910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Getty Images

Getty Images

Evelyn Waugh: a arte da crueldade

Nos 50 anos da morte do escritor inglês, Rogério Casanova recorda-o como um brilhante céptico perante a autoridade absoluta das emoções

Num ensaio sobre P. G. Wodehouse, o crítico Wilfrid Sheed observou que o sistema educativo inglês, no início do séc. XX, parecia especificamente concebido para anular a possibilidade de o país voltar a produzir um Shelley ou um Byron: “Quando aparece um artista puro, é imediatamente mergulhado em água fria e ensinado a rir-se de si próprio durante doze anos excruciantes, após os quais emerge estropiado e pronto a dedicar-se a palavras cruzadas, histórias policiais, ou aos labores da jocosidade”.

Sheed não define os termos dessa mutilação emocional, mas pode assumir-se que se referia à violenta inculcação das virtudes capitais inglesas, devidamente reduzidas ao absurdo: a preferência pelo bom senso, em detrimento da sensibilidade; a suspeita congénita de que a única decisão disponível é entre cinismo ou fraudulência; e o consequente horror não adulterado a qualquer espécie de pretensiosismo (real, imaginário, ou francês). O processo foi criando, além de dúzia e meia de primeiros-ministros, uma intrigante sucessão de talentos literários, cuja principal característica em comum era a veemência com que negam à “literatura” a maiúscula inicial. Não se importavam de escrever as obras-primas e recebiam com relutância a nomeação para cânones avulsos; mas, pelo menos em público, a arte nunca seria outra coisa que não uma pragmática opção profissional – ou então um passatempo inofensivo, como o cricket ou a filatelia.

Esta perversa dedicação a manter os pés bem assentes na terra engendrou, como seria de esperar, as suas perversas atrofias – e também um circuito biográfico tão padronizado que quase merece o estatuto de género literário. De uma qualquer public school até Oxbridge até ao clube privado, o arrivista ia usando o seu talento para garantir, a crédito, algum capital semi-aristocrático, e assim ascender àquele nervosamente regulado purgatório de mobilidade social onde, com um bocado de sorte, um romancista talentoso podia alimentar esperanças de sacar a filha de um baronete. Dessa posição entrincheirada dedicava-se então a deplorar o séc. XX (e grande parte do XIX), a consolidar os seus preconceitos favoritos numa personalidade capaz de os exibir com coerência, e a despejar todo o seu génio em sub-especializações comicamente limitadas – detectives e duques, párocos de aldeia e elfos do bosque – erguendo uma complacente sobrancelha sempre que alguém mencionava Proust ou Joyce.

Evelyn Waugh cumpriu todas estas etapas com brio. Os três anos em Oxford parecem ter sido passados a beber, a vomitar e a gastar muito mais dinheiro do que tinha. Saiu com um grau académico de terceira categoria e uma depressão que levou a uma incaracterística tentativa de suicídio; com a mesma idade, o seu parceiro no panteão literário católico, Graham Greene, já tinha várias no currículo. (Será instrutivo comparar as mitificações retrospectivas que ambos fizeram desses gestos pueris: Greene afirmando ter ensaiado sucessivos jogos de roleta russa, deixando o destino nas mãos de uma Autoridade maior; Waugh tentando afogar-se no mar alto, mas decidindo nadar de regresso à praia depois de ser picado por uma alforreca).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quase toda a obra de Waugh até 1942 pode ser lida como uma reacção contra o sentimentalismo vitoriano do “leito de morte” e contra o seu maior expoente. Fosse por sequelas psíquicas da sobredose juvenil ou por convicção crítica, a sua ficção é uma tentativa recorrente para literalizar a célebre piada de Oscar Wilde sobre a morte de Little Nell: é preciso um coração de pedra para não desatar a rir.

Oxford serviu também como primeira exposição de Waugh ao conjunto de tribos exóticas etnograficamente conhecidas como aristocracia britânica. O que é que eles tinham para lhe ensinar, além dos rituais tradicionais (sodomia, insultar empregados de mesa, etc.)? Talvez o truque de despromover a realidade a uma condição subalterna; a errónea, mas comicamente útil, convicção de que as pequenas crueldades, quando são absurdas, são também inócuas; e a tendência para encarar tudo – pintura abstracta, sufrágio universal, guerras mundiais, depressão, canibalismo – como um contratempo menor, que o mordomo ou o jardineiro resolverá em devido tempo.

É no entanto duvidoso que Evelyn necessitasse de explicações de crueldade ou excentricidade. A julgar pelo quórum de biógrafos, a família Waugh podia gabar-se de todo o reportório aristocrático – excepto o mordomo e o jardineiro. O avô paterno, conhecido pela ternurenta alcunha de “O Brutamontes”, quase decapitou a esposa ao tentar atingir com a bengala uma vespa que lhe pousara na testa. O pai, Arthur, sentia um intenso fascínio por bicicletas, por raparigas adolescentes, e pela combinação de bicicletas e raparigas adolescentes. Escreveu ensaios sobre o tema, acumulou fotografias sobre o tema, e organizou duas antologias de poesia sobre o tema (a sua contribuição foi um poema em que o sujeito poético – coincidentemente chamado Arthur – dá lições de ciclismo a uma despidíssima Lady Godiva).

