“O Fim da Linha” é um trabalho especial multimédia do Observador em duas partes sobre o impacto da pandemia no Cemitério do Alto de São João.
Não se ouve mais nada além do barulho da terra a bater na madeira do caixão. Sabe-se pouco sobre quem está dentro dele: é uma mulher chamada Maria e morreu de Covid-19. Chamam-lhe indigente porque não tem quem a leve à cova 1861 da secção número 18 do cemitério do Alto de São João. Mas não está sozinha: vai pelas mãos de quatro coveiros vestidos com equipamentos de proteção individual completos, que lhe deram a mesma solenidade de qualquer outro funeral; e o momento é acompanhado por um padre e um outro homem, membro de uma congregação religiosa, que vão orando enquanto o caixão desce à terra.
Todos os dias se multiplicam as novas sepulturas neste cemitério de Lisboa. Ali estão já repletas de túmulos duas secções transformadas em autênticas trincheiras para acomodar as dezenas de mortes diárias em Lisboa nas últimas semanas. Maria foi só mais uma: no dia em que foi enterrada, outras seis pessoas já tinham sido sepultadas à sua esquerda e mais cinco foram enterradas à sua direita. Centenas tinham chegado poucos dias antes. Desde o final de dezembro até à segunda-feira passada, 15 de fevereiro, mais de 300 covas foram desimpedidas só naquele talhão. São sete filas, cada uma com mais de 30 sepulturas separadas por meros centímetros, abertas com uma escavadora num dia, fechadas à mão com pás e enxadas no outro.
A esmagadora maioria dos corpos ali depositados são vítimas da Covid-19. Vieram de um número — o de novos casos de infeção pelo coronavírus registados pelas autoridades de saúde— e a um número voltaram: o da cova onde agora repousam, indicado numa placa de metal lacrado, espetada no topo do túmulo. Nada os distingue senão aqueles quatro dígitos e as coroas de flores com que algumas ainda estão ornamentadas. Só uma delas é antiga o suficiente para já ter uma campa: o de uma mulher cujo corpo, 13 anos após a morte, ainda não pode ser exumado.
O solo revolvido pela escavadora, as enxadas cravadas na terra e o volume de flores ainda frescas amontoadas junto a um muro denunciam o ritmo de trabalho que a pandemia trouxe aos coveiros, que passaram um sábado inteiro a abrir túmulos. Neste momento estão a escavar-se 12 novas sepulturas a cada dois dias, todas metodicamente alinhadas: 65 centímetros de largura, dois metros de comprimento e 115 centímetros de profundidade. O esforço é maior do que em qualquer outro momento da pandemia. Mas o espaço está a esgotar-se.
O problema de espaço que pode ser ainda maior passada a Covid-19
O primeiro corpo a ser enterrado na segunda secção do cemitério destinada a receber vítimas da Covid-19 foi sepultado a 29 de dezembro na cova número 1560. Desde então, e até ao fim da última segunda-feira, num espaço de 48 dias, foram enterradas aqui 306 pessoas, 80% das quais vítimas do coronavírus, deixando espaço para apenas mais cerca de 50, antes de se passar para o segundo talhão. Se recuarmos até 2019, uma secção inteira bastaria para receber todos os mortos sepultados no cemitério ao longo de um ano inteiro. Agora, menos de dois meses bastaram para ocupar metade do mesmo espaço.
Os números também impressionam se olharmos apenas para janeiro. No primeiro mês de 2020, em vésperas de a Covid-19 ter entrado em Portugal, o cemitério do Alto de São João sepultou 250 pessoas e fez 381 cremações. Este ano, no mesmo mês, houve 422 enterros e 549 cremações. E o ritmo não abrandou em fevereiro: os cemitérios estão ainda a receber os corpos das vítimas registadas no pico dos óbitos por Covid-19.
Ricardo Pereira, coveiro responsável pela secção 18, confirma que a tarefa se tornou especialmente desgastante há um mês. Sempre que vê as notícias sobre os que estão na linha de frente do combate à pandemia e sabe do número de óbitos por Covid-19, pensa no trabalho que o espera dali a uns dias, a ele e aos colegas que, por oposição, estão no fim dessa mesma linha. Mas “o ser humano tem de se adaptar”, relativiza: “Todos os dias são difíceis, mas, como a maioria destes enterramentos são de pessoas que morreram de Covid-19, temos de usar os fatos e as máscaras. Acabamos a transpirar ao fim do primeiro”.
