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A entrevista já durava há praticamente uma hora. Estávamos nos últimos segundos da conversa, sentados numa esplanada em frente ao Miradouro de Santa Luzia, em Alfama, Lisboa, junto ao bairro da Graça onde ele cresceu e ainda hoje vive. Nesse momento, perguntávamos a Pedro Simões, lisboeta de 28 anos que na música se apresenta como Pedro Mafama, se existe algum artista ou banda que goste muito de ouvir sem que esteja diretamente relacionado com a forma como vê e pensa a música.
A resposta é elucidativa do que é o posicionamento musical do artista e cantor português que esta sexta-feira, 28 de maio, edita o seu primeiro álbum completo: Por Este Rio Abaixo. “Quase nunca ouço música que não tenha nada a ver comigo. Ouço sempre música que me ensina alguma coisa acerca de mim mesmo. E estou sempre a pesquisar, ouço música para ver relações, para procurar relações, para me ajudar a olhar de uma forma diferente para o sítio onde vivo, para me ajudar a pensar sobre uma certa coisa que está a acontecer no mundo”.
O que fica plasmado na última resposta, e Pedro Simões já o deixara claro, é que há pouca coisa nas suas canções que seja meramente instintivo, que não seja pensado e que não tenha por trás uma intenção comunicativa que não é só musical. A música é, para Pedro Mafama, um meio de se expressar. E ele tem coisas novas e só suas para dizer e mostrar, seja lírica ou ritmicamente.
Depois de dois EPs e de algumas canções avulso, depois de um percurso ascendente em que foi dando pistas de que queria fazer canções eletrónicas que flirtam tanto com o hip-hop e R&B mais moderno como com tradições rítmicas da música popular lusófona (que abarca em si muitas culturas), Pedro Mafama edita agora um primeiro disco completo.
Por Este Rio Abaixo é um álbum cujos esqueletos rítmicos e instrumentais foram feitos por Mafama em colaboração com Pedro da Linha (da Enchufada, editora de Branko, ex-Buraka Som Sistema) e em que entram convidados vocais como o rapper e cantor ProfJam (“Cidade Branca”), o rapper, músico, compositor e intérprete Tristany (“Borboletas da Noite”) e a fadista e cantora Ana Moura (“Linda Forma de Morrer”). Mas não só: ao longo dos 13 temas do disco ouvem-se samples de Dead Combo e Michel Giacometti e o trabalho nos instrumentais de Branko (“Algo Para a Dor”) e de músicos e produtores como Ângelo Freire (guitarra portuguesa), Beatoven, Franklin Beats, Pedro O Mau (VULTO), Pedro Ferreira e Monksmith.
[o vídeo de “Estaleiro”:]
No título, o disco alude ao icónico álbum (Por Este Rio Acima) editado em 1982 por Fausto Bordalo Dias. É em simultâneo uma homenagem e uma pequena provocação, até porque este “rio” de Mafama não é o curso de saída dos navegadores e descobridores mas as rotas que ligam as tradições culturais e musicais portuguesas às árabes e africanas — de que a primeira está hoje impregnada. Em vez de ser sobre o que sai, é sobre o que chega.
O que aqui se ouve é também uma tentativa de reinterpretar ritmos, sons de instrumentos e cantes lusófonos e árabes, recriando-os com ferramentas digitais e contemporâneas (dos modos de produção instrumental ao uso de efeitos de voz) e canalizando-os para um discurso e uma ideia de nova canção popular portuguesa urbana e contemporânea.
Esta ideia de nova canção popular portuguesa que aqui se ouve é, em parte, só de Pedro Mafama: o disco, nota o autor, é uma “representação musical” dos bairros onde cresceu, das suas vivências e do que os seus olhos viram, espelha a sua vida e a sua visão de si e do que o rodeia. Mas é uma visão que se junta à de outros que, como ele, querem contribuir individualmente para um novo posicionamento da canção nacional.
Pedro Mafama diz que “há uma geração de artistas novos que querem reconciliar a tradição e o passado com o presente e o futuro” e refere que sente que “há muita gente que está a pensar naquilo que recebemos como herança dos nossos pais e dos nossos avós e que quer conciliá-lo com este mundo digital e hiper-futurista” em que vivemos. Músicos que estão, assim, a tentar incorporar nas suas canções deste milénio elementos, ritmos e marcas que situam geograficamente esta pop em Portugal e na lusofonia.
Isto já não é a pop portuguesa a querer soar à pop de Londres, do Reino Unido ou ao mais recente e popularíssimo trap de Atlanta. É a pop portuguesa a querer soar só um bocadinho a isso tudo (também “moderna” e estruturada no formato canção que vigora, também eletrónica e digital) mas também a Portugal, a África, aos ritmos e gentes e práticas e sons que aqui chegaram ao longo dos últimos séculos, aos cantes que aqui se inventaram e se estabeleceram mas que podem ser eletronizados, digitalizados e misturados com uma série de outras estéticas.
[“Contra a Maré”:]
Desde que começou a aparecer no circuito musical português, Pedro Mafama foi comparado a gente como Conan Osiris ou Rita Vian, mas, tendo pontos de contacto, tem também diferenças: é por exemplo menos hermético (porque difícil de interpretar) e irónico do que Conan Osiris e é menos afadistado no canto, menos solene e mais rapper e para a pista de dança do que Rita Vian. Até os últimos discos de Filipe Sambado e Rosalía, de certo modo, podem entrar na conversa, pela forma como misturam estéticas modernas com ritmos, instrumentos e modos de expressão antigos por forma a musicalmente dizerem algo novo ao mundo (em pop).