Arthur Waugh era um romancista falhado, que passou trinta anos como crítico literário do Telegraph, e como director-adjunto da Chapman & Hall, a histórica editora de Dickens. Os serões familiares eram muitas vezes dedicados a leituras dramáticas, em que o pai ia encarnando diante da família cativa todo o elenco dickensiano. Evelyn teve o cuidado de afirmar a natureza não-traumatizante da experiência, mas é impossível não recordar o tenebroso desenlace de A Handful of Dust, em que o protagonista é feito prisioneiro na floresta amazónica por um eremita iletrado que o obriga a ler em voz alta as obras completas de Dickens: todas as noites, para sempre.

1507-1

A capa de “A Handul of Dust”, originalmente publicado em 1934

Na verdade quase toda a obra de Waugh até 1942 pode ser lida como uma reacção contra o sentimentalismo vitoriano do “leito de morte” e contra o seu maior expoente. Fosse por sequelas psíquicas da sobredose juvenil ou por convicção crítica, a sua ficção é uma tentativa recorrente para literalizar a célebre piada de Oscar Wilde sobre a morte de Little Nell: é preciso um coração de pedra para não desatar a rir.

No primeiro romance, Declínio e Queda, uma corrida escolar termina abruptamente quando o pequeno Lord Tangent (filho, já agora, de Lady Circumference) é alvejado no pé pelo tiro de partida. Dezoito páginas depois, sabe-se que “o pé inchou e enegreceu”. Alguns capítulos passam, até que, ao descrever os convidados de um casamento, o narrador nos informa que “estava lá toda a gente, excepto o pequeno Tangent, cujo pé tinha sido amputado numa enfermaria local”. E finalmente, já a meio do livro, Lady Circumference decide não comparecer noutro casamento (como protesto contra a diferença social entre os noivos) e lamenta-se: “que maçada o Tangent ter morrido precisamente nesta altura. As pessoas vão pensar que é por esse motivo que não vou!”. O pequeno Tangent, conjurado e evaporado nesta sucessão de tangentes, some-se do livro e não voltamos a ler o seu nome.

O cepticismo de Waugh perante a autoridade absoluta das emoções parece ter sido um princípio estético inato. Num dos seus primeiros contos, escrito ainda em Oxford, um aluno assassina o professor por nenhum outro motivo que não puro ennui e uma vaga antipatia pessoal. É um gesto tão gratuito que, noutras mãos, necessitaria de um Raskolnikov (e de seiscentas páginas) para ser explorado. Waugh despacha o assunto em menos de vinte: um colega do assassino é injustamente acusado do crime e punido com uma multa de 13 xelins.

Sucedem-se as vítimas colaterais e os obituários indiferentes. Declínio e Queda começa com o relato de uma festa universitária em que uma raposa é presa numa jaula e apedrejada com garrafas de champanhe (“Que bela noite, aquela!”). Em Corpos Vis, uma desgraçada chamada Flossie morre ao tentar baloiçar-se de um lustre. A Handful of Dust começa com uma pergunta suficientemente atípica para provocar um sobressalto: “Alguém se magoou?”. Mas a resposta vem serenar os ânimos: “Felizmente não. Excepto as duas criadas que perderam a cabeça e caíram ao pátio através do telhado de vidro”.

Evelyndeclineandfall

A capa da primeira edição de “Declínio e Queda” (“Decline and Fall”; em inglês”, de 1928. Em Portugal, e tal como outros títulos do autor, está publicado pela Relógio d’Água

Há um propósito moral em algumas destas escabrosas abreviações. A trajectória narrativa de A Handful of Dust, por exemplo, acaba por ser uma resposta severa à trivialização de uma tragédia. Mas suspeita-se que o objectivo predominante é a criação de um dispositivo cómico passível de ser controlado e reproduzido com infalível eficácia. A paisagem ficcional de Waugh é povoada por pessoas incapazes de se sentirem chocadas, surpreendidos ou sequer moderadamente alarmados, excepto quando nada tem importância. A mesma sensação de proporções escrupulosamente invertidas funciona ao nível da prosa: qualquer anomalia é apresentada com total descontração, qualquer catástrofe é rápida e serenamente desdramatizada. A fórmula permite extrair momentos de inspiração cómica ao contexto menos promissor: “’Não vais notar grandes diferenças no papá’, declarou Lady Moping, quando o automóvel passou os portões do hospício”. O que mais impressiona na frase (de outro dos seus contos de juventude) é a quantidade de informação que somos forçados a deduzir – e a confiança implícita de que o faremos instantaneamente.

