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O respeito” pelo “princípio da dignidade humana”, “a que o recorrente [Ricardo Salgado] faz repetidamente apelo (…), também se evidencia na capacidade de assunção de responsabilidades pelos atos praticados, especialmente quando deles decorrem elevadíssimos prejuízos para terceiros”, configurando a “punição de um crime (…) tão só a aplicação da lei a que todos os cidadãos estão sujeitos.”
Acórdão da Relação de Lisboa, 24 de maio de 2023
A defesa de Ricardo Salgado teve uma derrota pesada no Tribunal da Relação de Lisboa. É o que se pode dizer da leitura da decisão da 3.ª Secção com 667 páginas que não só aumentou a pena de prisão efetiva de seis para oito anos como recusou a perícia médica para aferir o estado de desenvolvimento da doença de Alzheimer — diagnóstico que já tinha sido confirmado pelo tribunal de primeira instância e que os desembargadores não contestam.
Na decisão da Relação de Lisboa pode mesmo ler-se que “a doença de Alzheimer” não “impede” Ricardo Salgado “de ter uma vida normal (…) com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias” — o que demonstra que as “falhas de memória são combatidas pelo arguido, procurando por certo defender a auto-imagem de profissional responsável, empenhado, competente, determinado e de líder incontestado, mas democrático, que continua a manter.”
Aliás, dos quatro desembargadores que analisaram os recursos da defesa e do Ministério Público, uma juíza votou vencida por entender que a pena de prisão efetiva deveria ter sido ainda mais pesada — 12 anos — pelo nível de culpa “elevadíssimo” que só a “total falta de probidade pode explicar”.
O Observador responde a 10 perguntas e respostas sobre a decisão da Relação de Lisboa para explicar as consequências e a relevância desta decisão.
O que estava em causa e o que foi decidido pelo Tribunal da Relação da Lisboa?
Após o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa ter condenado Ricardo Salgado em março de 2022 pela prática de três crimes de abuso de confiança por se ter apropriado de cerca de 10 milhões de euros do Grupo Espírito Santo (GES), a Relação de Lisboa teve analisar oito recursos da defesa do ex-banqueiro: um sobre essa decisão final e mais sete interlocutórios que foram sendo apresentados ao longo da tramitação dos autos.
O Ministério Público (MP) também apresentou um recurso, em que solicitava o agravamento da pena de prisão para mais de 10 anos.
O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) acabou a dar razão parcial ao MP e aumentou a pena única de prisão efetiva de 6 para 8 anos pelos mesmos três crimes de abuso de confiança.
Os desembargadores da 3.ª Secção do TRL decidiram igualmente recusar a perícia pedida pela defesa de Ricardo Salgado para avaliar o estado de desenvolvimento da doença de Alzheimer. A decisão foi votada favoravelmente pela relatora Leonor Silveira Botelho, Rui Teixeira (1.º adjunto) e pela Maria da Conceição Gonçalves (presidente da 3.ª Secção do TRL).
A desembargadora Cristina Almeida e Sousa (2.º adjunta) votou vencida porque, além de discordar de algumas matérias de direito, entende que a pena única aplicada a Ricardo Salgado deveria ter sido mais agravada: 12 anos de prisão efetiva, em vez dos oito. Mais à frente descreveremos os argumentos da juíza.
Por que razão a pena e prisão de Ricardo Salgado aumentou para oito anos?
O ex-líder do BES foi condenado em primeira instância por três crimes de abuso de confiança e por se ter apropriado de cerca de 10 milhões de euros do GES pelas seguintes razões:
- Ricardo Salgado controlaria as contas bancárias que a sociedade offshore da Espírito Santo (ES) Enterprises, a empresa do GES que configurava um saco azul, tinha no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça;
- Salgado terá dado ordens a Jean-Luc Schneider, o operacional suíço que mexia nas contas da ES Enterprises, para transferir 4 milhões de euros a 21 de outubro de 2011 para uma conta da Savoices, uma empresa offshore detida pelo ex-líder do BES;
- Um segundo crime de abuso de confiança estará relacionado com a transferência de 4 milhões de euros que a ES Enterprises fez em novembro de 2011 para Henrique Granadeiro, tendo o ex-líder da Portugal Telecom transferido esse montante para uma conta no banco suíço Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher Maria João Bastos.