Sem nunca mencionar estes nomes, ou outros a que tem sido associado — o último dos quais Ana Moura, para cujo próximo álbum tanto Mafama como Da Linha contribuíram com esqueletos instrumentais, conceitos sonoros e até, no caso de Mafama, letras —, o músico fala em “diversidade” trazida por gente que está a fazer música pop que só poderia ser feita por alguém que conhece (mais ou menos conscientemente) os ritmos e as tradições musicais lusófonas, ou aquilo que as alimentou, como a cultura árabe. “Há muita gente a procurar o local não por nacionalismo mas para entregarem a sua diversidade a um caldeirão que precisa dessa diversidade. Para conseguirmos acrescentar alguma coisa à cultura global temos de trazer a nossa vivência e não a vivência dos outros”, aponta.
No início, destacávamos que Pedro Simões relaciona a experiência de ouvir música com o verbo “pesquisar”. Mas até a forma como se apresenta visualmente, esteticamente, é todo um programa identitário, toda uma expressão clara sobre quem sente que é e como se quer mostrar.
A dada altura da entrevista mostra a unha do dedo mindinho anormalmente longa, “à taxista”, mas com tratamento de unha de gel. Ali está, numa só unha, um símbolo da masculinidade mais durona aliado a um dos símbolos mais agudos da feminilidade (porque raríssimas vezes visto em homens).
“Estou a juntar os dois mundos”, diz-nos ele, já depois de referir que gosta da ideia de juntar a estética do bairrismo popular com as convenções de sofisticação intelectual, de misturar o que se depreende por bom e mau gosto — o que é um reflexo, explicará, dos mundos que habitou a crescer e que já não quer separados — e antes de deixar tudo claro como água: “Temos todos um lado masculino e um lado feminino, um lado chunga e um lado intelectual, um lado de amor e outro de violência. Somos todos uma contradição ambulante. A música que faço é uma representação artisticamente tratada das contradições que me compõem a mim e que compõem qualquer ser humano”.
“Vou estar sempre do lado do índio e não do cowboy. Interessa-me o lado B da História”
Como tem vivido estes dias à espera que o disco saia? É o primeiro álbum. Está muito ansioso?
Sinto-me muito preparado. Estou a mentalizar-me que é uma fase de mudança e de crescimento. Quero estar na melhor forma e com a confiança máxima, a tratar-me bem para que a vida me trate bem.
Havia e há alguma expectativa sobre isto, por ser disco de estreia mas também pelo percurso ascendente que tem tido. Os singles, os EPs e os concertos foram gerando essa expectativa. Sentiu alguma pressão enquanto fazia o disco? Ia pensando que pessoas esperam que isto seja a sua carta de apresentação, a sua afirmação musical mais a sério?
Foi uma coisa que esteve presente no cuidado com que as coisas foram feitas. Não iria fazer uma coisa só porque sim. Neste disco estou a trabalhar as letras de uma forma que nunca trabalhei. Cuidei dos instrumentais com o Pedro da Linha com um perfecionismo com que nunca tinha cuidado a minha música. Não o fiz por pressão mas por amor e por brio, mesmo.
Olhando não só para o disco mas para o que tem vindo a fazer: queria falar de algumas características da sua música, começando pelo uso do Auto-Tune — que está muito presente. Lembra-se do momento em que começou a explorar o Auto-Tune, a perceber como ele o poderia ajudar esteticamente?
Lembro-me de ir experimentando aqui e ali há uns anos e de ficar fascinado a pensar que aquilo parecia magia. Parecia que aquilo ia à tua mente, querias ir para uma nota e ele levava-te a ela. É um instrumento que tem algo de ciborgue, é uma prótese na voz. Não é um braço mecânico mas é uma voz mecânica, que permite chegar a experiências e resultados super interessantes se for explorado da forma certa. A mim permitiu-me explorar a melodia logo muito imediatamente, começar a pensar a melodia e começar a encontrar o tipo de melodias que representavam a minha música — ou seja, não pôr a portugalidade só numa batida ou numa estética, conseguir explorar melodias que representassem essa portugalidade.
Haveremos de falar do canto e dessas características estéticas. Mas tinha essa curiosidade: se tinha ficado com uma ideia da utilidade que o Auto-Tune poderia ter para si logo na primeira impressão.
Sim. Acreditei sempre imenso no Auto-Tune como um instrumento. Fui sempre aquela pessoa que num jantar de amigos estava a ser emotivo demais a defender porque é que o Auto-Tune era um instrumento. Tal como a guitarra elétrica existiu no seu tempo, o Auto-Tune para mim é muito parecido com a guitarra elétrica, no sentido de eletrificar um instrumento que já existia.
Um instrumento que neste caso é a voz?
Que neste caso é a voz. Parece um bocadinho… é quase a última fronteira da tecnologia, amplificarmo-nos e deixarmos a eletricidade entrar através de nós. Há alguma coisa de muito futurista no Auto-Tune. Desde muito cedo percebi que aquilo tinha potencial de ser usado como instrumento e é isso que tento fazer no disco, em vários momentos uso o Auto-Tune como um instrumento melódico que já não parece uma voz, já parece uma gaita, uma flauta, um choro humano.
É mais um elemento que, como a batida e os instrumentos, ajuda a compor uma estética?
