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Faltas, atrasos nos processos, crimes. Histórias de juízes expulsos da magistratura judicial

Faltas injustificadas, atrasos nos processos ou nas suas decisões, incapacidade ou, mesmo, a prática de crimes. Na última década foram afastados 24 juízes dos tribunais portugueses.

Chegou ao Conselho Superior da Magistratura (CSM), em Lisboa, vestido de fato e de gravata azul escura, agradecendo às dezenas de pessoas que o aclamavam, e sem máscara,  — ao contrário do que então a lei determinava em caso de haver concentração de pessoas. De dedo em riste, o juiz Rui Fonseca e Castro dirigiu-se à PSP e puxou da sua autoridade, mesmo suspenso de funções: “Eu sou a autoridade judiciária aqui. Você vai ser detido se carregar em alguém”, disse a um elemento da PSP, depois de lhe ordenar que se pusesse no seu “lugar” e que o lugar dele, de juiz, era lá em cima.

Lá em cima, porém, estava o CSM a avaliar a sua prestação no último ano, desde que voltou à magistratura depois de ter saído dez anos para ser advogado e ter criado o movimento “Juristas pela Verdade”. A situação à porta do CSM motivou uma queixa da Direção Nacional da PSP no início do mês de setembro, mas esta ficou de fora do processo disciplinar cuja decisão foi conhecida quinta-feira.

O juiz que durante o período pandémico recusou as regras sanitárias impostas para combater a Covid-19, levando o selo de negacionista, acabaria demitido. E os fundamentos foram tornados públicos. Por um lado faltou durante nove dias seguidos ao trabalho sem avisar ou justificar a sua ausência entre os dias 1 e 12 de março de 2021 — o que significa que todas as diligências no Tribunal de Odemira nesses dias tiveram que ser adiadas. Já no regresso ao trabalho, a 24 de março, obrigou os presentes na sala de audiências a retirarem as máscaras. Como recusaram, ele adiou a diligência “com prejuízo para a celeridade processual e interesses dos cidadãos afetados”. A acrescer a estas violações ao Estatuto dos Juízes, publicou vários vídeos na redes sociais incentivando à violação da lei e das regras sanitárias, bem como proferiu afirmações difamatórias, não se abstendo de difamar várias pessoas, entre eles o presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues.

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“Para estas três infrações, em concurso, o plenário deliberou, por unanimidade, a aplicação da sanção única de demissão, para além da perda de vencimento relativa aos 9 dias de faltas injustificadas. A sanção de demissão implica o imediato desligamento
do serviço do Sr. Juiz de Direito Rui Pedro Fonseca e Castro”, lê-se na decisão conhecida esta quinta-feira.

Faltas injustificadas, atrasos nos processos ou nas suas decisões, incapacidade ou, mesmo, a prática de crimes têm sido a justificação para que o CSM tenha, nos últimos dez anos, em cerca de 6% dos 363 processos disciplinares abertos optado pela penalização mais severa: expulsão. Pelo menos vinte juízes foram aposentados compulsivamente e quatro, incluindo o caso agora conhecido do juiz Rui Fonseca, foram mesmo demitidos sem direito a qualquer pagamento.

Sempre que há motivos para mover um processo disciplinar, o CSM começa por abrir um inquérito, ouve o juiz em questão e decide se avança para o processo disciplinar. Caso não haja matéria disciplinar, o CSM arquiva o processo. Se houver motivos para castigar o juiz, existem vários tipos de penas: a advertência, a multa, a suspensão de serviço, a inatividade e, as mais graves: aposentação compulsiva ou, num caso extremo, a demissão.

Rui Fonseca e Castro, o juiz que criou os “Juristas pela Verdade” e acabou suspenso ao fim de 25 dias de polémicas

Rui Fonseca e Castro foi o quarto juiz demitido nos últimos dez anos. Antes dele foi o juiz Rui Rangel a ser demitido pelo seu envolvimento na Operação Lex, isto depois de ter sido alvo de outro processo disciplinar por ter falado sobre Sócrates e a Operação Marquês num comentário televisivo — processo que lhe valeu uma multa. Também a mulher de Rangel, a desembargadora Fátima Galante, com quem permanecia casado apesar de estar separado, foi expulsa da magistratura judicial, mas aposentada compulsivamente. Também ela é arguida na Operação Lex. Ambos foram afastados de funções ainda antes de o processo estar sequer na fase de instrução — um dos motivos pelos quais os dois acabariam por recorrer da decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, embora sem sucesso.

