Aos 85, ainda se vai a tempo. Era essa a idade que Aurora Venturini tinha quando recebeu o Prémio Nueva Novela de Página/12, já lá vão 16 anos. A tarefa de ler o manuscrito, revela Mariana Enríquez, que trabalhava na pré-selecção dos finalistas do prémio, não se terá revelado fácil: o livro tinha sido escrito numa máquina de escrever e tinha sido usado um corrector líquido que, volta e meia, apagava também o que não era para apagar. Ainda assim, passou no crivo final e a maior novidade de um prémio de novidades foi o facto de a autora não ser bem novidade.
Liliana Viola, que estava na mesma comissão de selecção, teve a mesma surpresa ao pegar em As primas. A admiração vinha de lugar indefinível: seria “o risco do texto, a excentricidade, a sensação de que não se tinha publicado nada parecido, seria a voz vinda de um lugar desconhecido?” (p. 14/15). O resultado da leitura seria quase unânime: era meio fascínio, meio desconcerto. E apostavam as duas que se o júri entendesse – e há peso na forma verbal – a radicalidade do texto, este seria um forte candidato à vitória.
Foi-o e venceu. Com 85 anos, Aurora Venturini foi catapultada para a fama mundial. Na cerimónia de entrega, e em tom jocoso, lá mandou: “Por fim, um júri honesto” Nesta fase, Venturini não era nova nem novata. Contava já com dezenas de livros publicados, a maior parte em editoras independentes ou em publicações que derivavam de prémios municipais. O denominador comum das narrativas não enganava: ali estava a família como campo de batalha.
Ao longo da vida até àquele momento, já tinha havido solavancos, tendo a autora estado exilada em Paris depois do golpe de 1955. Em França, fora amiga de Violette Leduc; na Argentina, era peronista e amiga de Evita Perón. Na altura, o seu círculo já era o da produção literária argentina, incluindo aquela que hoje ganha força em Portugal. Era, por exemplo, amiga de Victoria Ocampo e de Borges. Numa visão panorâmica, é fácil paralelizar-se hoje Venturini com autoras como Victoria Ocampo e Sara Gallardo, principalmente pelo lugar relativamente secundário que tinham na altura no panorama nacional argentino, já que o reconhecimento e o privilégio eram sempre concedidos aos pares do sexo masculino (Borges e Bioy Casares são disso bom exemplo).
Título: “As primas”
Autora: Aurora Venturini
Editora: Alfaguara
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Páginas: 208
Enfim, depois da sombra, chegou As primas. No romance, originalidade estética e narrativa aparecem de caras, à bruta, logo no pontapé inicial. Partindo do ambiente de uma família, com uma narradora participante, há uma permanente etnografia íntima que surpreende o leitor. São os anos 40 em La Plata, Argentina: a mãe de Yuna, a narradora, é professora “de ponteiro”, um dos únicos cargos possíveis para uma mulher que não implicasse serviço ou submissão. Yuna pinta e tem um professor que a ajuda a estudar arte e a expor a sua obra: José Camaleón, um nome quase auto-explicativo, numa breve introdução de ironia no romance por parte da autora.
Yuna, convém dizer, tem uma deficiência. Problemas cognitivos não levam com eufemismo neste livro, e também por isso se usa a palavra que autora e narradora usaram. Na sua voz, há uma sensação vívida e a sintaxe é rompida para combater o cansaço da escrita. Ao longo das cerca de 200 páginas, temos a miséria existencial das personagens obscenamente exposta, aparentemente sem ser limada, vinda de uma personagem que parece não ter super-ego, que parece incapaz de se impor auto-rasuras, o que faz da escrita uma relação directa com o objecto.
A narrativa circula em torno das mulheres da família. Há Betina, irmã de Yuna, que se baba e não fala, fazendo girar as rodas da cadeira, e que tem também um atraso mental considerável, tendo de ser seguida numa instituição. Sem complacências, Yuna considera-a um caso desesperado. E há ainda a tia Nené, virgem, as primas Carina e Petra e Rufina. O ambiente é sempre lúgubre e deprimente. Na família, há casamentos consanguíneos, vários tipos de deficiências (físicas e mentais), de gravidades diferentes (Carina, por exemplo, tem seis dedos). Ao longo do caminho, a ideia de miséria está sempre subjacente, e isto inclui até a naturalidade com que as personagens falam do seu quotidiano manchado por situações de violência e exploração, que incluem assassinatos, violações, abortos, pedofilia, abuso de menores, abuso de deficientes e até abuso de deficientes menores. Além das limitações físicas e até mentais, as personagens vivem a braços com os condicionalismos do machismo que imperava na época e no lugar, permitindo abusos e silêncios. Como se parte disto para todos os pontos da obra, tudo é lúgubre, tudo deprime, e a vida não parece ter caminho.
Há uma sensação permanente de monstruosidade no texto, até porque esta é assumida pela narradora, que é incapaz de eufemismo ou freios. Diz o que vê, há uma relação directa entre pensamento e fala. Todo o livro é um monólogo que vai ganhando força e coesão e, ao longo de toda a narrativa, há uma permanente sensação de asco. Aliás, a palavra que a narradora usa, mostrando o que acabou de ser agora referido, é “nojo”. Este nojo vai servindo para mostrar a vida daquela gente, de que são relatadas situações de domínio masculino, da posição de vulnerabilidade em que as mulheres são postas a priori e o que fazem para inverter os papéis e roubarem a dignidade à vida. Prova disso é logo a cabeça do romance, com Carina a engravidar e Nené a decidir-se por um aborto. Cabe ainda acrescentar que, na Argentina, a interrupção voluntária da gravidez só foi legalizada em 2020 e por isso temos aqui um aborto clandestino descrito com a violência que implica a entrada de instrumentos metálicos num corpo humano.