É. Na “Leva” o Auto-Tune transforma-se numa espécie de búzio do mar. Na “Contra a Maré” o Auto-Tune distorce até parecer um choro de uma mulher lá ao fundo. Na “Borboletas da Noite” há um grito final que sou eu a berrar em Auto-Tune e que parece quase o choro de uma criança. Há muitos momentos em que saio do meu corpo e me transformo noutras coisas que não o Pedro Mafama, um homem jovem com estas características. Posso passar a ser outra coisa através do Auto-Tune. Posso passar a ser uma mulher, uma gaita, uma flauta, uma criança.
Na questão do canto há outra coisa que o distingue muito, que lhe dá uma identidade muito própria: o ritmo do canto, ser um canto mais arrastado, muitas vezes a acentuar as vogais. Como é que formou o seu modo de cantar e porque o encaminhou para cantar deste modo, para fazer as melodias com a voz que tem vindo a fazer e que faz neste disco?
Procurei introduzir em todos os elementos da minha música e do meu universo as influências que me representam, desde logo uma grande presença da tradição portuguesa, que é sobretudo no canto uma coisa arrastada, de escala menor, com alguns arabescos e com uma personalidade muito vincada nas melodias. E tentei procurar incorporar o universo magrebino, o fado, o canto alentejano, os blues, por vezes, o flamenco, a música cigana… Tentei incorporar tudo isso de forma a que represente a minha personalidade e o meu estado de espírito. Normalmente é um estado de espírito introspetivo, melancólico, mas a procurar beleza no mundo, com um ritmo que por vezes pode parecer lento mas é só lento o suficiente para conseguires apreciar o que está à tua frente.
É engraçado falar no cante alentejano e logo a seguir nos blues: têm pontos de contacto, não esteticamente mas naquilo que os inspira. Estão parcialmente associados a cantigas de trabalho, de dureza, de alguma profundeza descentralizada, digamos — e mais sulista…
Sim, sim, é verdade. O meu disco… as coisas que me interessam normalmente são mais o lado B do que o lado A. Não me interessam as grandes histórias, interessam-me as pequenas histórias, as histórias escondidas. Vou estar sempre do lado do índio e não do cowboy, vou chamar a atenção para a história moura e não para a história da reconquista. Aquilo que me interessa no rio, no Tejo, no mar e na água não são os grandes feitos dos navegadores portugueses, é a mistura que nos chegou através daí. São os pescadores, a mistura africana que veio para Portugal e para Lisboa através da água e do mar. Interessa-me o lado B da História e não o lado A, porque o lado A apanhámos com ele durante todas as aulas de história no liceu e o lado B é uma coisa que sinto que falta contar.
Relacionando isso com o seu percurso, a sua vida, o seu caminho até aqui, o que lhe parece que o pode ter levado a interessar-se por essa versão diferente das coisas, por uma certa divergência de narrativas “oficiais” e instituídas, até no som e na forma de fazer música? Em tudo parece haver uma procura de uma divergência e diferença, de um lado B. Porquê?
Acho que cresci com uma família que também foi sempre mais pelo lado B do que pelo lado A…
O quer isso dizer, exatamente?
O meu avô esteve preso pela PIDE porque tentou ajudar o lado B [sorri] a vencer o lado A. Esteve preso pela PIDE, foi torturado durante meses a fio. Tive uma família que me ensinou sempre a ter opiniões e que me incentivou a ter a minha própria perspetiva sobre as coisas. Tendo a vivência pessoal que tive, que não é uma história do outro mundo, mas tendo crescido na Graça com os bairros tradicionais todos, com a cultura dos bairros típicos e do fado ali de Alfama e da Mouraria, ao mesmo tempo estando mesmo ao lado do Intendente e do Martim Moniz que era um centro africano no centro de Lisboa…
Sinto que tive contacto com imensas culturas e imensas vivências diferentes de vida que me fizeram no final do dia juntar isto tudo e criar a minha própria perspetiva. Morei também em Bruxelas num bairro marroquino que me mostrou um bocadinho essa cultura magrebina…
Foi aí que se interessou mais pela cultura árabe e magrebina? Ou o interesse já era anterior?
Não, foi aí. Em Bruxelas a comunidade marroquina está muito, muito presente. Morei mesmo num bairro marroquino e foi a primeira vez que tive contacto com essa cultura. Percebi o quão próxima está de nós. Crescemos aqui a ouvir nos livros da escola que os mouros são super diferentes de nós, estão do outro lado, a imagem deles é sempre feita em oposição à nossa. Depois chego a Bruxelas e conheço uma quantidade gigante de pessoas de Marrocos, amigos e amigas. Conheço o senhor do mercearia que passados dois dias já está a cumprimentar e a perguntar pela família, como os portugueses fazem… E eles reconheciam também em mim as parecenças.
Lembro-me de estar a tentar perceber a origem árabe do nome Almeida, da minha família, de perguntar o que queria dizer a palavra “Alcântara” e dizerem-me que quer dizer “ponte”. Acabei a perceber a afinidade que depois destes oito séculos ainda permanece, a perceber que ainda somos muito parecidos. Foi uma coisa muito surpreendente. Depois fui juntar isso tudo com as minhas vivências no centro de Lisboa, com a cultura africana, com a cultura tradicional portuguesa e com uma cultura muito artística que vem da minha família. A minha família levava-me a galerias de arte desde pequeno. Juntando essas vivências todas, uma pessoa chega a uma harmonia e quer representar quem é da forma mais honesta possível.
Foi preciso refletir sobre si, sobre a sua vida, para perceber o que queria mostrar aos outros através da música? Foi preciso encontrar primeiro o seu lugar aqui, neste país, nesta cidade — perceber quem é e de que é fruto — para, só depois, encontrar um lugar seu na música?
