Por estes dias é difícil encontrarmos Fábio Porchat sem estar em frente a uma câmara. O ator e apresentador brasileiro está de passagem por Portugal para gravar uma série inspirada num livro de José Saramago, que pode ser vista a partir de setembro na RTP, e para estrear um novo espetáculo de stand up, que marca o regresso aos palcos, após cinco anos de ausência. Num final de tarde em que o cansaço não dá sinal, conta como descobriu o humor e o teatro, fala da vontade em contar histórias e das mil e uma ideias que teimam em não o largar. “Não paro de ter ideias, a minha cabeça fica pensando o tempo inteiro. Não necessariamente boas ideias, mas vou tentando fazer com que essas ideias aconteçam.”
Estava a estudar administração quando num programa de Jô Soares “abriu o olho” para a possibilidade de ser humorista e se apresentou pela primeira vez a uma plateia. A partir desse dia, nunca mais parou de trabalhar em televisão, no teatro ou no cinema. Há dez anos criou o Porta dos Fundos, projeto internauta onde explora, sem limites ou barreiras, toda a sua criatividade como ator e guionista. “O Porta dos Fundos é minha cara e eu sou a cara do Porta e isso é um motivo de orgulho. Se só tivesse feito isso na minha vida já seria bom de mais.”
O humor de Porchat mudou com o tempo e hoje passa essencialmente pela observação, tanto do outro como de si próprio. Pode ser uma crítica política e social ou apenas uma piada “boba” que no final cumpre a função principal da comédia: fazer rir de forma genuína. “Até as piadas mais podres podem ser divertidas e cada comediante escolhe onde quer ir. Tento evoluir junto com a sociedade e deixar para trás aquelas piadas que já foram feitas, que estavam a magoar o outro e a perpetuar preconceitos. Uma piada não é só uma piada, é também uma opinião e uma força qualquer, eu tento caminhar para outra direção.”
O seu processo criativo na escrita balança entre o individual e o coletivo, não é doloroso e não tem o feedback do público como mote. “O público não sabe o que quer, ele quer só aquilo que já viu e o que já conhece, o público não sabe que quer nada novo, você é que tem de entender os caminhos que a comédia está tomando, ter as ideias e apresentar aos outros uma coisa nova que eles não sabiam que queriam.”
Fala sem rodeios da situação do Brasil e de como espera uma mudança radical nas próximas eleições em outubro. Não tem dúvidas de que a pandemia não imprimiu empatia e compaixão nas pessoas, talvez por isso o seu novo espetáculo tenha como “obrigação” divertir o público, fazendo-o “não pensar em mais nada”. Passará pelo Porto, Braga, Coimbra, Aveiro, Albufeira e Lisboa. Confessa-se nervoso, ainda que confiante. “Vai dar tudo certo.”
Fábio tem a urgência no olhar, fala rápido, pensa rápido e age rápido, tem um ritmo frenético, mas nem por isso deixa de apreciar as coisas simples, como ler um livro, ver uma série, comer bem ou viajar. Já tem o seu próximo destino traçado, até porque, para Porchat, a vida, tal como o mundo, parece mesmo não parar de girar.
Está cansado?
Não [risos], estou bem. Na verdade, quando venho a Portugal em trabalho sabe a férias porque estou fora de casa, estou conhecendo gente diferente, comendo outra comida, vivendo um outro momento. É ótimo e estamos a conseguir fazer esta viagem por Portugal com Saramago com calma, não saímos correndo desesperados, apesar de estarmos a fazer três ou quatro cidades por dia. Por enquanto está gostoso, saí do Brasil no dia 26 de dezembro e não voltei mais desde então.
Já sente saudades de casa?
Acho que dia 20 [de fevereiro] quando voltar vou conseguir responder melhor a essa pergunta, mas acho que vai estar bom, já vai ter sido o suficiente. Diria que estou mais tenso com esta estreia mundial do stand up do que qualquer outra coisa porque é a primeira vez que me vou apresentar.
Temos a ideia de que faz muita coisa ao mesmo tempo. Essa vontade vem de um lado criativo efervescente ou de um sentimento permanente de insatisfação?
