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Evelyn Waugh: a arte da crueldade

Nos 50 anos da morte do escritor inglês, Rogério Casanova recorda-o como um brilhante céptico perante a autoridade absoluta das emoções

Num ensaio sobre P. G. Wodehouse, o crítico Wilfrid Sheed observou que o sistema educativo inglês, no início do séc. XX, parecia especificamente concebido para anular a possibilidade de o país voltar a produzir um Shelley ou um Byron: “Quando aparece um artista puro, é imediatamente mergulhado em água fria e ensinado a rir-se de si próprio durante doze anos excruciantes, após os quais emerge estropiado e pronto a dedicar-se a palavras cruzadas, histórias policiais, ou aos labores da jocosidade”.

Sheed não define os termos dessa mutilação emocional, mas pode assumir-se que se referia à violenta inculcação das virtudes capitais inglesas, devidamente reduzidas ao absurdo: a preferência pelo bom senso, em detrimento da sensibilidade; a suspeita congénita de que a única decisão disponível é entre cinismo ou fraudulência; e o consequente horror não adulterado a qualquer espécie de pretensiosismo (real, imaginário, ou francês). O processo foi criando, além de dúzia e meia de primeiros-ministros, uma intrigante sucessão de talentos literários, cuja principal característica em comum era a veemência com que negam à “literatura” a maiúscula inicial. Não se importavam de escrever as obras-primas e recebiam com relutância a nomeação para cânones avulsos; mas, pelo menos em público, a arte nunca seria outra coisa que não uma pragmática opção profissional – ou então um passatempo inofensivo, como o cricket ou a filatelia.

Esta perversa dedicação a manter os pés bem assentes na terra engendrou, como seria de esperar, as suas perversas atrofias – e também um circuito biográfico tão padronizado que quase merece o estatuto de género literário. De uma qualquer public school até Oxbridge até ao clube privado, o arrivista ia usando o seu talento para garantir, a crédito, algum capital semi-aristocrático, e assim ascender àquele nervosamente regulado purgatório de mobilidade social onde, com um bocado de sorte, um romancista talentoso podia alimentar esperanças de sacar a filha de um baronete. Dessa posição entrincheirada dedicava-se então a deplorar o séc. XX (e grande parte do XIX), a consolidar os seus preconceitos favoritos numa personalidade capaz de os exibir com coerência, e a despejar todo o seu génio em sub-especializações comicamente limitadas – detectives e duques, párocos de aldeia e elfos do bosque – erguendo uma complacente sobrancelha sempre que alguém mencionava Proust ou Joyce.

Evelyn Waugh cumpriu todas estas etapas com brio. Os três anos em Oxford parecem ter sido passados a beber, a vomitar e a gastar muito mais dinheiro do que tinha. Saiu com um grau académico de terceira categoria e uma depressão que levou a uma incaracterística tentativa de suicídio; com a mesma idade, o seu parceiro no panteão literário católico, Graham Greene, já tinha várias no currículo. (Será instrutivo comparar as mitificações retrospectivas que ambos fizeram desses gestos pueris: Greene afirmando ter ensaiado sucessivos jogos de roleta russa, deixando o destino nas mãos de uma Autoridade maior; Waugh tentando afogar-se no mar alto, mas decidindo nadar de regresso à praia depois de ser picado por uma alforreca).

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Quase toda a obra de Waugh até 1942 pode ser lida como uma reacção contra o sentimentalismo vitoriano do “leito de morte” e contra o seu maior expoente. Fosse por sequelas psíquicas da sobredose juvenil ou por convicção crítica, a sua ficção é uma tentativa recorrente para literalizar a célebre piada de Oscar Wilde sobre a morte de Little Nell: é preciso um coração de pedra para não desatar a rir.

Oxford serviu também como primeira exposição de Waugh ao conjunto de tribos exóticas etnograficamente conhecidas como aristocracia britânica. O que é que eles tinham para lhe ensinar, além dos rituais tradicionais (sodomia, insultar empregados de mesa, etc.)? Talvez o truque de despromover a realidade a uma condição subalterna; a errónea, mas comicamente útil, convicção de que as pequenas crueldades, quando são absurdas, são também inócuas; e a tendência para encarar tudo – pintura abstracta, sufrágio universal, guerras mundiais, depressão, canibalismo – como um contratempo menor, que o mordomo ou o jardineiro resolverá em devido tempo.

É no entanto duvidoso que Evelyn necessitasse de explicações de crueldade ou excentricidade. A julgar pelo quórum de biógrafos, a família Waugh podia gabar-se de todo o reportório aristocrático – excepto o mordomo e o jardineiro. O avô paterno, conhecido pela ternurenta alcunha de “O Brutamontes”, quase decapitou a esposa ao tentar atingir com a bengala uma vespa que lhe pousara na testa. O pai, Arthur, sentia um intenso fascínio por bicicletas, por raparigas adolescentes, e pela combinação de bicicletas e raparigas adolescentes. Escreveu ensaios sobre o tema, acumulou fotografias sobre o tema, e organizou duas antologias de poesia sobre o tema (a sua contribuição foi um poema em que o sujeito poético – coincidentemente chamado Arthur – dá lições de ciclismo a uma despidíssima Lady Godiva).