Sim. Foi preciso encontrar um lugar de honestidade e foi preciso descobrir-me para poder ser perfeitamente honesto na minha música. Quando fazes música tão honesta, como as minhas letras por vezes são, estás a correr riscos. Porque as minhas letras são mesmo desabafos muito pessoais e vivências tão pessoais que se calhar quando a minha avó ouvir vai-se criar algum desconforto. Mas foi preciso chegar a um lugar de segurança e de querer não olhar para trás e ser perfeitamente honesto comigo para poder ser eu mesmo numa música. Se estivesse com insegurança sobre se isto era mesmo o meu caminho, sobre se isto era mesmo quem sou, como é que ia depois despejar vivências pessoais…
… Convictamente?
Convictamente. Se achas que se calhar aquele não é o teu caminho… quando decides ‘vou fazer música e é isto que vou fazer para o resto da minha vida’ — mesmo que depois faças outras coisas —, não importa muito se estás a expor-te de mais ou de menos. É aquilo que tens de fazer, é aquilo que tens de fazer, olhas em frente e és uma seta que não hesita.
Há pouco falávamos da forma arrastada de cantar. Não sei qual é a relação que tem com o fado e como foi evoluindo essa ligação. Começou a ouvir cedo ou mais tarde? Gosta de ouvir fado mais tradicional, menos tradicional, as duas coisas?
O fado é uma coisa que esteve sempre presente por viver na Graça. Ao domingo uma pessoa vai ao supermercado e passa pela Tasca do Jaime, que é uma tasca de fado vadio, que tem sempre fado e que transborda para as ruas da Graça. Vivendo na Graça, estou ao lado de Alfama onde passo em qualquer sítio e ouço fado. Mas o fado não me interessou a minha vida toda, de todo.
Geracionalmente faz sentido que não tenha interessado. Não é comum na sua geração crescer e passar a adolescência a ouvir fado.
Exatamente. Sinto que como muitas pessoas da minha geração, rejeitei tudo aquilo que era muito vincadamente português, lisboeta, seja o que for, em prol de uma cultura americanizada, da cultura popular anglo-saxónica. E sinto que demorou muito tempo até me reconciliar com a cultura portuguesa e com o fado. Chegou uma altura em que mergulhei no fado, por via de algumas ligações interessantes que descobri na altura. Ouvia muito blues e gostava mesmo das origens dos blues, do Robert Johnson, da Bessie Smith, aqueles blues muito do delta, do Mississippi, aquelas gravações muito fanhosas.
O chamado delta blues.
Exatamente. Descobri depois um fado da Maria da Conceição, que é o “Mãe Preta” e que dá depois origem ao “Barco Negro” da Amália. É assim uma gravação muito fanhosa e é um fado com uma batida, com um batuque — muito simples [imita o som do batuque]. Aquilo soava-me a blues, parecia quase aquelas canções do Louisiana, do voodoo. E o fado chamava-se “Mãe Preta”. Era uma canção sobre a escravatura, mas era uma portuguesa no início do século XX a cantá-la. Vi muitas ligações e pontes a surgirem e comecei à procura de mais coisas do género. Comecei a encontrá-las e a encontrar coisas no fado que se ligavam imenso com coisas que já tinha ouvido antes. E comecei a ouvir o “Gaivota” da Amália e a ouvir guitarras arabescas por trás, a começar a ouvir o arabesco e os blues que existem na voz da Amália.
A Amália tem uma música que é o “Calunga” em que diz “minha mãe chorava calunga” e “de São Paulo, de Luanda, me trouxeram para cá”. Parece outra vez uma canção de escravatura — que esta portuguesa com origens na Beira Baixa está a cantar. Porque é que ela canta esta canção negra como se fosse dela? Porque há quase uma afinidade genética que não é assumida, mas acaba sempre por emergir. Acho que não é por acaso que hoje há tantas figuras do fado que têm esta mistura africana. Acho que há uma essência africana na cultura portuguesa que acaba sempre por vir ao de cima.
“Interessa-me dar uma representação musical aos bairros onde cresci, ao que os meus olhos viram”
Num texto de apresentação deste disco referia ter um “fascínio do trágico e do apocalíptico”. Que fascínio é este? Como é que aparece e porque é que acha que pende para isso?
[pausa] Não sei. Gosto de equilibrar um lado muito autobiográfico das minhas músicas com um lado muito de ficção e cinematográfico. Interessa-me muito construir imagens com as minhas músicas. E por alguma razão — tenho de bater na madeira muitas vezes quando escrevo estas músicas — quando fiz a música “Terra Treme”, com o Pedro da Linha, estava claramente a fantasiar com um cenário pós-terramoto de 1755, com alguém à procura da amante no meio dos escombros. Porque é que esta imagem me interessou? Porque me interessam as imagens e cinematografia, ser o mais cinematográfico possível numa música. E porque as imagens apocalípticas fazem uma ponte grande entre o turbilhão de emoções que às vezes sinto dentro de mim e que quero expressar como artista e uma imagem que está à escala disso.
Isso poderá ter alguma coisa a ver com o ambiente geral que se vive nestes tempos? Inconscientemente pode estar relacionado?
Também, pois. A verdade é que a ideia do apocalipse está um bocadinho presente nas nossas cabeças, de todos, porque sabemos que estamos a caminhar um bocadinho para um abismo.
É difícil encontrar razões para acreditar num futuro espantoso e idílico.