Não paro de ter ideias, a minha cabeça fica pensando o tempo inteiro. Não necessariamente boas ideias, mas vou tentando fazer com que essas ideias aconteçam. Sou uma pessoa multifuncional, consigo administrar e organizar bem o meu tempo, por isso é que acho que consigo fazer tanta coisa. Simultaneamente, tento diminuir um pouco o ritmo para conseguir colocar o chapéu até onde posso alcançar, mas sinto que se estivesse a fazer apenas uma coisa ficaria maluco. Preciso de estar com várias possibilidades à minha frente para poder caminhar, ao mesmo tempo tenho uma vida pessoal, sou casado, tenho família, quero viajar, quero divertir-me e tenho de tentar coordenar tudo isso. Uma grande conquista desta minha breve carreira que consegui consolidar é poder dizer “sim” e “não” e definir o que vou fazer e quando o vou fazer.
O Fábio fala, age e pensa rápido, não se cansa de ter tantas ideias? Consegue dormir e desligar?
Sim e não. Aproveito cada momento livre que tenho, mas vivo de contar histórias, de relatar experiências e de descobrir o que está ao meu redor que pode ser cómico e isso efetivamente também acontece nas minhas férias, nas minhas viagens e no meu tempo livre. Estou sempre prestando atenção a tudo e a todos para ver o que pode ter piada e o que pode ser uma ideia que de repente possa funcionar para uma série ou num programa. O livro que estou lendo ou o filme que estou vendo é sempre trabalho, o que é lazer para todo o mundo também é para mim, mas também é trabalho. Não consigo ver uma série sem pensar no que aquilo me pode trazer e significar.
Fá-lo de uma forma consciente?
Acho que é consciente, sim.
Disse numa entrevista que nunca quis ser ator ou artista, mas a verdade é que desde criança sempre foi falador, expressivo, expansivo e engraçado. Teve consciência disso desde sempre ou os outros é que lhe foram dando uma espécie de validação?
Todo o mundo se surpreendeu quando decidi ser ator, ninguém me validou especialmente ou anteviu isso em mim. Fazia cursos de teatro amadores porque achava graça aquilo, nunca tive vergonha, sempre fui muito exibido e sempre contei histórias e logo percebi que as pessoas prestavam mais atenção quando elas eram engraçadas. Acho que inconscientemente fui caminhado para o humor, fui percebendo a minha facilidade para esse lado mais cómico. Decidi ser ator já com 18 anos quando fui ao programa do Jô Soares e foi só ali que eu abri os meus olhos para uma coisa que realmente era óbvia. Fazia teatro desde criança, adorava criar histórias, escrevia muito e assistia a mil filmes. Lembro que quando tinha uns 12 anos ia para a locadora [videoclube] alugar filmes para ver em casa e até dava dicas para os clientes sobre os filmes, lembro que pedi de presente de aniversário para a minha madrinha a assinatura de uma revista sobre cinema para saber das novidades. Era óbvio que eu estaria um dia envolvido neste mundo, mas às vezes a gente não deixa o olhar aberto para perceber os sinais. Acho que com 18 anos até foi cedo, há gente que se descobre com 40, mas no fim foi na hora certa mesmo.
Tinha alguém na família que estimulasse esse lado mais cómico e divertido em si ou é algo completamente inato?
A minha família tem figuras engraçadas e eu observo essas figuras com humor. A minha avó materna, por exemplo, é involuntariamente engraçada, não percebe a graça que ela faz lá do jeito dela, e a irmã dela, minha tia-avó, era para ter sido comediante, fazia comentários muito espirituosos, divertidos e desbocados, até escrevi uma peça chamada “Velha é a Mãe” inspirada nas duas. Sou uma pessoa muito de família e tenho nela uma base, mas não há neles ninguém propriamente comediante. Quando tinha seis anos, tinha acabado de começar a ler, e as minhas tias davam-me livrinhos de piadas do Joãozinho e do Papagaio, adorava aquilo, lia e ria muito, sempre gostei de tudo aquilo que me fazia rir.