Quando o espaço na secção 18 terminar, os enterros vão passar para a secção 46, na ponta leste do cemitério. Mas depois não haverá mais espaço: para abrir novas sepulturas, os corpos depositados há pelo menos cinco anos precisam de ser exumados — e só se já se tiverem decomposto e restarem apenas as ossadas. Mas isso tem de ser feito na presença da família. Com o país em confinamento e a mobilidade reduzida, pode demorar muito tempo até que se possam marcar novas exumações para libertar espaço.
O plano inicial não era este. A primeira e maior secção do cemitério, uma grande área verdejante capaz de acolher milhares de sepulturas, está guardada para receber as vítimas mortais de uma calamidade que eventualmente aconteça em Portugal. Quando a pandemia entrou no país e os cemitérios se começaram a preparar para um aumento da mortalidade, ponderou-se enterrar neste espaço todas as vítimas de Covid-19 em Lisboa e Vale do Tejo. Mas o número reduzido de mortes registadas na primeira vaga, o receio de transformar a secção num destino de turismo mórbido e o risco de inutilizar durante longos anos um espaço no coração do cemitério ditaram que as vítimas mortais da Covid-19 fossem enterradas nas mesmas secções que os mortos por qualquer outra causa. Assim “não há marginalização”, considerou Fausto Caridade, encarregado do cemitério.
Mas a decisão trará consequências a longo prazo. Os corpos das pessoas que morreram de Covid-19 vêm envoltos em até três sacos de plástico — material que demora cerca de 450 anos a decompor-se — e no interior de um caixão selado com zinco e embrulhado em papel celofane. Enquanto os corpos estiverem dentro desse plástico vão decompor-se muito mais lentamente. Dentro de cinco anos, se as sepulturas forem abertas a pedido da família para os corpos serem exumados, é mesmo possível que tenham mumificado, tal como os coveiros já observaram em cadáveres de pessoas que morreram por outras doenças infecciosas.
Por isso, o mais provável é que, cinco anos após a morte, se a família solicitar a exumação, os coveiros se limitem a rasgar os sacos de plástico. Nos casos em que isso não acontecer, os corpos podem demorar no mínimo 20 anos até se decomporem. Enquanto assim for, as covas com vítimas de Covid-19 ficam impedidas de receber novos enterros — quando, numa situação normal, todo o terreno de uma secção poderia ser reutilizado ao fim de cerca de 10 anos. “Teria sido mais prático enterrar aqui [na área reservada do cemitério] os mortos da Covid-19 logo a partir de março”, considerou o coveiro. “Se calhar, se soubéssemos que íamos chegar a estes números, as decisões teriam sido outras.”
Fornos de cremação atingem mais de 1000ºC e nunca chegam a arrefecer
A primeira secção a receber mortos por Covid-19 foi a número 20. Ali, o primeiro enterro foi feito no final de março e o último nove meses depois. Das cerca de 620 pessoas enterradas naquela secção, mais de metade morreu por causa da Covid-19. Miguel Carreira é o responsável por aquele espaço do cemitério e foi ele quem exumou os corpos que ali estavam anteriormente para libertar espaço para todas as vítimas da Covid-19 enterradas até dois dias antes do fim do ano. Agora que os enterros passaram para outra secção, ajuda os colegas do talhão vizinho e garante que as sepulturas abertas ao longo do ano passado se mantêm “apresentáveis”: “A dignidade também cá está, as famílias gostam disso”.
Miguel Carreira ajeita as campas ao som de jazz e plantou canteiros em torno da secção com malva rosa, aloe vera, cevadilha, um carvalho, vários arbustos de que não sabe o nome e algumas das flores abandonadas nas campas. É um dos escapes que utiliza para gerir as emoções desde que a Covid-19 entrou no cemitério. Isso e o sentido de humor. “Não podemos pensar só no preto, mas também no branco: a alegria e a esperança também existem, não podemos levar tudo demasiado a sério e devemos deixar as coisas que precisam de ser resolvidas para aqueles que entendem disso. Temos de confiar neles”.
