O futebol é uma festa. O futebol – ainda – é uma festa. Os anos e o avançar dos mesmos têm trazido ao futebol as coisas menos bonitas da vida, tudo aquilo que achávamos guardado para fora das quatro linhas com a remota esperança que nunca acontecessem, as desaventuras e os dissabores que nada têm que ver com o avançado que corre um sprint final para chegar a uma bola impossível ou o guarda-redes que se lança em voo para manter a baliza inviolável. Com os anos, além da violência e do aumento do número de zeros à direita em todas as contratações pelo mundo fora, surgiram os problemas financeiros, as insolvências, o desaparecimento de clubes e os diferendos internos no cerne das próprias equipas.
Estrela da Amadora e Belenenses são dois exemplos paradigmáticos recentes de tudo o que pode correr mal no futebol. As duas equipas de Lisboa, uma vencedora de uma Taça de Portugal, a outra de um Campeonato Nacional e mais três Taças, vivem agora dias mais discretos na I Divisão da Associação de Futebol de Lisboa, equivalente ao terceiro escalão Distrital. O Estrela pediu insolvência em 2010 e não resistiu à consequente extinção, depois de um ano em que os resultados desportivos garantiam a manutenção tranquila na Primeira Liga mas o não pagamento de salários e outras dívidas levou à despromoção, regressando esta época ao futebol sénior enquanto Clube Desportivo Estrela; do outro lado, depois do fim do protocolo assinado entre a Direção e a SAD do clube, as partes não chegaram a acordo e existem agora dois Belenenses: o Belenenses clube, a jogar nos Distritais e no Estádio do Restelo; e o Belenenses SAD, a jogar na Primeira Liga e no Estádio do Jamor. Foi neste último palco que os dois conjuntos ganharam a Taça há cerca de 30 anos (1989 e 1990); hoje, tudo mudou.
Belenenses regista uma equipa de futebol sénior nos distritais
Salários, dívidas, insolvências e SADs à parte, a verdade é que Clube Desportivo Estrela e Belenenses se encontram este domingo, às 15h, num jogo que podia estar a ser disputado muitos escalões acima mas que acontece na última divisão da Associação de Futebol de Lisboa. Mas também é nestas alturas que o futebol volta a ser uma verdadeira festa, pura e genuína.
Festa essa que começou a ser feita há vários meses. No Facebook, o evento com o título sugestivo de “Vamos ao Courato” está criado há algum tempo, com o intuito de agregar simpatizantes dos dois clubes – ou simples simpatizantes do futebol português – e montar uma bonita moldura à volta do jogo, como as que se registavam há um par de anos atrás. Mas a antecipação que está a ser feita à partida deste domingo, essa, sente-se no local onde tudo acontece.
Pouco antes das sete da tarde de sexta-feira, a dois dias deste dérbi lisboeta, o Estádio José Gomes na Reboleira enfrenta um autêntico corrupio. Entre os pais que assistem ao treino dos infantis no campo pelado e as dezenas que fazem fila à porta da secretaria, parece que o dia de jogo já chegou. Na fila, entre muitos que chegam para comprar bilhete para a receção ao Belenenses, também há quem lá tenha ido para regularizar as quotas – já que os sócios não pagam a entrada para o jogo – e outros foram ainda à procura de cachecóis, para apoiar o clube da Amadora a partir das bancadas.
Rui Silva, o presidente, é o homem do momento. Saiu das bancadas para a sala da Direção para agarrar no Estrela porque, como diz, “é chato ficar sem clube”. Assim que abre a porta que liga o seu gabinete à secretaria, encontra uma antiga funcionária do clube, agora a regularizar as quotas para não perder o jogo de domingo, e cumprimenta-a como se esta continuasse a fazer parte da mobília do estádio. “Conhece bem os cantos à casa”, diz-lhe, para depois lhe recordar de que contra o Belenenses todo o apoio é necessário.
“As pessoas já começaram a voltar. Desde 2011, quando começámos com os benjamins, que as pessoas começaram a voltar. Claro que em maio, quando decidimos avançar com a equipa sénior, e depois quando anunciámos, houve um salto do número de sócios. E muitas pessoas aproximaram-se”, explica Rui Silva. A verdade é que o Clube Desportivo Estrela está no ativo desde 2011, ainda que só em 2015 tenha voltado ao Estádio José Gomes, e o regresso ao futebol sénior nada mais foi do que a evolução normal de um clube em reconstrução.