A sua primeira plateia foi no programa do Jô Soares, consegue imaginar a sua vida sem esse momento? Como teria sido o seu futuro?
Penso que acabaria por descobrir isso, só que muito mais tarde, aquele programa me abriu os olhos realmente. Estava a estudar administração, que é aquele curso que todo o mundo faz quando não sabe bem o quer fazer na vida. Hoje provavelmente seria o engraçado da empresa, iria estar infeliz e frustrado numa empresa de marketing tentando organizar os eventos.
Na televisão, no teatro e no cinema fez várias coisas depois disso, consegue definir o seu tipo de humor? Ele foi mudando e evoluindo ao longo dos anos ou manteve-se sempre igual?
Acho que tudo vai mudando, vamos tendo outras referências, assistindo e absorvendo várias coisas e só fazendo humor é que se vai descobrindo o que somos. O meu humor é muito baseado em observação, no jeito de falar, no jeito de olhar aquela situação ou aquela pessoa, percebi cedo o que não conseguia fazer. Não sei fazer sotaque, não sei interpretar mil personagens, pessoas que botam uma peruca e um dente podre e se transformam. Não sou essa pessoa, acho que tenho um humor muito característico meu.
A intenção é sempre fazer rir o outro, num riso fácil e acessível, ou também tem o objetivo de fazer pensar?
Varia muito. Cada sketch do Porta dos Fundos pede um determinado olhar, a gente pode fazer uma piada de pum, de política, de casal brigando ou sobre a realidade do racismo no Brasil. O bom é poder transitar em todos esses tipos de humor. Fiz agora um vídeo para o Porta dos Fundos, por exemplo, que era só dizer palavrão, não tinha nenhuma intenção nenhuma, mas quando faço a série “Homens?” falamos sobre o machismo, o feminismo, sobre esse novo homem e o que está acontecendo com ele e ali há uma intenção. Quando apresento o “Que História é essa, Porchat?” ele é um programa de histórias das pessoas, não tem necessariamente uma intenção profunda, é ouvir episódios reais e perceber que todo o mundo pode ser interessante e divertido. No meu stand up novo falo das minhas experiências vividas em viagens e nasce porque penso que vivemos um momento em que as pessoas também se querem divertir um pouco sem ter que estar falando o tempo todo de política, o nosso dia a dia virou só isso. Também me interessa e é oportuno fazer um tipo de humor em que as pessoas se esqueçam um pouco da realidade.
O humor pode por si só um ato político ou social? Tudo pode ser matéria para um humorista trabalhar?
O objetivo principal do humor é fazer o outro rir, ponto. De que forma é que isso vai acontecer? Cada um vai encontrar as suas características e o seu jeito de fazer, tem comediante que é mais cerebral, outros são mais físicos, uns mais do diálogo, outros mais do monólogo, mas o objetivo principal é fazer rir. Como artista, gosto de olhar para um outro caminho, ou seja, fazer alguma coisa que ainda não tenha sido feita, tentar descobrir novas formas e novos assuntos e envolver o humor nisso.
Numa tentativa de fazer melhor?
Não, nada melhor ou pior, porque fazer rir é um ato genuíno. Uma pessoa que está triste e ri de uma piada não fala que riu dessa piada porque ela era inteligente, ela riu de uma piada porque era engraçada. Se é uma torta na cara, o Charlie Chaplin ou o Jô Soares não interessa, o objetivo é sempre a risada. É possível fazer piada com tudo e tudo pode ser engraçado, inclusive as coisas mais horríveis. Uma senhora que vai andado cai num buraco e a gente ri, a senhora pode ter morrido, mas a gente está rindo. Piadas preconceituosas podem ser engraçadas, aliás durante a minha infância inteira contei piadas horríveis, racistas, machistas, homofóbicas, eu ria e as pessoas à minha volta também. Até as piadas mais podres podem ser divertidas e cada comediante escolhe onde quer ir. Eu tento evoluir junto com a sociedade e deixar para trás aquelas piadas que já foram feitas, que estavam a magoar o outro e a perpetuar preconceitos. Uma piada não é só uma piada, é também uma opinião e uma força qualquer, eu tento caminhar para outra direção.
