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© André Correia

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Estas crianças esperam que um dia os pais saibam como educá-las

Há quatro anos a Câmara de Lisboa deixou de pagar os 2,5 milhões de euros como compensação do valor que recebia pela Feira Popular de Lisboa. Isso obrigou a fundação "O Século" a reinventar-se.

Hoje está mais carente. Uma virose obrigou-a a cuidados médicos e a medicamentos que derrubam a energia própria dos seus quatro anos. É a mais nova do lar que acolhe crianças entre os seis e os 12 anos e, por ter apenas quatro anos, é a exceção. É uma de quatro irmãos que chegaram à fundação “O Século”, por ordem da segurança social, porque a mãe foi presa e cumpre pena de cadeia. A ideia é que voltem para casa assim que ela saia em liberdade. A “Casa das Conchas” é um dos 16 serviços da fundação que eram financiados pela Feira Popular de Lisboa. Depois de encerrar a feira, a câmara de Lisboa acordou pagar 2,5 milhões de euros por ano à instituição. Mas em 2010 deixou de pagar. E a fundação quase fechou portas. Acabou por reinventar-se: vende serviços de catering, lavandaria e, até de turismo, através de um hostel que funciona lado a lado com os lares de acolhimento de crianças e jovens em risco. Ainda assim, o dinheiro não chega.

"Ana" tem quatro anos. É a mais nova da "Casa das Conchas". A mãe está presa

© André Correia

“Ana”, chamemos-lhe assim, passeia pelos corredores da “Casa das Conchas” à espera de um carinho. Agarra-se às pernas de Carla Lima, a diretora técnica, e teima em não soltar um sorriso. Ainda está adoentada. Uma das irmãs mais velhas aproveita para dormir a sesta no sofá da sala de convívio. Há apenas um computador e os minutos no Facebook são repartidos milimetricamente entre as 25 crianças que ali moram. No grupo há sete fratrias, ou seja, grupos de irmãos.

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"Este é um lar misto que está direcionado para trabalhar com as famílias. Tem uma equipa educativa e uma outra equipa técnica".
Carla Lima, diretora técnica da Casa das Conchas

Carla Lima passa a liderança da visita guiada a “Joana”, de 15 anos. Olhos negros, cabelo pelos ombros, acolhe a tarefa de “representar a casa” com gosto. Quando o assunto é o passado, o sorriso desmaia. É a única no lar que chegou na perspetiva de ser adotada. As educadoras reconhecem a dificuldade em adotar crianças a partir dos 12 anos. Não as transmitem, porém. Os pais de Joana deixaram-na entregue à avó, que morreu. Uma irmã está em casa de uns tios. E ela foi posta ali. Longe da família que lhe resta e sem possibilidade de ser reintegrada pelos laços de sangue. Todos os dias se levanta e vai para a escola na perspetiva de um dia ser educadora de infância. “Eu vou ser sincera, não gosto de estar aqui”, diz, depois de mostrar os quartos decorados ao gosto de cada criança. O desabafo, afirma Carla Lima, é “normal”. Por mais que a luta seja para que pareçam uma família, a “Casa das Conchas” é um lar de acolhimento de crianças e jovens retiradas aos pais.

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Ivan, 17 anos, tem um comportamento diferente. Chega do curso de viveirista como quem chega a casa. À sua verdadeira casa. E é como se fosse. Foi ali que passou toda a vida. Apesar de um braço amputado por causa de um problema de saúde, Ivan faz surf e atletismo e “é completamente autónomo”. Chegou ali pouco depois das crianças – hoje algumas adultas – que deram origem à criação do lar. A história remonta a 2001.

Naquela altura já existia a “Casa do Mar”, o lar da fundação “O Século” que acolhe crianças entre os 12 e os 18 anos, mas que fora projetado para acolher crianças mais pequenas. “A Segurança Social autorizou o projeto com a condição de receber estas crianças mais velhas, porque era o que fazia mais falta”, explica Mafalda Morgado, à frente do Departamento de Ação Social. Em 2001, porém, as autoridades encontraram mais de 20 crianças de nacionalidade guineense num Mosteiro em Mafra, onde funcionava uma ordem polaca.

“As famílias chegavam e como não tinham condições para manter os filhos, entregavam-nos ali”, recorda.

A Segurança Social avisou a fundação de que que teriam de receber o grupo de miúdos, cujo passado era então completamente desconhecido. Ninguém sabia como se encontravam. Alguns tinham problemas de saúde graves e era preciso criar um acolhimento de emergência para receber e cuidar destas crianças. Assim nasceu a “Casa das Conchas”.

No escritório de Carla Lima ainda há fotografias desse tempo. A criança mais nova do grupo de guineenses tinha um ano. Na imagem todos sorriem, num completo desconhecimento do que lhes tinha acontecido. Algumas dessas crianças voltaram para os pais, outras cresceram no lar, com janelas viradas para o mar, em São Pedro do Estoril, Cascais.

As instalações da fundação "O Século" estão viradas para o mar

© André Correia

Nas paredes desta casa há fotografias de todas as 47 crianças que já passaram por aqui. Nos últimos treze anos, 64% voltaram para as suas famílias biológicas depois de um trabalho de intervenção que passa por fins de semana e férias em casa dos familiares e atividades conjuntas que as equipas preparam e monitorizam. 19% já não voltaram para casa. Atingiram a adolescência e acabaram por crescer ali até serem autónomas. Hoje têm as suas vidas. Só 2% foram dadas para adoção e uma delas chegou a regressar. O pai adotivo acabou por levá-la de volta depois de um trabalho conjunto com as técnicas da fundação. Houve ainda quem fosse transferido para outras instituições (15%).