O alarido com a receção ao Belenenses tem sido intenso e, para lá da alegria, causa preocupação. Principalmente com a segurança, já que será necessário um policiamento diferente e até revista à entrada, algo que num jogo normal dos escalões Distritais nunca aconteceria. “Nós agora já temos alguma experiência, eu e os meus colegas, mas mesmo assim este é o jogo em que não pode falhar nada. É um jogo das Distritais que devia estar a ser jogado alguns escalões acima. Claro que o alarido é enorme, reviver isto tudo, a emoção toda à volta do jogo. Porque as pessoas olham e apesar de tudo isto é um Estrela-Belenenses”, lembra o presidente do clube da Amadora, para depois contar que muitas das pessoas que se dirigiram à Reboleira para comprar bilhetes não eram simpatizantes de uma equipa nem de outra.
Dentro das quatro linhas, não faltará motivação. A equipa orientada por Ricardo Monsanto tem treinado em Caneças, para poupar o castigado relvado do José Gomes, mas Rui Silva garante que vontade não falta – afinal, é um dérbi. “A equipa está motivada por ser o jogo que é. Os jogadores que estão lesionados estão tristíssimos por não poderem jogar. Mas nós queremos manter essa motivação, queremos estar junto da equipa e já estamos a pensar em estar com eles ao almoço, no dia do próprio jogo, para manter a ligação”, revela o presidente, que vai sendo cumprimentado por vários adeptos que vão passando pelo parque de estacionamento onde em tempos andaram Fernando Santos, Jorge Jesus, Paulo Bento ou Chaínho.
Ainda assim, os pés estão assentes na terra. Dez pontos separam as duas equipas na classificação: o Belenenses lidera a Série 2 da 1.ª Divisão da Associação de Futebol de Lisboa, com 30 pontos e dez vitórias em dez jogos, enquanto que o Estrela está na sétima posição, com 20 pontos e já com três derrotas. A “fibra tricolor”, contudo, será a principal aliada dos jogadores. “É disso que somos feitos. E é isso que queremos passar aos jogadores. Não desistimos e vamos para a batalha. O clube faliu. E sócios sem nenhuma experiência, meia dúzia deles, saíram das bancadas e tentaram fazer alguma coisa. Temos apanhado uma data de problemas pelo caminho mas ultrapassamos os problemas para avançar. E é esse espírito que temos passado para as nossas equipas. Vamos ao jogo para tentar o ganhar”, explica Rui Silva, que a dada altura pede desculpa por estar com “roupa velha” porque passou a tarde a limpar as bancadas do estádio José Gomes, que um dia chegou a receber jogos das provas europeias.
Estádio esse que este domingo deve receber cerca de cinco mil pessoas. Duas bancadas, uma lateral e a superior norte, estarão abertas – assim como uma outra de backup, caso a afluência no dia do jogo seja superior ao esperado. Algo que não assusta Rui Silva, já que a equipa tem sido surpreendida “por bancadas com mil, 1.500 pessoas, algo que não é nada normal nos Distritais”. Mas a “quantidade”, como diz o presidente, não é o mais importante; é sim a “qualidade”: “O que mais me surpreendeu no primeiro jogo foi olhar para a cara das pessoas, e muitas delas de idade, com o cachecol do Estrela, e felizes por ver o jogo, a sorrir. E a imagem que tinha ficado do Estrela da Amadora era muito pouca gente nas bancadas e um ar desiludido. Agora sorriem”.
Rui Silva sabe que o jogo é difícil e que as realidades das duas equipas são bastante diferentes. “Mas a festa já começou”, garante o presidente do clube da Amadora.
Mais perto do Rio, no Estádio do Restelo, a equipa que no domingo vai enfrentar o Estrela está no topo da classificação, com dez vitórias noutros tantos jogos, e não se deixa iludir por se tratar de um dérbi ou pelo caráter especial da partida. A azáfama da Reboleira contrasta com a calma do Restelo, onde a equipa sénior treina no relvado principal, virada para o Cristo Rei, o Tejo e a Ponte 25 de Abril.
CFB 2 BEL 1 (aos 90’+5)
Golo da reviravolta no último minuto de descontos pic.twitter.com/pycvXqi9xo— Rui Miguel Tovar (@ruimtovar) December 16, 2018
A noite, muito fria, não refreia a vontade e a energia do conjunto muito jovem que veste de azul e carrega a cruz de Cristo. Nuno Oliveira, o treinador, mantém-se discreto, no centro do terreno, enquanto a equipa se divide em dois para realizar exercícios separados. O próximo jogo é contra o Estrela, um histórico do futebol português, mas o técnico lembra que o Belenenses, para lá de histórico, é “um dos quatro grandes do futebol português”. “Os nossos objetivos passam por coisas superiores a haver um gosto especial ou não por um jogo. Os nossos objetivos são muito simples – vencer e garantir os três pontos. Isso sim é o mais importante. Claro que, depois de conseguirmos os três pontos, não consigo esconder que tem um significado especial por serem duas equipas que estão a enfrentar os momentos que estão a enfrentar. Mas só tem gosto especial se nós vencermos”, garante o treinador de 31 anos, que antes de assumir o comando técnico do Belenenses foi adjunto nas camadas jovens do Benfica.