O juiz Rui Castro foi demitido depois de várias faltas injustificadas e vídeos colocados nas redes sociais contra as medidas sanitárias

LUSA

Rangel e Galante, o casal que não se separou, sem se divorciar, e trabalhava em conjunto

Nestes dois casos, o processo disciplinar do CSM socorreu-se de provas já recolhidas no processo-crime para sustentar a sua decisão. E concluiu que Fátima Galante ajudava Rangel para que ele pudesse desempenhar outras atividades paralelas às da magistratura, que lhe traziam dinheiro, violando assim o Estatuto dos Juízes. Uma delas era ser comentador televisivo. Por outro lado, segundo o acórdão a que o Observador teve acesso, Galante também recebia dinheiro além do ordenado.

O Supremo Tribunal concluiu que os dois juízes desembargadores violaram os deveres de prossecução do interesse público, de independência e de isenção, além dos deveres de integridade, retidão e probidade inerentes às funções de magistrado judicial. Acresce que Rui Rangel, além de ter partilhado com Fátima Galante processos em segredo de justiça, terá negociado acórdãos à medida dos visados, cobrando por isso. Quem decidiu o destino de Rangel teve em linha de conta que, enquanto houve esta partilha de processos, entre 2008 e 2018, entraram nas contas de ambos os magistrados 270 depósitos em dinheiro, num total de 394.544,53 euros. Valores que ambos recusam ser pagamentos por causa dos acórdãos proferidos.

Nos últimos dez anos, em cerca de 6% dos 363 processos disciplinares abertos optou-se pela penalização mais severa: expulsão. 20 magistrados foram aposentados compulsivamente e quatro demitidos.

Um dos acórdãos sob suspeita é o conhecido processo dos No Name Boys. O julgamento deste caso ocorreu em 2010 e dele saíram 13 condenações a penas de prisão efetiva e 16 penas suspensas entre os 38 arguidos. Quando chegou ao tribunal superior, Rui Rangel ainda pediu escusa, por integrar a lista de candidatura à presidência do Benfica. Mas o Supremo Tribunal considerou que devia ser ele a manter-se no processo. O acórdão seria assinado por ele, mas terá sido escrito por Fátima Galante.

Há também um caso ocorrido em 2014 na A8, na zona de Lousa, quando um condutor que circulava a 100 quilómetros/hora num piso molhado se despistou, capotou e embateu de frente com outro carro. Um dos ocupantes da viatura morreu e uma outra vítima, que sofreu ferimentos graves, descobriu mais tarde, nos exames médicos, que tinha acabado de perder um bebé. O condutor foi acusado de homicídio qualificado e recorreu. A resposta do Tribunal da Relação também terá sido preparada por Fátima Galante, apesar de o caso ter sido entregue a Rui Rangel.

Lex. Como os juízes Rui Rangel, Fátima Galante e Vaz das Neves são acusados de terem viciado o sistema judicial

Já em junho de 2020, Supremo Tribunal dava razão ao plenário do CSM, considerando que efetuou uma “análise detalhada dos factos apurados e imputados e os deveres profissionais tidos por violados, num esforço de conjugação e concretização que torna verosímil a posição adotada” de sancionar o juiz com a expulsão, através da demissão.

Cinco meses depois o Supremo decidia no mesmo sentido o recurso interposto por Fátima Galante quanto à aposentação compulsiva. Também a magistrada apelava ao tribunal para o facto de o processo crime ainda não estar resolvido. Mas o tribunal lembrava que a lei não impõe que o processo disciplinar espere pelo processo, sendo uma opção de quem tem que tomar a decisão. Mais uma vez deu razão ao CSM.