A “Casa do Mar” sofreu obras recentemente. Na decoração integram-se pinturas feitas pelas mãos das 12 crianças e jovens que aqui estão acolhidas. Também elas foram retiradas aos pais na sequência de processos de promoção e proteção de crianças e jovens em risco. Foram vítimas de violência ou de negligência. Também há crianças mais novas do que era previsto, mas mais uma vez foi para proteger e manter unida uma fratria de três irmãs.

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A esta hora, a meio da tarde, estão todas nas suas ocupações no exterior – ensino regular, cursos profissionais. Neste lar elas têm vidas livres. É como uma casa. Saem para trabalhar e até podem sair à noite. Duas das raparigas frequentam o curso de estilismo. No quarto exibem fotografias em várias poses. Parecem irmãs, família. “Só pensam em moda. Andam sempre juntas”, diz ao Observador Catarina Capinha, a responsável pelo lar.

“Cátia” é a única que ali se encontra. Está deitada na cama a ler um livro e olha desconfiada. Ao Observador não consegue eleger o que aprendeu ali nos últimos três anos. “Aprendi tudo. Esta casa é a minha vida”. São 19 anos de uma vida dura numa realidade inteligível para o comum dos mortais. Nasceu na Guiné e foi trazida para Portugal em “circunstâncias” estranhas – que não podem ser divulgadas por serem alvo de um processo-crime em curso. Foi abandonada por todos, até que a Segurança Social a mandou para ali. Cátia tirou um curso de pastelaria e já sabe gerir a semanada que a fundação lhe dá. Mas ainda não pode entrar no mercado de trabalho por uma questão burocrática. E de justiça. Enquanto o processo não for resolvido, não dispõe dos documentos legais exigidos para um contrato de trabalho.

Além da gestão da semanada, há quem chegue a este lar, já adolescente, sem saber sequer cuidar da sua higiene pessoal.

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Mas como é que a Fundação tem dinheiro para tudo?

A fundação “O Século” foi criada formalmente em 1998, mas o seu projeto remonta já a 1927, quando nasceu a Colónia Balnear Infantil “O Século” que começou a acolher crianças carenciadas de todo o país durante as férias do verão. A ideia partiu de João Pereira da Rosa, um homem que começou como empregado do jornal o “Século” e que subiu a pulso até se tornar proprietário do jornal. Em 1943, aliás, a colónia destinada às crianças desfavorecidas era paga através de donativos, provenientes das campanhas que o jornal fazia. Foi neste ano que um amigo de João Pereira da Rosa, o Conde de Monte Real, doou os terrenos no Estoril para construir as instalações viradas para o mar onde hoje permanece a fundação.

Foi João Pereira da Rosa quem decidiu criar a Feira Popular para financiar a obra daquela que viria a tornar-se a fundação “O Século”. Durante anos foi este centro de diversão que pagou a funcionários e serviços prestados. Até 2003, quando a Câmara de Lisboa decidiu acabar com o certame porque precisava dos terrenos. Como contrapartida, e até encontrar uma alternativa, a autarquia decidiu pagar 2,5 milhões de euros todos os anos à fundação.

“O valor foi decidido e aprovado pela Câmara e aprovado em Assembleia Municipal”, recorda ao Observador o presidente da fundação, Emanuel Martins. Há quatro anos, no entanto, o dinheiro não chegou. “Telefonámos para a câmara e disseram-nos que não havia dinheiro para isso. Deram-nos duas opções: seguir para tribunal ou aceitar o valor da concessão de um posto de abastecimento de combustível”.

Feitas as contas ao tempo que o processo ia decorrer em tribunal, a direção optou pela segunda hipótese. “E ficámos com 500 mil euros anuais em vez de 2,5 milhões de euros”. Durante dois anos havia poupanças, mas depois pensou-se que seria o fim.

“Olhamos para o que tínhamos aqui e pensamos no que podíamos fazer. Tínhamos uma cantina, decidimos vender comida para fora, para associações e escolas. Tínhamos uma lavandaria, melhorámo-la e começámos a vender serviços para cabeleireiros, restaurante e hotéis”, explica Mafalda Morgado. A isto juntou-se um projeto de turismo social: transformaram-se as camaratas que antes eram usadas na colónia de férias em quartos de hostel. Nasceram 37 quartos, 12 dos quais com vista para o mar.

A fundação reinventou-se, mas as contas ainda estão longe de perfazer o valor recebido pela autarquia, Emanuel Martins previa para o final deste ano de 2014 – o primeiro ano completo do funcionamento destes projetos – “um encaixe de 650 mil euros”. Deve conseguir chegar aos 400 mil. Para as contas contribuiu a perda de contratos do serviço de catering com outras instituições de solidariedade social. “O Estado obrigou-nos a debitar o IVA a instituições que normalmente estão isentas de IVA e encareceu o preço das refeições. Havia quem fizesse mais barato”.

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Mas nem tudo são tristezas. Na casa que pretende dar “amor” às crianças que ficaram sem os pais, ainda que momentaneamente, em 2013 reduziu-se um défice de 2,1 milhões de euros para 600 mil euros. “Ainda não encontramos a solução completa”, afirma o presidente. Mas para lá caminham. Ou tentam.

 

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