Arthur Waugh era um romancista falhado, que passou trinta anos como crítico literário do Telegraph, e como director-adjunto da Chapman & Hall, a histórica editora de Dickens. Os serões familiares eram muitas vezes dedicados a leituras dramáticas, em que o pai ia encarnando diante da família cativa todo o elenco dickensiano. Evelyn teve o cuidado de afirmar a natureza não-traumatizante da experiência, mas é impossível não recordar o tenebroso desenlace de A Handful of Dust, em que o protagonista é feito prisioneiro na floresta amazónica por um eremita iletrado que o obriga a ler em voz alta as obras completas de Dickens: todas as noites, para sempre.

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A capa de “A Handul of Dust”, originalmente publicado em 1934

Na verdade quase toda a obra de Waugh até 1942 pode ser lida como uma reacção contra o sentimentalismo vitoriano do “leito de morte” e contra o seu maior expoente. Fosse por sequelas psíquicas da sobredose juvenil ou por convicção crítica, a sua ficção é uma tentativa recorrente para literalizar a célebre piada de Oscar Wilde sobre a morte de Little Nell: é preciso um coração de pedra para não desatar a rir.

No primeiro romance, Declínio e Queda, uma corrida escolar termina abruptamente quando o pequeno Lord Tangent (filho, já agora, de Lady Circumference) é alvejado no pé pelo tiro de partida. Dezoito páginas depois, sabe-se que “o pé inchou e enegreceu”. Alguns capítulos passam, até que, ao descrever os convidados de um casamento, o narrador nos informa que “estava lá toda a gente, excepto o pequeno Tangent, cujo pé tinha sido amputado numa enfermaria local”. E finalmente, já a meio do livro, Lady Circumference decide não comparecer noutro casamento (como protesto contra a diferença social entre os noivos) e lamenta-se: “que maçada o Tangent ter morrido precisamente nesta altura. As pessoas vão pensar que é por esse motivo que não vou!”. O pequeno Tangent, conjurado e evaporado nesta sucessão de tangentes, some-se do livro e não voltamos a ler o seu nome.

O cepticismo de Waugh perante a autoridade absoluta das emoções parece ter sido um princípio estético inato. Num dos seus primeiros contos, escrito ainda em Oxford, um aluno assassina o professor por nenhum outro motivo que não puro ennui e uma vaga antipatia pessoal. É um gesto tão gratuito que, noutras mãos, necessitaria de um Raskolnikov (e de seiscentas páginas) para ser explorado. Waugh despacha o assunto em menos de vinte: um colega do assassino é injustamente acusado do crime e punido com uma multa de 13 xelins.

Sucedem-se as vítimas colaterais e os obituários indiferentes. Declínio e Queda começa com o relato de uma festa universitária em que uma raposa é presa numa jaula e apedrejada com garrafas de champanhe (“Que bela noite, aquela!”). Em Corpos Vis, uma desgraçada chamada Flossie morre ao tentar baloiçar-se de um lustre. A Handful of Dust começa com uma pergunta suficientemente atípica para provocar um sobressalto: “Alguém se magoou?”. Mas a resposta vem serenar os ânimos: “Felizmente não. Excepto as duas criadas que perderam a cabeça e caíram ao pátio através do telhado de vidro”.

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A capa da primeira edição de “Declínio e Queda” (“Decline and Fall”; em inglês”, de 1928. Em Portugal, e tal como outros títulos do autor, está publicado pela Relógio d’Água

Há um propósito moral em algumas destas escabrosas abreviações. A trajectória narrativa de A Handful of Dust, por exemplo, acaba por ser uma resposta severa à trivialização de uma tragédia. Mas suspeita-se que o objectivo predominante é a criação de um dispositivo cómico passível de ser controlado e reproduzido com infalível eficácia. A paisagem ficcional de Waugh é povoada por pessoas incapazes de se sentirem chocadas, surpreendidos ou sequer moderadamente alarmados, excepto quando nada tem importância. A mesma sensação de proporções escrupulosamente invertidas funciona ao nível da prosa: qualquer anomalia é apresentada com total descontração, qualquer catástrofe é rápida e serenamente desdramatizada. A fórmula permite extrair momentos de inspiração cómica ao contexto menos promissor: “’Não vais notar grandes diferenças no papá’, declarou Lady Moping, quando o automóvel passou os portões do hospício”. O que mais impressiona na frase (de outro dos seus contos de juventude) é a quantidade de informação que somos forçados a deduzir – e a confiança implícita de que o faremos instantaneamente.