Em termos de estética, a opção de Venturini é incomparável. Partindo de uma narradora deficiente, teve de lhe criar um arco que justificasse a sua capacidade de escrever. Assim, de início, a prosa é manca, a pontuação é quase à toa, o vocabulário falta-lhe a torto e a direito. Mas o dicionário ajuda e, servindo-se de uma oralidade transformada em prosa escrita, vai veiculando um sentido. E isto Venturini faz bem, conseguindo uma prosa escorreita na voz de alguém que, à partida, jamais aguentaria uma prosa escorreita — e sem golpear a credibilidade. Não há, ao longo do romance, momentos em que a voz saia de tom ou pareça parca para o que quer meter na narrativa. Como, à medida que Yuna escreve, vai ganhando ferramentas (não chegando, claro, à mestria da sintaxe), de repente, no meio da sua oralidade, aparecem palavras como “indelével” ou “plêiade”. Basta isto para que a mera experiência de leitura seja enriquecedora. Com “isto” faz-se aqui referência à singularidade não só da experiência estética em si, mas também do controlo com que a voz narrativa foi criada. Bastam dois ou três parágrafos para que o leitor se veja perante uma criatividade abundante, uma escrita como um músculo rijo que vai aonde quiser.
À medida que vai expondo a história, a narradora vai amestrando a sua capacidade de contadora, num crescendo. De início, vai explicando que a palavra X ou Y chega directa do dicionário; depois, vai dizendo que já não precisa de consultar o dicionário tantas vezes. E, como vai saltando entre registos diferentes (a oralidade que transpõe ou palavras menos usuais, que vêm directas do dicionário), o resultado é a mistura permanente, que rompe sem dissabores as convenções da escrita (por exemplo, aguentar, ao longo da escrita de um romance, o mesmo estilo). No caso, a própria evolução do estilo já constitui estilisticamente o romance, revelando Venturini como uma autora todo-o-terreno.
No livro, temos personagens que, com deficiência, vivendo contra e apesar dela, arranjam maneira de vingar a instrumentalização de que são alvo. Prova disso será Petra, irmã de Carina, que será a personagem mais forte a seguir à narradora. Anã, prostitui-se desde a adolescência, levando ainda à narrativa os temas e a informação a que a narradora, à partida, não tem acesso. A sua condição não é usada como coisa estática, submissão suprema, antes como ponto de partida para uma reacção, partindo-se daí para se tentar vingar os golpes. Ao leitor, cabe ver as situações extremadas, numa linguagem que rompe as fronteiras da literariedade, numa viagem de surpresa constante – sendo uma das surpresas a entrada rápida num estilo escorreito. Se a experiência das vidas retratadas é brutal, menos brutal não será o pessimismo que Venturini mete em tudo. Assim, uma decisão de vingança não significa a priori nem vitória nem heroísmo, antes a vida de todos os dias, desta vez em situações de extremismo.
O olhar de Yuna sobre a irmã parece destituído de carinho, mas também não tem crueldade. Leva à página o mundo que conhece, e isso inclui o corpo como aquilo que é, o que faz com que a personagem não passe por mais do que pode ser. O que, por vezes, pode parecer violento e degradante ao leitor é, para as personagens, a realidade da vida, e por isso é transmitida para texto sem que se meta pó de arroz. A dada altura, Yuna escreve: “se não contamos uma coisa é como se nunca tivesse acontecido” (p. 170). Essa ideia, já comum entre escritores, marca aqui a necessidade dos pormenores e da fisicalidade que a narradora mostra. Numa prosa seca e objectiva, a palavra parece criar a acção, e por não ter floreados tem impacto. Outro exemplo, pouco adiante: “Depois acompanhámo-la ao cemitério e vimos deitarem-lhe terra para cima do caixão.” (p. 171). O tom infantil, obrigatório pelas características da narradora, torna-se pungente por vir da boca de uma adulta, e por se saber o que a condiciona e constitui.
Com isto, Aurora Venturini construiu uma narrativa de fôlego, capaz de surpreender a cada passo. Perante um cenário sufocante, há uma certa leveza na forma descomplexada – quase descomprometida – com a qual os tabus entram em cena, como se põe o sangue à mostra. O ambiente quase claustrofóbico contrasta com uma prosa que, ainda que aparentemente delimitada pelos contornos intelectuais da personagem, ganha asas apesar destes ou por estes. Mas, principalmente, ganha-as pela mestria da autora, que conseguiu tornar maleável o que em princípio teria perna curta. Assim, prova que a escrita resulta quando o estilo é treinado para um certo efeito, ao invés de um lugar onde todas as hipóteses caem a eito e sem travões. O tom de permanente humor negro e de auto-depreciação sem complacências vai ganhando o leitor em toques de surpresas. A vida disfuncional, volvidas algumas páginas, transforma-se, para o receptor, na vida de todos os dias, e o que acaba por jamais deixar de surpreender é a postura sem sentimentalismos perante a dureza máxima (violações e mortes). A voz de Aurora Venturini, neste livro que agora chega a Portugal, parece coisa sem par na crueza e no impacto.
A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.