Exatamente. E há um ano e meio estava “tudo bem” e de repente estamos aqui numa pandemia, num cenário pós-apocalíptico. Aconteceu de um ano para o outro, o trágico e o apocalíptico estão sempre ao virar da esquina. Na nossa vida pessoal também pode estar tudo bem e de repente cai um trovão e fica tudo desfigurado, tudo mal. É a realidade da vida e interessa-me explorar isso.
Falava do Pedro da Linha, que tem um papel muito importante no disco. Porque é que o quis trazer para este barco, para este primeiro disco?
O Pedro da Linha compreendeu-me logo desde muito cedo, quando comecei a lançar músicas como Pedro Mafama. Logo no início percebeu onde queria chegar, o que mostra muita sensibilidade. Houve uma altura em que as ideias não estavam tão definidas e eu não estava a ser tão objetivo como se calhar me estou a aproximar de ser, mas o Pedro da Linha percebeu logo a minha visão. Apoiou-me produzindo o “Lacrau”, pegou numa maquete que eu tinha com um sample dos Dead Combo e levou aquilo a um outro nível.
Ele quis-me dar o conhecimento dele para me ajudar a materalizar a canção “Lacrau” e quis fazer o mesmo com este disco. E não encontro muitas pessoas com quem tenha tanta afinidade e que tenham uma visão tão parecida com a minha quanto àquilo que pode ser a música popular portuguesa. É uma pessoa que está muito alinhada comigo em termos de ideias, de estar disposto a experimentar. E tem perfecionismo nos pormenores, para as coisas ficarem bem feitas. Ele surpreende-me com esses pormenores, com aquilo que ele faz com os instrumentais, e eu surpreendo-o com as letras. Por isso, é um casamento mesmo perfeito.
E com a Ana Moura, como se dá o contacto inicial? Quando é que se conheceram e como se foram aproximando?
Ela foi ver um concerto meu no verão de há dois anos, no verão pré-pandemia [2019], e interessou-me muito por mim, mostrou-se muito interessada naquilo que eu estava a tentar fazer com a cultura portuguesa e com o fado — que é o género de base dela. Começámos a trocar muitas ideias. Também procurou sempre muito o meu conselho em relação à direção que poderia ou não tomar. Sempre nos aconselhámos muito um ao outro, ela com a sua experiência e eu com…
… Com uma visão do que pode ser hoje a música popular portuguesa?
Exatamente, exatamente. Depois, a Ana tem um instinto muito aglutinador. Faz muitas tertúlias em casa dela, tinha um restaurante que era o Canto onde juntava na mesma mesa rappers com pessoas da morna, com fadistas. Tem este instinto de agregar pessoas, de promover a troca de ideias. A relação foi-se adensando e acabei por produzir o disco dela com o Pedro da Linha, acabei a dar-lhe a minha visão estética e criativa e a escrever letras para ela enquanto o Pedro da Linha punha as mãos na massa em termos de instrumentais.
Depois aconteceu também, felizmente, termos um dueto no meu disco. A Ana Moura traz uma nobreza, uma simplicidade e uma sofisticação ao meu disco que é só de cair. Trouxe um momento à minha vida e ao meu disco que eram muito precisos. Se há um naufrágio no disco, se há uma tempestade, ela é a calma depois da tempestade, é o raio de luz que aparece ali naquela faixa.
Tendo em conta o título do tema (“Linda Forma de Morrer”), as últimas palavras que são cantadas no tema (“ai que linda forma de morrer”) e a tragédia que aconteceu na família da Ana Moura… não temeu que isso pudesse condicionar as interpretações, que aquelas palavras pudessem ser interpretadas à luz do que aconteceu?
Acho que a partir do momento em que acontece uma coisa trágica há mil e uma frases, sinais e palavras que podem indicar para aí. Começamos a procurar ligações e se quisermos encontrar coincidências e sinais, acho que é fácil acontecer.
Já muita gente fez isso com o videoclip da “Vinte Vinte”…
Exatamente. Posso dizer que neste dueto interessa-me a contradição entre a esperança e a tragédia, que é uma coisa que está sempre presente na minha música e no meu disco inteiro e que é uma realidade da vida: está tudo bem, estamos ao sol e está tudo lindo, a brisa está suave, depois passado um bocadinho vêm as sombras e fica tudo mal. Incorporo isso em tudo aquilo que faço, o lado bonito e o lado feio, o lado bom e o lado mau.
Há aqui samples de Dead Combo e do Giacometti. Temos também a guitarra portuguesa tocada pelo Ângelo Freire. Houve algum momento que se lembre que tenha sido especialmente importante para a decisão de querer situar a música que faz num espaço geográfico concreto, dar-lhe elementos que façam com que ela só pudesse ter sido feita por si, claro, mas aqui, neste sítio lusófono?
Neste momento interessa-me muito situar a minha música geograficamente porque interessa-me dar uma representação musical às minhas vivências, aos bairros onde cresci e às coisas que os meus olhos viram. Sendo que a música não é fechada geograficamente, tento relacionar com outras culturas. Vejo a minha cidade e a nossa cultura como um degrade em que outras culturas entram por aqui, fazem parte deste degrade.
Como um polo aglutinador de uma série de culturas, que se misturam?
Sim, exatamente. E mesmo que sejam culturas que não estão hoje presentes fisicamente, como a cultura árabe, estão presentes culturalmente porque são muitas as gotas que compõem este rio [o disco chama-se Por Este Rio Abaixo]. Mesmo que existam culturas que não estejam presentes fisicamente nas nossas ruas ou cidades, estão presentes culturalmente através da herança que nos deixaram. Neste momento interessa-me muito fazer música que represente o sítio de onde venho, daqui a três anos se calhar já não.