Qual é essa direção?
A que estou a seguir agora, o caminho da observação. Gosto muito da experiência de contar o que aconteceu comigo, gosto de vez em quando de pôr as pessoas a pensarem num assunto, gosto de tocar na ferida, de dessacralizar assuntos que são intocáveis, mas também de piadas bobas. Faço o que me faz rir e isso é muito pessoal, gosto de fazer piadas políticas, mas também adoro fazer as pessoas rirem sem ter que se preocupar com nada.
Fundou o Porta dos Fundos em 2012 e a partir daí a sua imagem ficou sempre associada a este projeto. Isso chateia-o ou é sempre um motivo de orgulho?
Como faço muitas coisas, em muitas áreas, e de muitas formas, as pessoas me reconhecem do Porta dos Fundos, mas também do filme “Meu Passado me Condena” ou de programas como “Papo de Segunda” ou “Que história é essa, Porchat?”. Não teria problema nenhum em ter esse rótulo. O Porta dos Fundos vai fazer 10 anos, mas é uma coisa ainda muito recente, é algo que está agora ganhando mundo, é uma empresa que fundei com os meus amigos que é a minha cara e eu sou a cara do Porta e isso é um motivo de orgulho. Se só tivesse feito isso na minha vida, já seria bom de mais.
Mas sente que funciona como um peso e uma responsabilidade ou um carimbo de liberdade total?
Ter o Porta dos Fundos é uma liberdade e uma tranquilidade, é lá que consigo fazer tudo aquilo que quero com uma liberdade absoluta. A Porta dos Fundos é uma bênção, porque abre mesmo portas a projetos que não faria com certeza noutros lugares. Estar associado ao Porta dos Fundos é uma maravilha.
Como vão comemorar estes 10 anos?
Vamos começar a gravar agora em janeiro e fevereiro uns sketches especiais, mas ainda não posso dizer grande coisa porque ainda não divulgamos, é esperar para ver.
O seu processo criativo na escrita é solitário, coletivo, exigente, sofrido?
Todo o escritor é muito sozinho nesse sentido de transportar uma ideia da cabeça para o papel. Claro que ao longo da vida aprendi a escrever em grupo, aprendi que por vezes tem gente com uma ideia melhor do que a sua. A gente tem de aprender a lidar com o outro, então fui tentando encontrar parceiros para ir delegando, acho que não conseguia fazer as minhas ideias se as fizesse todas sozinho. Gosto muito de escrever, não me é nem um pouco doloroso, é animado e divertido, sento-me para escrever e escrevo ou vou anotando as minhas ideias ao longo do dia. É um processo animado, gosto de escrever e mexer e remexer no texto, acredito que o guião é a base fundamental para um conteúdo ficar bom.
Pensa sempre no público ou na mensagem que quer passar? O feedback dos outros é importante?
Não, penso em mim. Claro que quero que o público se ria e se divirta, mas penso sempre no que é que eu acho engraçado, no que gosto de fazer, porque se começar a pensar no que o público quer, esse é o primeiro passo para o meu erro. O público não sabe o que quer, ele quer só aquilo que já viu e que já conhece, o público não sabe que quer nada novo, você é que tem de entender os caminhos que a comédia estão tomando, ter as ideias e apresentar aos outros uma coisa nova que eles não sabiam que queriam.
Uma das coisas que mais gosta de fazer é viajar. O humor que se faz no Brasil e no outro lado do mundo é necessariamente diferente?
Acredito que cada país tem um estilo de humor e de fazer humor diferente, porque tem outro olhar sobre as coisas, claro que há assuntos universais, como as relações amorosas ou os assuntos políticos, tudo isso acaba por gerar uma identificação no outro e essa realidade pode ser entendida em outros lugares. Ficámos muito felizes quando em 2013 percebemos que o Porta dos Fundos era um sucesso em Portugal, a gente nem imaginaria que os portugueses poderiam estar vendo e entendendo tudo aquilo. O vídeo da Judite, por exemplo, sou eu pintado de azul cancelando a linha telefónica, os portugueses amaram, mas não entenderam porque é que eu estava pintado de azul. Era uma referência a um anúncio de uma operadora brasileira e em Portugal as pessoas riram muito, mas não entenderam porque é que eu estava assim, mas o sentido de cancelar alguma coisa por telefone era algo que atingia também Portugal naquela época.
