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Quando conseguiu um emprego no Facebook e contou aos pais a notícia, Raquel Lucente, antiga professora de ensino básico, ouviu: “Porque é que vais trabalhar num website?”. A viver nos EUA há mais de 40 anos, mas oriundas do Nicarágua e Itália, a mãe e o pai de Raquel queriam que a filha tivesse sido advogada. “É algo muito típico de famílias latinas”, diz — rindo-se. Raquel é hoje a responsável pela educação para programação informática do Facebook.
Os pais são a inspiração para a missão que tem numa das maiores empresas tecnológicas do mundo: fazer com que todos possam aprender programação e expor “pais, encarregados de educação e estudantes, principalmente de minorias, às ciências informáticas”. O TechPrep, o projeto da empresa para esse desígnio, está já a trabalhar com milhares de jovens nos Estados Unidos.
Se perguntar a alguém no meio da rua o nome de cinco espécies diferentes de advogados, facilmente vão dizer. O meu objetivo é que as pessoas possam dizer, com segurança, o nome de cinco espécies diferentes de programadores”, diz Raquel Lucente.
“Queremos que as pessoas saibam a diferença entre um criador de software e um engenheiro de produto”, afirma. Antes de trabalhar no Facebook, Lucente foi professora de ensino básico em São José e trabalhou como recrutadora para a Teach For America, uma organização de educação sem fins lucrativos.
O trabalho que desenvolveu para garantir que o mercado laboral refletisse a diversidade cultural das comunidades em Silicon Valley, principalmente da comunidade negra americana, levou-a até ao mesmo departamento no Facebook. Agora, passados três anos e meio, está à frente do departamento de Educação para a Informática. Raquel Lucente esteve no F8, o evento anual da empresa, onde falou com o Observador (e com um correspondente do jornal La Stampa), para mostrar a 150 alunos da Bay Area (zona de S. Francisco) que possibilidades podem ter se aprenderem código.
A ética no ensino da programação
Como é que explica às crianças situações como a da Cambridge Analytica, em que o código foi abusado para fins pouco éticos?
É uma pergunta interessante. Por exemplo, com os 150 estudantes que estiveram no F8, a questão não surgiu. Estamos abertos a responder se um estudante perguntar. Também temos de nos preocupar se estamos pro-ativamente a ensinar coisas como privacidade estudantil e como bullying na plataforma. No Facebook temos recursos muitos bons, há uma coisa na rede social chamada de centro de segurança e muitas vezes utilizamos no TechPrep. Assim que os estudantes começam a aceder à Internet, aprendem a codificar, mas também a responsabilidade que têm de ter para com outras pessoas, assim como a responsabilidade que têm de se proteger a si próprios.
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Ensinam ética de programação às crianças?
A ética no código é algo que queremos incluir nos nossos estudos, mas o primeiro passo para a ética no código é a segurança. E antes disso, aprender a codificar. E, antes disso, o acesso à Internet.
Qual é que é o papel de executivos como Mark Zuckerberg ou Sheryl Sandberg no seu trabalho?
No Facebook, temos uma cultura muito aberta. Se alguém como o Mark ou a Sheryl tem uma ideia sobre a educação na ciências informáticas, ouvimos. Ou, se temos uma ideia e precisamos do apoio deles [executivos] é algo que podemos falar. Contudo, felizmente, além dos líderes de topo no Facebook, há imensas pessoas na empresa que se preocupam bastante com o trabalho que a minha equipa faz e contribuem também.
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Porque é que é tão importante para uma empresa maioritariamente dedicada a redes sociais investir no ensino do código?
Programar está a tornar-se numa capacidade essencial do séc. XXI. Já é uma coisa que as pessoas procuram no curriculum quando se chega a uma entrevista de emprego. Sentimos que temos uma oportunidade para ajudar estudantes em todo o mundo. É uma capacidade que sabemos que vai ser necessária para empregos no Facebook no futuro. Programar vai ser algo que as entidades empregadoras vão procurar, independentemente da área. Mais de 50% dos trabalhadores desta empresa estão em trabalhos técnicos. E estamos a tentar que as pessoas que tenham esses trabalhos venham de contextos bastante diferentes.
Como é que junta a experiência com recrutamento com o que está a fazer agora, algo muito mais techie [tecnológico]?