Não é uma coisa que tenha como definida, que a sua música terá sempre esse elemento?
Não. O que tenho definido é que vou sempre fazer música que reflita aquilo em que estou a pensar, aquilo que acho que é oportuno e que acho que o mundo precisa e aquilo que vai criar uma conversa interessante no mundo.
Estava a ouvi-lo e a lembrar-me de uma conversa que tive com o Branko há uns tempos, em que falávamos do agente cultural numa dimensão quase antropológica e sociológica. Claramente a música que faz, enquanto Pedro Mafama, é muito pensada. É muito pensado o que quer transmitir com os sons, com os ritmos e com as palavras— e muito relacionado com a história, com a tradição, com um posicionamento sobre si, sobre o país e sobre o mundo. Há uma pesquisa, uma investigação histórica, cultural e musical, digamos, para depois fazer canções? Houve-a para fazer este disco, desde logo?
Sem dúvida. Há imensa pesquisa que me permitiu chegar aqui e ter esta visão sobre as coisas. Não diria que tenho uma visão antropológica porque o que estou a fazer é dar o enquadramento certo para aquilo que quero transmitir e para os meus sentimentos. Estou a tentar criar o cenário perfeito para transmitir-me de forma certa.
Falava de antropologia mais como primeira fase, como processo de investigação, de conhecimento. Depois é que virá a aplicação desse conhecimento àquilo que sente, que quer dizer, que imagina de novo.
Sim. Há sem dúvida uma pesquisa intensa. Se a antropologia é estudar outra cultura, estou a estudar a minha. Estou a estudar os vários componentes daquilo que me compõe a mim. Não é antropologia no sentido em que não estou a ter um olhar sobre o outro; estou a ter um olhar sobre nós, que se relaciona com os outros.
Falámos um bocadinho do fado e da sua ligação ao fado. Geracionalmente a sua geração não cresceu tão sintonizada com o fado como gerações anteriores. De repente há aqui um diálogo com uma tradição estética do fado, levando-a para campos digitais e eletrónicos. Isso trouxe-lhe chatices com puristas? Procurando um caminho que é original e diferente, há inevitavelmente um embate ou não o sentiu?
Por acaso não, senti sempre uma adesão incrível de pessoas de uma geração mais velha. Tive sempre grandes elogios dos pais das pessoas com quem trabalhava, dos pais dos meus amigos que ouviam a minha música. A geração anterior viu sempre com muita felicidade e muita gratidão uma geração nova estar a reinterpretar coisas que poderiam ficar para trás se alguém não pegasse nelas.
Do mundo do fado só recebo amor e boas reações de fadistas e pessoas próximas desse mundo. Todas as reações em relação a revisitar esta tradição têm sido de gratidão e de felicidade por alguém o estar a fazer.
Acho que quem ouvir esta música, sobretudo se estiver desfasado dos modos atuais de criação musical, pensará: como é que este puzzle se constrói na prática?
Há dois momentos no disco. Há muitas músicas que foram começadas por mim, individualmente, no meu quarto — como fiz tudo até chegar a este disco. E depois há o momento em que o Pedro da Linha se junta oficialmente a mim neste álbum e construímos coisas em conjunto. O momento de criação solitária, que foi a regra até aqui, passa por pegar no computador, pegar no microfone com o Auto-Tune ligado e explorar uma ideia que me fez pegar no computador e no microfone.
Isto na parte de canto? E na batida?
As duas coisas surgem ao mesmo tempo. Começo às vezes com a voz e depois construo [o instrumental] mas as duas coisas surgem muito ao mesmo tempo. Posso começar com uma melodia, também, com um instrumental, e só depois ponho voz, acrescento instrumentos virtuais [digitais] e construo o esqueleto daquilo que se vai tornar uma canção. Ou posso começar com a voz. Mas até ao Pedro da Linha se juntar oficialmente como produtor as músicas eram começadas com voz e instrumento digital a surgir ao mesmo tempo. Depois com o Pedro da Linha já concebemos os dois a música em conjunto. É sempre feito de forma digital.
Com software, imagino? Acredito que haja muita gente que não saiba assim à partida que com um computador e um programa de computador se possam construir canções com instrumentos tão diferentes, sons tão diferentes...
Vamos ser práticos: começa com um PC a abrir-se, com uma ideia musical a surgir e aí carregamos logo a pesquisa toda que vem de trás, sobre que instrumentos queremos e vamos usar, que guitarra sintética é que vamos escolher, que melodias nos interessam. Fazemos aquilo de forma rápida e natural porque há uma conversa que vem de trás, uma pesquisa que os dois temos.
Há um saber fazer que vem de muita tentativa e erro — é o que nos faz conseguir fazer a música de forma natural. Há músicas que saem mesmo muito rapidamente. A “Que o Céu Não Caia” foi feita numa tarde. Quando há uma sintonia de ideias a criatividade pode fluir de forma rápida e solta.
É claro que há coisas na atual indústria musical que podem ser criticadas e prejudiciais. Mas imagino que para um artista de hoje a possibilidade de fazer música a partir de um computador, a possibilidade de tendo uma visão e ideia de som conseguir materializá-la num portátil, seja quase um parque de diversões. De repente consegue-se criar um universo musical a partir de uma coisa, um computador, que no passado ninguém imaginaria que existiria e que permitiria isto: fazer música.