Qual é a sua relação com Portugal? Lembra-se da primeira vez que visitou o país?
Foi em 1998, na Expo, vim com a família, e até assisti à final da copa do mundo [Mundial) cá. Tinha 15 anos, já foi há algum tempo, mas lembro que fiquei muito encantado por ir para um lugar fora do meu país que falava a minha a língua, onde todos me entendem, e desde aquela época que me recordo de comer muito bem aqui.
Está neste momento a gravar uma série para a RTP sobre os sítios onde Saramago esteve. Como surgiu esta oportunidade?
O realizador Ivan Dias me ligou um dia e convidou, ainda questionei se não era melhor chamar um português para fazer, mas ele queria mesmo alguém de fora com um olhar fresco e que não conhecesse o que Saramago fala. O português não se encanta com Monsanto da forma que eu me encanto, já conhece, já viu mil fotos, talvez perca um pouco o brilho no olho que eu tenho totalmente pelo país. Os portugueses me dizem que estou a conhecer o país melhor do que eles, realmente vou a sítios que muitos não conhecem e isso é um privilégio. Vai para o ar em setembro para justamente o último episódio passar no dia do centenário do Saramago [16 de novembro].
O que mais o tem surpreendido?
É maravilhoso fazer este projeto, é incrível poder visitar aldeias, vilas, cidades grandes e pequenas. Me surpreende ver como o português é recetivo, amável e gentil, as pessoas estão sempre prontas para me receber, conhecendo-me ou não. É um povo muito acolhedor, muita gente pensa que o europeu é reservado e distante, mas vejo o português como alguém muito carinhoso, até pelas expressões que usa, há coisa mais bonitinha do que falar ‘beijinho’? Hoje estava gravando aqui em Castelo Branco e vi um senhor no jardim do Paço Episcopal varrendo o chão, ele olhou para mim e comentou que estava fazendo frio e depois disse: “mas este solinho é uma delícia”. Olha que coisa mais bonita dizer “que solinho”. Além de que para comer mal em Portugal você precisa de se esforçar muito e mesmo assim é difícil, tudo é muito gostoso e interessante, até a tasca com menos estrutura e menos condições tem umas azeitonas ótimas, um queijo incrível, um bacalhau ou uma bochecha de porco.
Qual foi sítio que mais gostou até agora?
Amei Almeida, aquela muralha em estrela, adorei a aldeia de Romeu, um lugarzinho minúsculo que aparece dentro de uma floresta encantada, Rio de Onor, uma aldeia linda ali na fronteira com Espanha, e fiquei impressionado com Monsanto. Sinto que há tantos Portugais dentro de Portugal, há tantos lugares para se conhecer, é um pouco isso que quero mostrar e é isso que Saramago faz no livro. Ele é um viajante não é um turista, ele se perde pelas ruas e se deixa ficar, acho que Portugal oferece isso e permite isso a todos.
Que relação tinha com a obra de Saramago?
É um dos meus escritores favoritos, já tinha lido alguns livros dele, este por acaso ainda não. O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi o primeiro que li e foi um assombro, fiquei muito encantado ao entender, através dele, que era possível falar sobre um assunto que muitos consideram sagrado de uma forma não tão sacra assim, achei isso muito forte. Acho brilhante a forma como ele tem boas ideias e de como inventou um jeito novo de contar aquilo que ninguém nunca no mundo contou e ainda por cima na minha língua. Tenho hoje o prazer de ler um prémio Nobel na minha língua.
É com certeza reconhecido e abordado na rua, lida bem com essa exposição e visibilidade ou preferia ser invisível ou anónimo?