- Um terceiro ilícito de abuso de confiança tem a ver com a transferência de cerca de 2 milhões e 750 mil euros da ES Enterprises para uma sociedade offshore titulada por Hélder Bataglia, administrador e sócio do GES, tendo Bataglia transferido em novembro de 2010 o mesmo montante para a conta da Savoices, de Ricardo Salgado.
O Tribunal da Relação de Lisboa entende que o tribunal de primeira instância aplicou corretamente as penas parcelares de quatro anos por cada crime de abuso de confiança (são “justas, equilibradas e adequadas”, lê-se no acórdão). Mas discorda da pena única aplica de seis anos de prisão efetiva. Porque entende que o valor da pena única “é demasiado benévola” face à fundamentação “extremamente exígua” do coletivo do tribunal da primeira instância e porque acha que a mesma não dá “resposta adequada nem à culpa do arguido, nem às necessidades de prevenção.”
Os principais argumentos do coletivo da 3.ª secção da Relação de Lisboa são estes:
- tem de ser ponderada na aplicação da pena a “elevada ilicitude” dos factos que lhe são imputados, o “considerável grau de preparação das condutas adotadas pelo arguido, que pormenorizadamente planeou” e a dissimulação da “ilicitude dos seus comportamentos”, lê-se no acórdão escrito pela relatora Maria Leonor Silveira Botelho;
- os desembargadores consideraram ainda que a “personalidade revelada” por Ricardo Salgado também tem de ser valorada, nomeadamente a “postura de total ausência de auto-crítica relativamente à ilicitude” e danos que provocou. A Relação considera que Salgado “desvaloriza” e mostra-se “indiferente a consequências nefastas dos seus próprios atos”;
É por todas estas razões que consideram que a pena única “se deve situar no meio da moldura penal aplicável, concretamente em 8 anos de prisão, pena que se mostra justa e adequada às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir e ainda equilibrada e proporcional ao grau de culpa do arguido, sem qualquer violação do princípio da proibição do excesso”, lê-se também no acórdão.
Acrescente-se, por último, que a Relação de Lisboa ponderou a doença de Alzheimer e a idade avançada do arguido (78 anos) na pena aplicada. Ou seja, a doença e a idade “atenuam as necessidades de prevenção especial.”
Quem diz que Ricardo Salgado tem Alzheimer? E foi valorado?
O primeiro relatório médico apresentado nos autos pela defesa a atestar que Ricardo Salgado padece da doença degenerativa de Alzheimer é datado de 12 de outubro de 2021 e está assinado pelo médico Joaquim José Coutinho Ferreira.
Enfatize-se que nenhum tribunal coloca em causa tal relatório médico. Isto é, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa deu como provado no ponto 292 da sentença de que “ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer”. A Relação de Lisboa também não coloca em causa tal diagnóstico.
A defesa de Salgado diz no seu recurso que o tribunal de primeira instância nunca valorou o diagnóstico de Alzheimer na aplicação da pena e que deveria tê-lo feito com o objetivo de situar a pena no mínimo legal.
E é aqui que a Relação de Lisboa discorda. Dizendo que tal entendimento implicaria uma “completa desvalorização quer dos bens jurídicos protegidos com a norma violada, quer da elevada ilicitude” dos factos imputados a Ricardo Salgado. Por outro lado, os desembargadores asseguram que a doença de Alzheimer foi tido em conta na definição e na aplicação da pena.
Quais os argumentos da defesa para defender uma perícia? E para quê?
Este é precisamente um dos recursos interlocutórios (o 5.º recurso interlocutório, para ser mais preciso) que a defesa de Ricardo Salgado apresentou, após o tribunal de primeira instância ter recusado a 7 de setembro de 2021 a perícia independente por parte do Instituto Nacional de Medicina Legal.
Com tal perícia, a defesa de Salgado pretendia provar que a doença de Alzheimer já estava num tal estágio de desenvolvimento que teria de ser classificada como uma anomalia psíquica. Ou seja, o seu cliente já não tinha consciência do que se estava a passar à sua volta, logo o julgamento deveria ter sido suspenso e o processo deveria ter sido arquivado.
Ricardo Salgado está em ensaio clínico internacional de medicamento para doença de Alzheimer
O arquivamento do processo era, e continua a ser, o objetivo último dos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squillace, que defendem Ricardo Salgado. Até agora, sem sucesso.
O que decidiram os desembargadores sobre a realização da perícia neurológica?
A relatora Leonor Silveira Botelho escreve no acórdão que a perícia médica independente do Instituto de Medicina Legal, ou qualquer “outra que venha a retratar a evolução da situação clínica do arguido”, só é exigível e relevante “para efeitos de cumprimento da pena”.