É, há uma grande facilidade em pegar no computador e fazer uma batida que parece uns bombos de Trás-os-Montes. E depois pegar no microfone e através dos meios digitais fazer um coro sintético que parece um coro transmontano, através da junção de várias vozes diferentes distorcidas com o Auto-Tune. Há uma grande facilidade também em depois pegar num sample do Giacometti e trazer ali um barulho de um canto de trabalho que dê terra e dê vida ao som. Há uma grande facilidade em fazer coisas muito digitais que são feitas às vezes muito rapidamente, porque o digital facilita os processos, e depois soa muito orgânico porque os processos digitais também permitem essa elasticidade e humanidade.
Tendo-se a visão musical, hoje em dia há muito mais ferramentas para a pôr em prática?
Sem dúvida.
“Todos temos um lado masculino e feminino, chunga e intelectual, de amor e violência. Somos uma contradição ambulante”
Num aspeto mais pessoal, falava há pouco do tempo que viveu em Bruxelas, em Erasmus. À exceção de essa fase, viveu sempre em Lisboa?
Fora isso, vivi sempre em Lisboa. Sou nascido e criado na Graça.
Dizia que a sua família é uma família de artistas. O que faziam os seus pais?
Venho realmente de uma família de artistas. Tenho artistas plásticos muito bem sucedidos na família e outros muito mal sucedidos [ri-se], uma família de artistas tem sempre as suas… [ri-se outra vez]. A minha mãe é designer e o meu pai é arquiteto. Pendi para aí cedo, comecei a desenhar muito bem — desde que me lembro — e tive sempre uma facilidade criativa gigante porque me foi dada a liberdade para ser eu mesmo. Tive sempre uma base de educação em que me levavam a ver coisas novas todos os fins-de-semana, a minha mãe levava-me a galerias a que na altura não queria ir. Mas agora essas experiências acompanham-me.
Adoro o facto de ser um gajo que cresceu na Graça mas que tem uma família de artistas e de intelectuais e de revolucionários e tudo isto — e que conseguiu juntar as duas coisas, ter tido o estar a brincar na rua, jogar futebol com os meus amigos do bairro e a andar por caminhos mais soltos e de bairro durante a adolescência mas depois ter tido também o mundo artístico ao qual a minha mãe me introduziu desde muito cedo.
Esses dois mundos e essas raízes podem ajudar a explicar um pouco o que dizia do interesse pelo “lado B”, por misturar coisas de universos diferentes, aparentemente contraditórias. Podem ajudar a explicar que não queira ser uma só coisa, simples e convencional.
Exatamente. O que me interessa sempre é essa contradição, é juntar duas pontas que parecem díspares. Gosto de ter uma imagem muito bairrista mas ao mesmo tempo haver um minimalismo nessa imagem e uma sofisticação dentro do bairrismo popular. Isso representa dois dos mundos em que cresci. Tento ter um lado muito sujo na minha música e outro minimalista ou feito com o que chamamos bom gosto. Interessa-me o bom gosto e o mau gosto estarem lado a lado. O mau gosto é uma ideia preconcebida, pronto, mas…
A convenção e a não convenção a misturarem-se?
A estarem lado a lado. A contradição é o que me interessa, mesmo. Usar a unha do mindinho [comprida] à taxista, que é usada [ri-se] para limpar a cera dos ouvidos e para fazer gestos violentos com a mão enquanto gritam com o trânsito — uma unha que é exemplo da masculinidade mais forte, do que é ou era ser macho — e depois dar-lhe um tratamento de unha de gel, que é o símbolo mais feminino que pode haver. Ao fazê-lo estou a misturar o símbolo mais feminino com o símbolo mais masculino, a juntar os dois mundos. Quero fazê-lo com algum bom gosto, ou com algum minimalismo, de modo a que não seja uma coisa apenas chocante e disparatada, sendo antes uma coisa que faz sentido e que tenha alguma harmonia e poesia.
Dizia também que andava mais solto na adolescência. Como era nesses tempos?
Um bocado um pesadelo. Tive muitos episódios… de violência. Tive episódios de violência com professores, divaguei muito na minha adolescência e fui por caminhos que não vou dizer que me arrependo mas que poderia ter sido fácil não conseguir recuar e voltar para trás. Estou muito feliz por ter conseguido dar a volta.
Depois de uma adolescência super complicada e de um liceu que quase não consegui acabar, consegui por força da minha persistência ter um estágio na Enchufada [editora e agência musical] que me abriu horizontes incríveis e que me deu um contacto próximo com os Buraka Som Sistema, que foi dos fenómenos mais importantes que aconteceram na música portuguesa na última década. Depois de andar pelos bairros numa vida de violência, de depressão e de caminho perdido, conseguir entrar para um estágio na Enchufada, entrar para a faculdade e descobrir todo um mundo de conhecimento… porque eu estudei artes plásticas e isso leva-te a estudar filosofia, por exemplo.
É um mundo — um meio — completamente diferente.
Completamente diferente. Depois no final disto tudo, de sair dessa adolescência complicada dos bairros, de ter ido estagiar, de ir para a faculdade, de entrar no mundo intelectual e mergulhar nos livros sem olhar para trás, depois disso tudo ainda conseguir arranjar um projeto artístico como Pedro Mafama que junta as duas coisas — os livros de arte, a teoria da arte e a filosofia com a vivência dos bairros e todo esse universo — deixa-me muito feliz. Estou satisfeito.