A verdade é que em julho, quando o presidente Patrick Morais de Carvalho anunciou que iria inscrever uma equipa no terceiro escalão Distrital, o objetivo delineado foi muito simples: regressar à alta roda do futebol português no espaço de cinco anos, o tempo mínimo para o conseguir. Cinco anos, cinco subidas de escalão. Para isso, é preciso vencer – e vencer quase sempre.
A preparação foi feita como acontece sempre em todos os jogos, mesmo apesar de ser bastante previsível que a equipa tenha de enfrentar um número de adeptos adversários muito superior àquele a que estão habituados. “Preparamo-nos igual para todos os jogos. Não fazemos isso. Somos o Belenenses, somos um dos quatro grandes do futebol nacional. Não podemos estar a pensar se o adversário isto ou o adversário aquilo. Preparamo-nos sempre de maneira igual, não houve nada de diferente naquilo que foi a preparação para esta semana”, explica Nuno Oliveira que, ainda assim, reconhece que existe um “contexto emocional diferente” que teve de ser estudado, trabalhado e consolidado.
Embora o segredo seja a alma do negócio, o treinador revela que essa preparação envolveu “alguns truques e algumas ferramentas” para ajudar os jovens jogadores a lidar com uma pressão que não reconhecem e uma massa adversária nas bancadas a que não estão habituados. “O segredo, no limite, foi que a nós nos interessa o nosso foco, o nosso jogo e fazer o nosso trabalho. Porque temos 100% de convicção que se fizermos o nosso trabalho igual ao que temos feito nas outras semanas todas, no final vamos trazer três pontos. Tudo o que for extra jogo, se nós nos deixarmos envolver positivamente ou negativamente, porque isto tem as duas vertentes, vem só por acréscimo”, indica Nuno Oliveira.
Em ano de centenário do Belenenses, a equipa que compõe o futebol sénior do clube é muito jovem e tem uma média de idades que não chega aos 22 anos. Para Nuno Oliveira, a juventude dos atletas nada tem que ver com a maturidade psicológica e a pouca experiência da equipa era um obstáculo que estava previsto desde o primeiro dia. “Nós já sabíamos o que é que íamos enfrentar quando fizemos isto. E a idade, nesses atletas, reflete pouco aquilo que é a idade mental deles ou a idade metabólica deles. Aquilo que é o desenvolvimento mental deles. Nós conhecemos as características mentais deles e não tenho problema nenhum em dizer que há aqui atletas com 19, 20 anos, que não têm 19, 20 anos na cabeça deles. Não sinto que a juventude seja um problema. Até porque temos juventude aliada a alguma experiência, isso fez parte daquilo que foi o planeamento para a época.
E se Rui Silva espera o regresso de muitos adeptos do Estrela e a presença de inúmeros simpatizantes das duas equipas para colorir as bancadas do José Gomes, Nuno Oliveira tem certezas de que a Reboleira vai ficar pintada de azul no próximo domingo. “Nós nunca deixámos de sentir apoio. Sentimos esse apoio na apresentação aos sócios, com o Atlético, estiveram aqui três mil, quatro mil pessoas, cinco mil pessoas. Sentimos muito esse apoio. Sentimos quando vamos jogar fora e temos sempre 500, 600, 700 pessoas ali a apoiar-nos. Quando jogamos em casa, temos sempre casas com 1.000, 2.000 pessoas. Acho que vai haver mais apoio do que é comum. Mas vai ser só bom, não vai cair para o lado negativo. Não há pressão”, garante, de forma sempre decidida, o treinador do Belenenses.
Este domingo, 6 de janeiro, o Clube Desportivo Estrela recebe o Belenenses e o Estádio José Gomes volta a ser palco de um dérbi lisboeta. Estejam 5.000 pessoas ou apenas 500, a verdade é que a festa já está feita: nas filas para comprar bilhete e na certeza de que a vitória terá um gosto especial. Dois históricos do futebol português que conheceram o pior que o desporto tem para oferecer encontram-se, renascidos, à procura do regresso à ribalta de onde poderiam nunca ter saído.