garante quem com ele privou, era aquilo que mostraria já como sénior, a inteligência na leitura de jogo, a capacidade de tomar as melhores opções para a equipa, a qualidade com que executava os gestos técnicos mais simples do passe, receção e remate. O sentido coletivo seria, como bom jogador de equipa, um reflexo da sua personalidade fora de campo: um rapaz sem peneiras, sem excentricidades, que só queria jogar futebol e ganhar com os amigos.
Os primeiros passos no futebol foram dados no clube da terra, o Middelfart Boldklub, uma equipa modesta da Dinamarca que hoje no futebol sénior milita na segunda divisão dos campeonatos do país. Mas Eriksen não se demorou muito tempo na sua primeira equipa: aos 13 anos já jogava nos escalões de formação do Odense, um clube cujas instalações ficavam a 45 quilómetros da cidade natal de Eriksen (Middelfart).
No Odense, Eriksen rapidamente impressionou. Uffe Pedersen, que dirigia o futebol formação do clube, lembra-se bem do prodígio e ao jornal The Guardian garantiu que “via-se já que ele era um jogador especial, cada vez que subia de escalão só precisava de um ou dois jogos para se adaptar e se tornar o melhor jogador” da equipa e que “controlava todo o jogo, marcando o ritmo e assumindo a gestão e liderança”.
Segundo conta Uffe Pedersen, a família fazia questão que Christian Eriksen crescesse com humildade, sem vedetismos precoces e sem ser afetado pelo assédio dos agentes e empresários: “Diziam-se só para tomar conta dele e dizer-lhes se aparecesse algo interessante [propostas de outros clubes] que valesse a pena ser falado. Não havia impaciência, espalhafato”.
As imagens arrepiantes da comoção, depois de Eriksen cair inanimado no relvado
Milan, Chelsea, Barcelona? Não, Ajax, Tottenham e Inter
O futebol dinamarquês começou cedo a parecer pequeno para a dimensão do talento de Christian. Primeiro, fez testes em clubes ingleses. “Joguei três jogos na equipa de sub-18 do Chelsea e depois fiz o mesmo no Millwall, West Ham e noutro clube cujo nome não me consigo recordar. Vi pessoas como o José Mourinho e o Didier Drogba a andar por ali e jogadores famosos a almoçarem uns com os outros. Para mim, na altura, isso era demasiado. Era um passo demasiado grande”, chegou a recordar, de acordo com o site Goal.
Depois dos clubes ingleses, Eriksen fez testes no Barcelona mas aí o rendimento não foi o melhor: o jogador chegou a recordar que fez um jogo particular por uma das equipas jovens dos catalães frente à seleção da Catalunha e que só tocou na bola três vezes durante 90 minutos, apercebendo-se logo que não se mudaria para Espanha. E ainda rumou a Itália, passando uma semana no AC Milan quando tinha 16 anos — o clube de Milão ainda tentou contratá-lo mas aparentemente a verba pedida pelo Odense pelo seu jovem prodígio era demasiado alta.
Os relatos de quem o treinava apontam para um traço forte da personalidade do jogador: quando voltava ao clube dinamarquês, mais modesto, vindo de testes em grandes clubes europeus, Eriksen não evidenciava tiques de estrela. Mas a mudança era inevitável e poucos meses depois de fazer testes no AC Milan, em outubro de 2008, ainda com 16 anos, levou os holandeses do Ajax a pagar perto de um milhão de euros para o ter.
Assim que chegou, ainda franzino e adolescente, Eriksen deixou logo boa imagem nos escalões de formação. Ao The Guardian, Frank de Boer, que trabalhava no futebol de formação do Ajax naqueles anos, recordou um jovem talento que já estava “sempre em movimento”, que “pensava rapidamente” e que “tinha olhos nas costas, quando pensas que não te está a ver, está a ver-te”. Pouco mais de um ano depois de chegar a Amesterdão, com 17 anos, Christian Eriksen fez a estreia com a equipa principal do Ajax. “Estava a treinar os sub-19 e pude dizer diretamente ao treinador [da equipa principal]: podes levar já o Christian. Pode ter ainda de se desenvolver fisicamente mas mentalmente está pronto”.
O futebol holandês assentou como uma luva ao seu desenvolvimento: rapidamente foi comparado a Michael Laudrup mas também a Wesley Sneidjer e Rafael van der Vaart. Se a primeira época no Ajax, 2009/2010, foi ainda de adaptação e ambientação ao futebol dos adultos, nos três anos seguintes Christian Eriksen não deixou ninguém indiferente na Holanda, assumindo as rédeas da equipa e assumindo-se como o grande motor da Eridivse.
Os registos na Holanda não deixam margem para dúvidas: Eriksen foi tricampeão — vencendo o título maior do futebol holandês em 2010-2011, 2011-2012 e 2012-2013 —, somou golos, assistências e prémios individuais. Quem também não teve dúvidas do talento ao vê-lo jogar foi o Tottenham, que decidiu contratar o dinamarquês e levá-lo para Inglaterra.
Por esta altura, antes de ir para a Premier League com 21 anos, Christian Eriksen já era o talento mais entusiasmante do futebol dinamarquês. Mas em Inglaterra cimentou-se como craque e líder da sua seleção: na época de estreia, foi considerado o melhor jogador do ano no clube londrino e nos sete anos que ali passou conseguiu registos marcantes, como o de se tornar o segundo jogador depois de David Beckham a conseguir mais de dez assistências por temporada durante quatro anos consecutivos na Premier League.
No Tottenham, Eriksen foi orientado no primeiro ano por André Villas Boas e Tim Sherwood mas foi com Mauricio Pochettino que passou todos os anos seguintes, ajudando o Tottenham a aproximar-se dos lugares cimeiros do campeonato e chegando mesmo a disputar uma final da Liga dos Campeões, que não conseguiu vencer.
Depois da Liga dos Campeões perdida, o ciclo no Tottenham chegou ao fim e Christian Eriksen mudou-se para o Inter de Milão, onde passou as últimas duas temporadas, com menos protagonismo do que se esperava mas talvez com mais títulos do que seria realista imaginar, dado que Eriksen e o Inter sagraram-se campeões italianos este ano, superando no campeonato equipas como a favorita Juventus, o AC Milan, a Atalanta, a Roma, o Nápoles e a Lazio.
Este sábado, no Estádio Parken, em Copenhaga, Eriksen caiu e o mundo temeu que não se conseguisse levantar. Para já há margem para esperança: estável e, segundo o que relatou o seu agente, capaz de “respirar e falar”, pode mesmo ter superado um dos adversários mais temíveis da sua vida.