Falava na persistência para ir estagiar para a Enchufada. Estava a pensar no motivo que o levou a querer tanto estagiar ali. A música dos Buraka Som Sistema era popular nos meios em que se movia? Era uma coisa consensual na altura? Obviamente teve um impacto e uma dimensão gigante, mas no meio em que se movia era apreciada?
Os Buraka conseguiram fazer isso, conseguiram quase o consenso: tocavam o puto do bairro, tocavam o intelectual de esquerda… os Buraka foram consensuais.
Embora houvesse naquele tempo alguma resistência — ainda hoje haverá, talvez menos — à música ancorada em ritmos africanos, afro-lisboetas.
Sem dúvida, mas acho que eles conseguiram juntar muitos mundos que ainda nunca tinham estado juntos. Aquilo que me motivou para um estágio com a Enchufada, que era a estrutura central dos Buraka Som Sistema, foi ter a perfeita noção que aquilo era a coisa mais inovadora e mais excitante que estava a acontecer aqui. Era disso que queria estar próximo.
Quais são os pontos de contacto mais próximos que vê entre aquilo que é fora da música, no dia-a-dia, na forma de viver, e a estética da sua música, aquilo que é artisticamente como Pedro Mafama?
Lidar bem com as contradições, aprender a aceitar que somos todos várias coisas, que temos todos um lado masculino e um lado feminino, um lado chunga e um lado intelectual, um lado de amor e outro de violência. Somos todos uma contradição ambulante. A música que faço como Pedro Mafama é uma representação artisticamente tratada das contradições que me compõem a mim e que compõem qualquer ser humano.
Falava há pouco da sua visão da música portuguesa. Que música popular portuguesa nova é esta? E quem é que sente que tem como par?
Sem querer circunscrever uma coisa que sinto que está realmente a acontecer a definições demasiado fechadas, diria que há uma geração de artistas novos que querem reconciliar a tradição com o presente, o passado com o presente e com o futuro. Sinto que há muita gente que está a pensar naquilo que recebemos como herança dos nossos pais e dos nossos avós e que quer conciliá-lo com este mundo digital e hiper-futurista no qual vivemos hoje em dia. Sinto que há uma quantidade de pessoas que estão a querer pensar sobre o local como resposta a um global que nos chegou às vezes de forma quase opressiva — e aqui estou a pensar na cultura pop anglo-saxónica.
Foi uma cultura que nos colonizou?
Foi uma cultura que nos colonizou. Sem desrespeito a culturas que foram mesmo colonizadas de forma violenta…
Aqui será quanto muito uma colonização cultural.
É um tipo de colonização, é um tipo de imperialismo sem dúvida. Não podemos ignorar que o MacDonald’s e a Britney Spears são uma forma de imperialismo. E a Nike também. Nós crescemos com isso, com um império que tem uma marcação cerrada no mundo e que tem uma maneira muito específica de executar esse imperialismo, uma maneira aparentemente muito fluída e recetiva mas que tem regras muito definidas. Também sou fascinado por esse universo mas quero proteger-me dele, quero pensar pela minha cabeça. Sinto que é isso que está a unir muitas pessoas: há muita gente a procurar o local não por nacionalismo, não por quererem dominar os outros mas por…
… Quererem mais diversidade?
Para terem mais diversidade e para entregarem a sua diversidade a um caldeirão que precisa dessa diversidade. Por alguma razão o local hoje em dia tem muita importância. Não é por conservadorismo, é por diversidade e porque para conseguirmos acrescentar alguma coisa a esta cultura global temos de trazer a nossa vivência e não a vivência dos outros.
O percurso que tem como artista certamente vai também orientando a música que vai ouvindo. Mas há artistas e bandas de que goste muito e que continue a ouvir regularmente em que não encontre ponto de contacto direto com a música que faz, com o universo deste disco?
Aquilo que me orienta é o facto da Amália ter feito música que aglomerava uma série de misturas… porque lá está, tinha o “Calunga”, cantou o “Barco Negro”, tinha uma série de influências que não se restringiam às nossas fronteiras territoriais. A cantora preferida da Amália era a Umm Khalthoum, que era uma egípcia. A Amália já incorporava em si uma visão que ia além das fronteiras territoriais de Portugal. Os Dead Combo ajudaram-me muito, também, a chegar a uma visão sobre a cultura portuguesa porque já incorporavam elementos do flamenco que misturavam com o fado, com sonoridades meio árabes e com uma coisa muito africana. Tinham uma visão muito definida, com a qual me identifico muito, sobre a cultura portuguesa, que é uma cultura que se relaciona com muitas outras que estão à nossa volta.
Os Buraka Som Sistema fizeram isso, também. O objeto deles de reinterpretação e de matéria transformadora não foi a música tradicional portuguesa, mas a matriz de mistura que eles têm na sua música sinto que tem algo em comum com a matriz da Amália e dos Dead Combo. A partir daí vou recolhendo uma série de influências de cantores…
Mas aqui até estava a pensar em coisas que não tenham o mais pequeno ponto de contacto com o seu universo, com a sua visão musical, com esse caldeirão de misturas — em coisas que possam até não lhe interessar tanto conceptualmente mas que goste de ouvir.
Pois mas a questão é essa: eu quase nunca ouço música que não tenha nada a ver comigo. Eu ouço sempre música que me ensina alguma coisa acerca de mim mesmo. E estou sempre a pesquisar. Ouço música para ver relações, para procurar relações, para me ajudar a olhar de uma forma diferente para o sítio onde vivo, para me ajudar a pensar sobre uma certa coisa que está a acontecer no mundo.
Voltamos à antropologia e juntamos-lhe agora a sociologia.
Exatamente.