Muita da arte de Waugh é uma arte de lacunas, e representou na altura uma notória evolução técnica: o diálogo rápido e sem verbos de atribuição, a redução radical da quinquilharia narrativa, a capacidade de descrever por omissão – é desconcertante a facilidade com que um reaccionário a quem o conceito de “literatura experimental” provocava urticária encontrou a chave do minimalismo depurado que Hemingway procurou com resultados tão desiguais. (Waugh mencionou O Sol Também Nasce como influência numa entrevista tardia à Paris Review, embora com um elogio tão específico que quase parece um insulto velado: “apreciei sobretudo a qualidade dos seus diálogos entre bêbedos”).

Na sua vida pessoal a reinvenção não estava em cima da mesa. Como muitas das pessoas com o seu trajecto intelectual, a idade calcificou-lhe a pose numa caricatura. O Waugh dos últimos anos encontrou-se na solitária posição de ser o único homem a manter opiniões correctas sobre toda uma série de assuntos fundamentais.

Mas será esse o segredo do seu método: um imaculado sentido de ritmo e a refinada monotonia da voz conseguem fazer os mais alucinados non sequiturs parecerem as mais banais manifestações de causa e efeito. O efeito geral, a espaços, é mesmo o de uma rara embriaguez decifrável (e interessante). A tendência instintiva para conciliar extravagância e concisão levou-o, com entusiasmo quase avant-garde, a procurar nas novas tecnologias veículos originais para a justaposição absurda ou elisão hilariante: os capítulos de Corpos Vis que consistem apenas em truncadas conversas telefónicas, ou os célebres telegramas jornalísticos de Boot em Enviado Especial (“TUDO TRETA SOBRE BOLCHEVIQUE, AFINAL MERO REVISOR DE BILHETES”; “PRIMAVERA ENCANTADORA GRANDE SURTO DE PESTE BUBÓNICA”).

Foi só quando estas lacunas começaram a ser preenchidas que surgiram problemas. Reviver o Passado em Brideshead, escrito já durante a Guerra, é o resultado directo de uma tripla conversão (política, religiosa e estética) e a obra não consegue suportar o peso dos ajustes necessários. Onde antes a calamidade era desfeita com frívolos eufemismos, é a frivolidade que agora desperta cadências épicas. Tal como Tolkien e C. S. Lewis, Waugh divorciara-se definitivamente do séc. XX e decidiu simular uma elaborada realidade alternativa, um paraíso perdido para onde levar o cachimbo, os chinelos e a arquitectura barroca. Mas, em vez da pura e assumida efabulação, optou pela falsa nostalgia (Tolkien nunca tentou convencer ninguém que os hobbits eram reais). O resultado final é um fracasso artístico porque o elenco continua a ser o mesmo de Corpos Vis, agora apetrechados com crucifixos e frondosos adjectivos. Sabemos demasiado sobre eles para os tratar como unicórnios.

[trailer da adaptação televisiva de “Reviver o Passado em Brideshead”, série de 1981]

Fitzgerald mostrou que o segredo da ficção elegíaca é valorizar não o objecto da nostalgia, mas o impulso nostálgico em si. Brideshead – a única obra de Waugh escrita na primeira pessoa – assemelha-se a uma tentativa inepta de replicar os efeitos de O Grande Gatsby – mas uma versão em que o narrador se torna mais zelota sobre a mítica “luz verde” do que o seu iludido protagonista. Alguém escreveu um dia que Pierre, de Herman Melville, era o pior romance jamais escrito por um autor de génio. Reviver o Passado em Brideshead será, pelo menos, um fortíssimo candidato a disputar a posição.

Felizmente foi um declínio temporário e não o prelúdio à queda. Waugh recuperou energias suficientes para descartar o rumo mais fácil (repescar as fórmulas dos primeiros livros) e ensaiar algo de novo. As Desventuras do Sr. Pinfold, um incaracterístico romance de paranóia e desintegração mental, é suficientemente diferente do que veio antes para poder ser caracterizado como uma reinvenção.

9789896411909

“As Desventuras do Sr. Pinfold”, livro de 1957

Na sua vida pessoal, contudo, a reinvenção não estava em cima da mesa. Como muitas das pessoas com o seu trajecto intelectual, a idade calcificou-lhe a pose numa caricatura. (Pinfold: “abominava plástico, Picasso, praias e jazz – quase tudo, na verdade, o que surgira no seu tempo de vida”). O Waugh dos últimos anos encontrou-se na solitária posição de ser o único homem a manter opiniões correctas sobre toda uma série de assuntos fundamentais. Já nem a Igreja cumpria os requisitos; o Concílio do Vaticano II basicamente convenceu-o de que era último católico vivo. A insularidade radical era a única saída. Numa entrada dos seus diários de 1963, escreveu: “Quão divertido era, há 35 anos, fazer longas e desconfortáveis viagens para conhecer pessoas distantes, cujos modos de expressão e ideias sobre a vida eram tão diferentes das minhas. Agora basta-me sair de casa.”

Num desenlace que a sua feroz imaginação não desdenharia, faleceu num Domingo de Páscoa (10 de Abril de 1966), depois da missa, sentado na retrete.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.