É muito bom e até revigorante ver o público português vir falar comigo, pedir para tirar fotos e acompanhar o meu trabalho. Ter o meu espetáculo já com uma sessão esgotada em Lisboa é incrível, fico deslumbrado com isso. É claro que para um artista é muito melhor ser um observador do que ser observado, a gente quer ver o que acontece ao nosso redor para justamente criar e comigo já fica um pouco mais difícil, porque sei que estou a ser observador o tempo todo. Em algumas aldeias, por exemplo, as pessoas nem conheciam o Saramago, quanto mais a mim. Então pude conversar, tomar um bagaço, jogar cartas e entrar em casa de gente que não fazia a menor ideia de quem eu era e isso é muito rico.
Que imagem acha que as pessoas têm de si? Ela corresponde à realidade ou é enviesada?
Corresponde totalmente, as pessoas dizem que sou igualzinho ao que esperavam e ao que veem na televisão ou na internet, que até a voz é a mesma. As pessoas veem-me muito como alguém alegre, sempre de bom humor, conversativo, sempre puxando assunto. Sou essa pessoa mesmo.
É sempre o mais engraçado numa mesa de jantar?
Não sei se sou o mais engraçado, mas falo bastante [risos].
Como é um dia mau na sua vida?
É quando eu perco a voz, quando por algum motivo fico doente e com dor de garganta, isso destrói o meu dia, é quase como se eu perdesse minha identidade. Perder a minha voz é perder o meu sentido de existir, se fico rouco ou não consigo falar acaba o meu dia, fico desanimado, fico triste num canto. Sei que não adianta falar que ninguém me vai ouvir, então fico murcho, é o que mais me tira do sério. Claro que quando vivo no Brasil de hoje e vejo todas as injustiças e este troço que está na presidência, isso me deixa bastante enraivecido. Ver esses ratos comandado um país e se vingarem nele, eles são a corja mais retrograda possível, isso me irrita e me incomoda muito, mas felizmente este é o último ano desta gente.
Este ano o Brasil terá eleições em outubro, o que espera que aconteça e o que acha que vai acontecer?
Acho que o Bolsonaro vai ser estripado e logo em seguida será preso, ele e aquela família dele. Ele lida muito mal com tudo, é muito incapaz, muito burro, muito ignorante, muito tosco e muito parvo, acredito que a população já entendeu isso.
Irá deixar marcas irreparáveis no Brasil?
Algumas são, principalmente no meio ambiente e na cultura. A pessoa que entrar vai levar quatro anos desfazendo todos os erros deste governo. O Brasil vai respirar de alívio porque independentemente de quem entrar, será humano, mas vai dar muito trabalho. Ainda por cima com a pandemia, o país lidou muito mal com tudo isso, vai ter que levar quatro anos a corrigir o passado.
Desde 2017 que não fazia stand up, agora vai estrear um novo espetáculo em Portugal, que só apresenta no Brasil em abril. Porquê essa escolha?
Estava cá a gravar, tinha os fins de semana livres e queria muito fazer uma tourné por Portugal, já me tinha apresentado em Lisboa e no Porto, mas gostava de passar noutros lugares. Iria estrear o espetáculo em abril, mas como já tinha o texto escrito, arrisquei. Sinto-me muito seguro de estrear cá, o povo português sempre acolheu bem o meu trabalho, sei que vai estar toda a gente disposto a rir, querendo que dê certo.
De que fala este novo trabalho? Como é que o idealizou?
Criei um show para as pessoas rirem muito, todo o mundo está precisando disso neste momento. Fala de todas as minhas experiências em viagens, fui pegando histórias divertidas e curiosas que aconteceram comigo e fui reparando que elas sempre aconteceram em viagens, safaris na África, dores de barriga na Índia ou no Nepal. Fui construindo guião em cima disso, é um texto que tem todo o tipo de observação, mas linha dorsal do espetáculo são as minhas viagens e, claro, sou eu o protagonista de todas essas histórias.
Está nervoso?
Estou.
Porquê?
Porque estou fora do meu país, é um texto novo e ainda não tenho intimidade com ele, mas vai dar tudo certo.
Porque esteve tanto tempo sem fazer stand up?