Ou seja, só quando chegarmos a uma fase em que a pena de prisão efetiva imputada a Ricardo Salgado tenha transitado em julgado é que se colocará a questão para “aplicação dos institutos legalmente previstos para situações de doença, incapacidade ou idade avançada, vertidos no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade”, lê-se na decisão.
Significa isto que só no momento em que tiver de ser decidido se Ricardo Salgado terá de cumprir pena em estabelecimento prisional ou noutro local é que será feita tal perícia no Instituto Nacional de Medicina Legal.
Para esta decisão da Relação de Lisboa contribuíram os seguintes factos:
- a decisão da primeira instância foi correta ao rejeitar a perícia, pois a mesma seria um “ato inútil, irrelevante e desproporcional.” Precisamente porque nenhum tribunal coloca em causa o diagnóstico de Alzheimer, como escrevemos anteriormente, e a prova de tal doença pode ser (como foi) conseguida por atestado médico;
- por outro lado, os desembargadores consideram que o atestado do médico Joaquim José Coutinho Ferreira não demonstra cabalmente que o arguido se “encontre impedido de prestar declarações ou de exercer o seu direito de defesa nos termos legalmente previstos”;
- para tal constatação, contribuiu o testemunho que Ricardo Salgado prestou no dia 8 de fevereiro de 2022 durante o seu julgamento em primeira instância. Respondendo ao juiz presidente Francisco Henriques, Salgado disse o seu nome completo, os nomes dos pais, a sua data de nascimento e a sua naturalidade, mas recusou-se a prestar declarações com um argumento: “Foi-me atribuída uma doença de Alzheimer”;
- acresce a tudo isto que a Relação de Lisboa recusou a junção de um novo relatório médico datado de 1 de maio de 2023 por o mesmo não atestar “qualquer nova situação” que não tivesse sido valorada pelo tribunal de primeira instância. Além do mais, a lei impõe que a junção de novos documentos só pode ser feita até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância.
A defesa de Ricardo Salgado teve um último e surpreendente aliado de peso na questão da perícia médica: o procurador-geral adjunto Moreira da Silva, que representou o Ministério Público (MP) os autos do recurso na Relação de Lisboa. Moreira da Silva tinha pedido o agravamento da pena de prisão para 10 anos, mas tinha concordado com a realização da perícia médica independente no Instituto Nacional de Medicina Legal.
Nenhum dos quatro desembargadores que apreciou o recurso concordou contudo com esse parecer do MP.
E sobre o arquivamento dos autos que a defesa requereu?
Também foi recusado, porque os direitos de defesa de Ricardo Salgado têm sido respeitados desde o início da tramitação dos autos da Operação Marquês — daí nasceu a pronúncia do juiz Ivo Rosa por três crimes de abuso de confiança.
A Relação de Lisboa é clara ao afirmar que “não foi negado ao arguido o seu direito de prestar livremente declarações, presencialmente ou até à distância, nem o exercício de qualquer outro direito que legalmente lhe esteja reconhecido”. Quem não quis falar foi Ricardo Salgado, lê-se no acórdão.
Acresce a tudo isto que, continua a relatora Maria Leonor Silveira Botelho, as “consequências decorrentes da doença de Alzheimer de que padece o arguido, nomeadamente a diminuição das suas capacidades cognitivas, designadamente de memória, também não são fundamento de suspensão dos presentes autos ou de arquivamento por extinção do procedimento criminal por inutilidade superveniente da lide.”
O tribunal colocou em causa os novos relatórios médicos apresentados pelo ex-líder do BES para provar o desenvolvimento do Azlheimer?
Sim, mas de forma indireta. Até porque Ricardo Salgado leva uma vida normal, dizem, com “a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias.”