Rui Rangel e a mulher Fátima Galante viram o CSM aplicar-lhes penas distintas, ambas sem esperar pela decisão do processo-crime

LUSA

A juíza que prestava serviço à Cruz Vermelha e pedia a advogados para lhe tratarem dos processos

Entre os juízes demitidos na última década pela prática de crimes está também Joana Salinas, condenada por peculato. O caso desta desembargadora do Porto acaba por ter contornos semelhantes aos do enredo de Rangel e Galante. Também presidente das delegações da Cruz Vermelha do Porto e Matosinhos, a magistrada chegou a pedir a um estagiário — a quem conseguiu estágio num escritório de advogados — para lhe fazer resumos dos processos, uma altura em que ela própria enfrentava dois processos disciplinares por atrasos processuais.

“Um dia a juíza pediu-me para me encontrar com ela na Cruz Vermelha de Matosinhos. Pretendia remunerar o que eu estava a fazer. Apercebi-me que já não queria meros resumos, mas algo mais. Seriam projetos de acórdão. Não lhe disse logo que não, só o fiz mais tarde. Não queria que ficasse chateada comigo”, relatou o estagiário, em 2015, durante o julgamento da magistrada.

Segundo a acusação, Joana Salinas chegou a comentar com outras duas advogadas que contratou para a Cruz Vermelha o quão difícil era acumular funções. Uma das advogadas suas conhecidas — e a quem Joana Salina ofereceu um contrato com a Cruz Vermelha — chegou mesmo a redigir-lhe acórdãos. Disso mesmo dão conta alguns e-mails apreendidos no processo, à semelhança de Rangel, que além de pedir ajuda a Galante, pediu também auxílio a namoradas juristas com quem se relacionou para o ajudar a elaborar acórdãos.

Juíza Joana Salina, condenada por perculato, trabalhava como voluntária na Cruz Vermelha e pedia a advogados da instituição para a ajudarem com os acórdãos.

Salinas acabou condenada a uma pena suspensa de dois anos e meio. Em 2019 aparecia inscrita na Ordem dos Advogados com o nome Joana Vaz Carmo, uma informação que à data foi confirmada pelo Conselho Regional do Porto — o mesmo nome que já tinha usado na Ordem em 1983, inscrição que suspendeu em 1985. A sua inscrição continua ativa.

O juiz que teve avaliação medíocre e que agora é funcionário público

Já Miguel Fernandes, o quarto juiz demitido, apurou o Observador, foi expulso por uma série de atrasos nos processos e acabou por ser considerado inapto para o serviço. O anúncio da sua demissão foi publicado em Diário da República a 4 de maio de 2016, mas a decisão do CSM tem sido fortemente contestada pelo magistrado. Além do recurso da decisão, o juiz pôs também providências cautelares para não lhe ser retirado o ordenado e para lhe serem conferidos plenos direitos para se candidatar a funções públicas. A última decisão, que não lhe dá razão, é de julho de 2021, exatamente o mês em que, em Diário da República, o Instituto Nacional de Administração surge a nomeá-lo como técnico superior — depois de ganhar um concurso que, entre outros profissionais, procurava pessoal para prestar apoio técnico na área jurídica.

“A demissão não implica a perda do direito à aposentação ou reforma, nos termos e condições estabelecidos na lei, nem impede o magistrado de ser nomeado para cargos públicos ou outros que possam ser exercidos sem as particulares condições de dignidade e confiança exigidas pela função judicial”, explica o CSM em resposta ao Observador, nada tendo a acrescentar sobre  as relações laborais do juiz, que ficou desligado de qualquer vínculo à magistratura judicial.

Numa das providências que o antigo juiz, formado na Universidade de Direito de Lisboa, interpôs, pede que lhe seja ressarcido o ordenado que recebia, apresentando para tal um conjunto de despesas que mantém, como a casa, o carro e todas as despesas inerentes. Noutra pede que lhe sejam devolvidos todos os direitos para poder candidatar-se a funções públicas. O Supremo não aceitou nenhum dos pedidos.

Segundo o Estatuto dos Juízes, os magistrados passam por processos de avaliação e são-lhes atribuídas notas, que têm implicações na sua carreira. Os juízes são avaliados através de inspeções ordinárias e extraordinárias feitas por juízes mais experientes, os chamados inspetores judiciários. Nos últimos dez anos, entre 2010 e 2020, foram abertas 3656 inspeções ordinárias e 301 extraordinárias.