Estava a fazer stand up há 10 anos, com espetáculos todos os fins de semana, um show que era muito engraçado e o público gostava, mas estava ficando velho. Dez anos depois falava de coisas que as pessoas ainda riam, mas já sentia que aquilo não fazia grande sentido. Queria sair no auge, então parei para tirar umas férias de um ano e para conseguir ter finais de semana a tomar cerveja e assistindo ao Vasco jogar. Esse ano virou dois e depois veio a pandemia. No ano passado senti que em 2022, com todo o mundo vacinado e testado, as pessoas iriam precisar de espetáculos que as fizessem rir, que tirassem elas um pouco dessa tristeza absoluta que tomou conta do mundo inteiro. Me senti quase na obrigação de usar aquilo que tenho de melhor, que é fazer o outro rir, para tentar transformar o ano 2022 mais leve para todo o mundo.
Esta fase pandémica bloqueou-o criativamente ou tornou-o de certa forma otimista em relação ao futuro?
Quero saber quem é que ficou otimista durante a pandemia, foi um horror. Destruiu tudo, no Brasil perdemos mais de 625 mil pessoas, é muita gente, eu próprio perdi gente próxima. O Brasil é um país que teima em não olhar para as suas desigualdades e a pandemia deixou o país mais atento a isso, como as pessoas pobres estão famintas, como as elites têm de se preocupar com uma população sem condições, como as coisas têm de mudar rapidamente. Quando vejo negacionistas, pessoas que vão contra a ciência, torna tudo isso mais desesperado ainda.
Acha que o mundo no geral ficou melhor, mais empático, depois da pandemia?
Não, o mundo continua horrível como ele sempre foi.
Para si o mundo é horrível?
Acho que para todo o mundo.
Hoje divide-se entre a representação e a apresentação de programas. Onde se sente mais em casa?
No teatro é onde me sinto melhor, o fazer piada ao vivo, para as pessoas rirem ali na hora, é muito mágico, muito forte e muito potente. O “Que História é essa, Porchat?” é um programa que amo porque tem um pouco de teatro no meio, tem gente contando episódios curiosos da sua vida e eu me metendo neles, improvisando, é um lugar onde me sinto bem, tranquilo e em casa. Tentei criar na minha carreira lugares que me fizessem sentir assim. O Porta dos Fundos, por exemplo, é um sítio onde sei que posso falar as minhas asneiras que sei que vão ser bem recebidas, mas é o teatro o palco que mais gosto.
Gostava de fazer mais coisas além da comédia?
Não necessariamente. Já escrevi peças dramáticas e fiz um filme, mas o que gosto mesmo é de contar histórias, cómicas ou não. Claro que tenho facilidade para a comédia, quase um dom, mas não o vejo como uma prisão nem sinto a obrigação de fazer uma coisa séria só para mostrar esse lado. Tenho um orgulho muito grande em ser humorista, não tenho problema nenhum se acharem que só sou isso.
Não há o risco de ao fazer uma coisa mais séria não o levarem a sério?
Há [risos]. Já senti isso no filme “Entre Abelhas”, muita gente foi para rir e quando chegou lá apanhou um susto, mas tudo bem. Lido bem com isso, temos a tendência de colocar todo o mundo em prateleiras com rótulos para facilitar a nossa vida, estou bem com isso.
O que gosta de fazer quando não está a trabalhar?
Quando não estou trabalhando na verdade estou, porque quando assisto a uma série, a um filme ou leio um livro, para mim isso de alguma forma é trabalho. Agora estou a ler agora uma edição d’Os Maias que me deram na Livraria Lello, no Porto, uma versão linda, e estou assistindo à série “Succession”, que ainda não vi.
Já tem pensada a sua próxima viagem?
Se tudo der certo, na época do Carnaval vou ao Peru. No fim do ano fiz Caribe, Alemanha, Finlândia, Estónia, Letónia, Noruega e agora Portugal. Gosto de viajar, de entrar, entranhar e variar.
O que o faz rir?
O que mais me faz rir no mundo é ver pessoas apanharem um susto, é a coisa mais engraçada que o ser humano pode fazer à minha frente.