Apesar de ter decidido não aceitar o novo relatório médico datado de 1 de maio de 2023 por uma questão legal (a Relação de Lisboa só podia apreciar os documentos de prova que tivessem sido juntos aos autos até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância), os desembargadores não deixaram de o apreciar de forma crítica com os seguintes argumentos:
- o novo relatório assinado pelo professor doutor Joaquim Ferreira “não permite concluir com segurança sobre o concreto agravamento” da doença de Alzheimer porque o mesmo “não atesta a perceção de quem o subscreve, aludindo essencialmente às perceções que outros clínicos, não concretamente identificados, terão retirado da observação do arguido.” Isto é, o relatório médico apresentado não resulta da “observação direta do médico neurologista que o subscreve”;
- dizem que a doença de Alzheimer não o impede de ter uma vida normal. Com efeito, os desembargadores consideram, citando até posições da defesa, que o arguido ocupa “os seus dias com a leitura dos jornais, a preparação da sua defesa no presente processo judicial e a escrever as suas memórias”;
- logo, concluem os desembargadores, repetindo mesmo argumentos, a doença de Alzheimer “não o torna incapaz de gerir o seu dia a dia, nos termos referidos, informando-se do que se passa no país e no mundo, através da leitura de jornais, preocupando-se com os presentes autos, ajudando na preparação da sua defesa, e escrevendo as suas memórias”;
- a questão do já divulgado livro de memórias que Ricardo Salgado está a preparar desde 2017 parece ser particularmente relevante para a Relação de Lisboa. Este “evidencia que mesmo as falhas de memória de que dá conta o relatório médico são combatidas pelo arguido, procurando por certo defender a auto-imagem de profissional responsável, empenhado, competente, determinado e de líder incontestado, mas democrático, que continua a manter.”
- Acresce a isso que “da simples leitura de tal atestado médico” não pode ser retirada a conclusão, como a defesa faz, de que os direitos de defesa de Ricardo Salgado foram violados. “Ao arguido foram asseguradas todas as garantias de defesa, designadamente o recurso”, bem como o “direito a um processo justo e equitativo” e outros direitos constitucionais, insiste a relatora Silveira Botelho
Ricardo Salgado é inimputável?
A resposta é: não. Nem a defesa do ex-líder do BES alguma vez argumentou tal.
Para alguém ser considerado inimputável é crucial de que padeça de uma anomalia psíquica no momento em que praticou os crimes. Ora, Ricardo Salgado era perfeitamente são (e, na ótica do tribunal, continua a ser) entre novembro de 2010 e novembro de 2011, o período em que terá praticado os três crimes de abuso de confiança pelos quais foi condenado em primeira instância e agora em segunda instância.
Logo, a questão da inimputabilidade não se coloca e o processo tem de seguir até ao fim, como realtora Maria Leonor Silveira Botelho deixa claro: “Nos presentes autos não se levanta qualquer questão quanto à imputabilidade do arguido, não tendo o mesmo invocado padecer de qualquer anomalia psíquica no momento da prática dos factos”, lê-se no acórdão.
O que a defesa alega é que a atual doença de Alzheimer atingiu tal estágio que pode ser classificada como uma anomalia psíquica — requisito legal para que se pondere, por exemplo, a suspensão da pena aplicada. Mas também aqui a Relação de Lisboa não concede.
“Mesmo admitindo que se verificam os agravamentos referidos naquele documento, a maioria deles relativos a aspetos físicos e motores, certo é que nele não se alude a qualquer incapacidade do arguido de entender e querer, isto é, a qualquer situação que pudesse ser equiparada à situação de inimputabilidade superveniente à data da prática dos factos”, lê-se no acórdão.
Isso significa que poderá ser preso, mesmo com a doença de Alzheimer?
Em termos teóricos, sim. Uma resposta concreta terá de ser apurada pelo Tribunal de Execução de Penas após a pena de prisão efetiva transitar em julgado se a mesma for liquidada por aquele tribunal específico.
Se a pena de prisão efetiva de oito anos transitar em julgado, eis os passos que terão de ser dados para aferir se Ricardo Salgado cumpre a pena num estabelecimento prisional:
- a perícia médica que então será ordenada pelo Tribunal de Execução de Penas junto do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) terá de concluir que Ricardo Salgado tem noção clara do espaço e do tempo. Ou seja, tem de ter noção clara do que se passa à sua volta, da decisão que a Justiça tomou e das suas consequências. Se a resposta for positiva, Salgado dará entrada numa prisão para cumprir a pena a que tiver sido condenado;
- como se lê no acórdão, a “anomalia psíquica (…) sobrevinda ao agente após a prática do crime, tem que ser de tal forma grave que coloque o arguido numa situação semelhante à de um inimputável”. Ou seja, “sem o domínio da vontade e sem a capacidade de entender” o que está a acontecer. “Não é qualquer doença do foro psíquico, sobrevinda ao agente depois da prática do crime, que permite alterar a forma de cumprimento da pena de prisão”, enfatiza a relatora Maria Leonor Silveira Botelho;
- se, pelo contrário, a perícia independente do IMNL concluir que as capacidades cognitivas de Ricardo Salgado afetam o seu conhecimento sobre o que o rodeia, então haverá duas hipóteses: ou o ex-líder do BES cumpre a pena num hospital prisão, ou então cumprirá a pena em regime domiciliário. Mesmo assim, para cumprir a pena de num hospital prisão, terá de ser demonstrada a sua perigosidade ou uma necessidade especial de prevenção, como o alarme social, por exemplo.