Nos primeiros tempos da epidemia, quase todos os mortos por Covid-19 na região de Lisboa e Vale do Tejo eram cremados no cemitério dos Olivais. Há cerca de três semanas, com o número de funerais a crescer, também o cemitério do Alto do São João começou a receber corpos para cremação e alargou o horário de funcionamento do forno: a primeira cremação começa às oito da manhã e a última às sete da tarde. Ainda assim, neste momento, um funeral com cremação pode demorar oito dias a ocorrer depois da marcação.
Primeiro, o caixão é colocado sobre corrediças e é encaminhado para dentro de uma sala nas traseiras, enquanto desaparece atrás de uma cortina azul escura. Do outro lado, o caixão entra no forno e o corpo é transformado em cinzas. Como os caixões com vítimas da Covid-19 vêm envoltos em papel celofane, a sala é invadida por um cheiro semelhante ao da cera a derreter.
Neste momento, entre uma cremação e outra passam duas horas, que incluem 15 minutos para que a temperatura do forno baixe. Não é tempo suficiente, mas a procura é tanta que não há alternativa. Na primeira cremação do dia, a máquina ainda não tinha arrefecido completamente: a câmara estava a 400ºC e, quando a cremação terminou, já estava nos 670ºC. Nas últimas cremações do dia, o forno pode ultrapassar os 1000ºC, o que é desaconselhável. Tudo por causa da necessidade de fazer mais cremações em menos tempo.
Cada funeral demora menos de 15 minutos quando a família comparece à cerimónia. Se é de um indigente, basta um terço disso. Durante a manhã da passada segunda-feira houve cinco enterros e três cremações em apenas uma hora e meia. À tarde foram sepultados mais sete corpos e o forno do cemitério cremou quatro. Não há um minuto de descanso entre eles, por isso os coveiros nem sequer despem os fatos protetores, que só são obrigatórios quando se trata de uma morte por Covid-19. Foi, ainda assim, um dia atipicamente calmo no cemitério do Alto do São João: chega a haver 14 enterros, às vezes mais, num só dia. E só não há mais cremações porque o forno não permite mais do que sete, sob pena de deixar de funcionar.
Os funerais mais rápidos são os de casos como o de Maria, que passou pelo menos um mês numa das arcas frigoríficas do cemitério do Alto de São João à espera que alguém procurasse por ela. Como nem as agências funerárias conseguem dar conta de tantos funerais, nem as morgues têm mãos a medir com tantos corpos por reclamar, a capela do cemitério acomoda agora duas arcas, cada uma delas com capacidade para sete corpos, que aguardam para serem cremados ou que algum familiar os reclame para proceder ao funeral. No início desta semana, só quatro câmaras estava vazias.
A maioria destes indigentes são sem-abrigo ou pessoas que já não têm família viva — muitas vezes residentes em lares de idosos, como os da Santa Casa da Misericórdia. Alguns, no entanto, são enterrados sozinhos porque todas as pessoas que lhes são próximas também estão infetadas pelo coronavírus e têm de permanecer em isolamento. Num caso ou no outro, os que os recebem procuram dar-lhes dignidade, apesar de toda a pressa e do trabalho que não pára. “Uma pessoa que trabalhou para a sociedade — mal ou bem, pouco ou muito — merece o respeito de todos nós”, diz o encarregado do cemitério.
Enquanto o país colhe os frutos do confinamento, que já permitiu diminuir o número de novos casos de infeção e de vítimas mortais da Covid-19, os coveiros do Alto de São João continuam a ver refletido no seu trabalho o pico de letalidade em Lisboa e Vale do Tejo, que chegou a registar 153 mortes pelo coronavírus a 30 de janeiro e outras 146 fatalidades por outras causas nesse mesmo dia, segundo a plataforma de Vigilância de Mortalidade da Direção-Geral da Saúde (DGS). “É um exagero”, classifica Fausto Caridade, como um lamento: “E é difícil de perceber. Estas pessoas morreram de uma coisa que veio do ar, uma coisa de que precisamos para viver”.