Muita da arte de Waugh é uma arte de lacunas, e representou na altura uma notória evolução técnica: o diálogo rápido e sem verbos de atribuição, a redução radical da quinquilharia narrativa, a capacidade de descrever por omissão – é desconcertante a facilidade com que um reaccionário a quem o conceito de “literatura experimental” provocava urticária encontrou a chave do minimalismo depurado que Hemingway procurou com resultados tão desiguais. (Waugh mencionou O Sol Também Nasce como influência numa entrevista tardia à Paris Review, embora com um elogio tão específico que quase parece um insulto velado: “apreciei sobretudo a qualidade dos seus diálogos entre bêbedos”).

Na sua vida pessoal a reinvenção não estava em cima da mesa. Como muitas das pessoas com o seu trajecto intelectual, a idade calcificou-lhe a pose numa caricatura. O Waugh dos últimos anos encontrou-se na solitária posição de ser o único homem a manter opiniões correctas sobre toda uma série de assuntos fundamentais.

Mas será esse o segredo do seu método: um imaculado sentido de ritmo e a refinada monotonia da voz conseguem fazer os mais alucinados non sequiturs parecerem as mais banais manifestações de causa e efeito. O efeito geral, a espaços, é mesmo o de uma rara embriaguez decifrável (e interessante). A tendência instintiva para conciliar extravagância e concisão levou-o, com entusiasmo quase avant-garde, a procurar nas novas tecnologias veículos originais para a justaposição absurda ou elisão hilariante: os capítulos de Corpos Vis que consistem apenas em truncadas conversas telefónicas, ou os célebres telegramas jornalísticos de Boot em Enviado Especial (“TUDO TRETA SOBRE BOLCHEVIQUE, AFINAL MERO REVISOR DE BILHETES”; “PRIMAVERA ENCANTADORA GRANDE SURTO DE PESTE BUBÓNICA”).

Foi só quando estas lacunas começaram a ser preenchidas que surgiram problemas. Reviver o Passado em Brideshead, escrito já durante a Guerra, é o resultado directo de uma tripla conversão (política, religiosa e estética) e a obra não consegue suportar o peso dos ajustes necessários. Onde antes a calamidade era desfeita com frívolos eufemismos, é a frivolidade que agora desperta cadências épicas. Tal como Tolkien e C. S. Lewis, Waugh divorciara-se definitivamente do séc. XX e decidiu simular uma elaborada realidade alternativa, um paraíso perdido para onde levar o cachimbo, os chinelos e a arquitectura barroca. Mas, em vez da pura e assumida efabulação, optou pela falsa nostalgia (Tolkien nunca tentou convencer ninguém que os hobbits eram reais). O resultado final é um fracasso artístico porque o elenco continua a ser o mesmo de Corpos Vis, agora apetrechados com crucifixos e frondosos adjectivos. Sabemos demasiado sobre eles para os tratar como unicórnios.

[trailer da adaptação televisiva de “Reviver o Passado em Brideshead”, série de 1981]

Fitzgerald mostrou que o segredo da ficção elegíaca é valorizar não o objecto da nostalgia, mas o impulso nostálgico em si. Brideshead – a única obra de Waugh escrita na primeira pessoa – assemelha-se a uma tentativa inepta de replicar os efeitos de O Grande Gatsby – mas uma versão em que o narrador se torna mais zelota sobre a mítica “luz verde” do que o seu iludido protagonista. Alguém escreveu um dia que Pierre, de Herman Melville, era o pior romance jamais escrito por um autor de génio. Reviver o Passado em Brideshead será, pelo menos, um fortíssimo candidato a disputar a posição.

Felizmente foi um declínio temporário e não o prelúdio à queda. Waugh recuperou energias suficientes para descartar o rumo mais fácil (repescar as fórmulas dos primeiros livros) e ensaiar algo de novo. As Desventuras do Sr. Pinfold, um incaracterístico romance de paranóia e desintegração mental, é suficientemente diferente do que veio antes para poder ser caracterizado como uma reinvenção.

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“As Desventuras do Sr. Pinfold”, livro de 1957

Na sua vida pessoal, contudo, a reinvenção não estava em cima da mesa. Como muitas das pessoas com o seu trajecto intelectual, a idade calcificou-lhe a pose numa caricatura. (Pinfold: “abominava plástico, Picasso, praias e jazz – quase tudo, na verdade, o que surgira no seu tempo de vida”). O Waugh dos últimos anos encontrou-se na solitária posição de ser o único homem a manter opiniões correctas sobre toda uma série de assuntos fundamentais. Já nem a Igreja cumpria os requisitos; o Concílio do Vaticano II basicamente convenceu-o de que era último católico vivo. A insularidade radical era a única saída. Numa entrada dos seus diários de 1963, escreveu: “Quão divertido era, há 35 anos, fazer longas e desconfortáveis viagens para conhecer pessoas distantes, cujos modos de expressão e ideias sobre a vida eram tão diferentes das minhas. Agora basta-me sair de casa.”

Num desenlace que a sua feroz imaginação não desdenharia, faleceu num Domingo de Páscoa (10 de Abril de 1966), depois da missa, sentado na retrete.

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