A decisão da Relação de Lisboa foi unânime?
Na prática, sim. Apesar de não haver essa necessidade legal, o coletivo composto pelos desembargadores Maria Leonor Silveira Botelho (relatora), Rui Teixeira (1.º adjunto) e Cristina Almeida e Sousa (2.ª adjunta) chamaram para a decisão a presidente da 3.ª Secção do TRL, Conceição Gonçalves. O resultado foi 3 votos a favor contra 1.
Cristina Almeida e Sousa votou vencida mas apenas porque, além de matérias específicas de direito, entende que Ricardo Salgado deveria ter sido condenado a uma pena de prisão efetiva de 12 anos. A questão da recusa da perícia devido à doença de Alzheimer foi apreciada de forma unânime.
A declaração de voto de Almeida e Sousa é original precisamente porque é muito mais dura do que a decisão vota pela maioria.
Quais os argumentos da desembargadora Cristina Almeida e Sousa para defender uma pena de prisão efetiva de 12 anos?
Porque a juíza entende, ao contrário dos colegas, que as penas parcelares não foram justas e adequadas. “Considero que as penas parcelares de quatro anos aplicadas em primeira instância, para cada um dos três crimes de abuso de confiança qualificada praticados pelo arguido ficam aquém da intensidade dolosa, do grau de ilicitude, tanto das condutas integradoras dos três crimes”, escreveu na sua declaração de voto que faz parte do acórdão.
Ou seja, a desembargadora discorda “em absoluto da afirmação de que as exigências de prevenção especial traduzidas na idade e no estado de saúde do arguido desaconselham penas de mais longa duração”, como entenderam os seus colegas.
Na ótica de Cristina Almeida e Sousa, os factos dados como provados evidenciam que o “nível de culpa” de Ricardo Salgado “é elevadíssimo e aponta para a fixação da pena muito próximo do limite máximo da moldura penal abstracta”. Porque só assim é que se verificará o “restabelecimento dos níveis de confiança e reconhecimento comunitários do valor e eficácia das regras que integram o Direito Penal”.
Além da “intensidade dolosa” (considerada muito elevada até pelas sociedades offshore que detinha “com o objectivo de obstar ao seu manifesto fiscal”), do “grau de ilicitude das condutas (…) inequívoco e muitíssimo acentuado”, dos “deveres profissionais” que lhe eram conferidos pelos cargos que tinha no GES e dos respetivos interesses patrimoniais que tinha de proteger, há ainda a questão familiar.
Os “crimes patrimoniais” foram “praticados por uma pessoa que não tem qualquer pretexto para praticar seja que crime seja, pois que sempre teve uma vida de privilégio, nascido e educado, “numa família com elevado estatuto socioeconómico, bisneto do fundador da ‘Banco Espírito Santo, S.A.'” e que fez “o seu processo de desenvolvimento num ambiente privilegiado, no plano material e cultural”, escreve Cristina Almeida e Sousa, citando a sentença da primeira instância.
“Só a total falta de probidade pode”, continua a desembargadora, “explicar estes comportamentos, acerca dos quais nem sequer se pode dizer que constituam actos pontuais e isolados no contexto de uma vida concordante com o Direito.”
De acordo com os factos dados como provados, Cristina Almeida e Sousa retira a conclusão de que houve um “contexto de exercício quotidiano e prolongado ao longo de décadas” para, a coberto das suas funções de liderança do BES e de diversas empresas do GES, tenha feito tudo para “dificultar a descoberta do seu comportamento criminoso, misturando e confundindo ou fazendo confundir os activos das sociedades do grupo com o seu património pessoal”.
Daí que a desembargadora defenda que as “penas parcelares fixadas para cada um dos três crimes de abuso de confiança qualificado” deveriam ter sido seis anos de prisão para cada um dos ilícitos. “E, em cúmulo jurídico destas penas, teria condenado o arguido, na pena única de doze anos de prisão”, conclui.
Texto corrigido às 21h37