A vantagem em tudo o que tenho feito é que tem sido centrado na diversidade. Quando estava a ensinar estava muito focada em ensino cultural responsável. Quando se está a ensinar, por exemplo, estudantes latinos, a abordagem faz com que se identifiquem com ambiente diário que utilizamos na sala de aula Quando estava a recrutar tinha a responsabilidade de contratar pessoas de cor [people of color, original] para se tornarem professores. Quando comecei a trabalhar na equipa de diversidade do Facebook estavam à procura de alguém que tivesse experiência em educação com um foco na diversidade. O que faço agora com educação informática, ainda é focado na diversidade e em garantir que chegamos a mulheres e outras minorias sub-representadas nesta indústria. Trabalho para garantir que estes grupos são expostos e têm acesso a ferramentas da indústria tecnológica.
Código para novos, velhos, techies e não techies
O trabalho principal é aqui nos EUA?
Agora, no início, sim.
Qual é o objetivo? Em 5 anos querem estar, por exemplo, em Portugal?
Essa é a nossa esperança. Esta empresa [Facebook] evolui muito rápido. Pretendemos garantir que o nosso programa de ciências informáticas chegue à comunidade global. O horizonte temporal vai depender de como podemos localizar a nossa oferta atual e se precisamos ou não de dar programas e parcerias diferentes. Vão sempre ser mais específicas para determinadas comunidade. É difícil definir um cronograma porque se vamos transpor para um país o que estamos a fazer nos EUA, pode resultar muito bem, mas também pode resultar muito mal. Isso pode significar começar do zero. Temos de ter muita sensibilidade quanto às diferenças culturais de cada país, além de outras especificidades.
Como trabalha com crianças e as inspira a codificar, qual o momento que mais a desiludiu nestes últimos dois anos?
Não sei se chamaria uma desilusão a algum momento. Penso que é muito importante reconhecer que as ciências informáticas são uma grande parte da nossa educação, o que nem sempre acontece. Fui professora, é normal ver miúdos a não perceberem o que digo, a não gostarem, não quererem fazer, e voltar no dia seguinte e tentar uma coisa nova. É parte da minha experiência.
O código pode ser a próxima capacidade do séc. XXI, mas ouvimos poucos exemplos práticos. Por exemplo, num trabalho jurídico, porque é que é preciso saber código?
O melhor exemplo, se for um advogado, é se tiver um cliente que trabalhe com dados. Aí tem de saber código. E imagine que é um advogado de direitos de imigração. Perceber como escrever código [para perceber o regime jurídico em que se pode enquadrar o cliente], pode permitir fazer o trabalho que se hoje entrega a um engenheiro de software. Se alguém quiser abrir o próprio escritório de advogados, vai precisar de um website. Vai precisar de recolher a informação das pessoas. Isso é tudo trabalho que um engenheiro de software é capaz de fazer, mas se a pessoa souber, pode fazê-lo. Outro exemplo, se alguém quiser trabalhar em música e quiser criar tons diferentes na composição, é algo que consegue fazer com código, pondo o computador a fazer isso sozinho.
Ensina crianças, mas também pessoas mais velhas…
Sim. E até mostramos isso na nossa linguagem. Utilizamos a palavra aprendizes [“Learners”], em vez de estudantes, porque acreditamos que adultos que podem não estar no sistema tradicional de educação também querem aprender a capacidade de escrever código. Recentemente, fizemos uma doação de 50 mil dólares para uma formação intensiva na Bay Area para que mulheres adultas de comunidades com minorias sub-representadas aprendessem código. O site do TechPrep não é só para estudantes, é para pessoas dos 8 aos 88 anos. Queremos dar suporte para aprendizes de qualquer idade.
Sendo uma mulher na indústria tecnológica, sente alguma responsabilidade acrescida neste emprego?
Sim. Dizer o que penso [“speak my truth”], garantir que a minha voz e a minha opinião são ouvidas e que outros que tenham o mesmo background e também se sintam capazes de alcançar o mesmo. Sou parte da comunidade de líderes latinas no Facebook, e temos um lema: ser o poder para dar poder. Tenho de mostrar que é suposto estar aqui para mostrar a outros que é possível. Sinto que o que tenho não é responsabilidade, mas sim uma oportunidade. Não é nenhum fardo, mas sim uma oportunidade. E é algo que agradeço bastante aos meus pais.
*O Observador esteve no F8, na Califórnia, a convite do Facebook