Além destas inspeções, se o Conselho Superior de Magistratura (CSM) — o órgão que regula e disciplina os juízes — tiver conhecimento da violação dos deveres profissionais por parte de algum juiz, pode abrir um inquérito com vista a um processo disciplinar contra o magistrado. Numa década foram cerca de 300 estes inquéritos, numa média de 30 por ano.

Esta avaliação, segundo o regulamento, tem em vista três vertentes: a capacidade humana do juiz; a adaptação ao serviço e a preparação técnica. Na capacidade humana do juiz, é avaliada a sua independência e isenção, assim como a sua relação com outros profissionais. Na adaptação ao serviço, avaliam-se questões como a assiduidade, o zelo e a dedicação e a produtividade — ou seja, a taxa de resolução de processos por ano. Na preparação técnica tem-se em linha de conta, por exemplo, a capacidade sintética e a linguagem simples do magistrado.

As avaliações são feitas com Muito Bom, Bom com Distinção, Bom, Suficiente e Medíocre. As notas determinam o futuro de cada magistrado e são fundamentais para que estes consigam chegar a determinado tribunal, onde ambicionaram trabalhar. Dificilmente um juiz que não tenha duas classificações de “Muito Bom” acede a um Tribunal da Relação. Por outro lado, os juízes que tenham notas mais baixas são colocados em tribunais considerados menores, por terem processos menos complexos.

As inspeções não têm, em regra, uma finalidade disciplinar, nem servem como forma de ação disciplinar sobre os juízes. As inspeções ordinárias avaliam o mérito dos magistrados, classificando-os com uma nota que terá efeitos na sua colocação, transferência e promoção. Já em relação ao objeto de uma inspeção extraordinária, depende de quem a pediu. No entanto, num caso ou noutro, caso a nota final seja Medíocre, origina um processo disciplinar — porque esta é a única via que o CSM tem para aplicar uma sanção.

As inspeções não têm, em regra, uma finalidade disciplinar, mas avaliam o mérito dos magistrados, classificando-os com uma nota que terá efeitos na sua colocação, transferência e promoção. No entanto, caso a nota final seja Medíocre, origina um processo disciplinar — porque esta é a única via que o CSM tem para aplicar uma sanção.

O processo disciplinar, em caso de avaliação medíocre, visa averiguar se o juiz teve aquela avaliação num caso isolado ou se, de facto, deve ser afastado de serviço, sendo suspenso ou aposentado compulsivamente. E foi o que aconteceu com este juiz. Em 2011 e no ano seguinte foi avaliado com “Suficiente”, nos dois anos seguintes com Medíocre. O relatório de inspeção sobre ele descreve-o como um “magistrado civicamente idóneo, independente, isento e portador de conduta muito digna, revelando boa capacidade para o exercício da função”, mas recorda que, acerta altura do seu percurso profissional os seus despachos começaram a ter uma “dilação bastante grande, o que, dado o nível da pendência, não tem justificação.”

“O seu prestígio profissional está bem longe de ter alcançado o mínimo, pois que são vários os atrasos verificados e é enorme a incapacidade revelada para que seja profissionalmente considerado”, lê-se num dos relatórios.

O juiz aposentado compulsivamente por mentir em tribunal

Em junho de 2019 foi a vez de o CSM se pronunciar sobre o juiz Vítor Vale, de Famalicão, que dois anos antes tinha sido condenado por um crime de falsidade de testemunho. É um comportamento “incompatível com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções”, lia-se na ata deste órgão regulador. Quando avaliou este caso o CSM ponderou uma pena mais leve, de suspensão do exercício de funções por um período de 240 dias, o máximo previsto na lei, mas a maior parte dos votos ficou na aposentação compulsiva.

O órgão decisor considerou que o crime por falsidade de testemunho a que foi condenado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, e que o Supremo confirmou, demasiado grave para manter o magistrado em funções. Vítor Vale mentiu num processo relativo a uma herança milionária, em que foi testemunha. Em causa a herança de José Pinto Basto, ligada à Vista Alegre, disputada pela ex-mulher do juiz Alexandra Pinto Basto e o irmão. Para o Supremo Tribunal de Justiça, a falsidade de testemunho no processo da herança foi “uma forma de vingança” contra a ex-companheira por esta se recusar a “reatar a relação”.

O juiz Vítor Vale foi aposentado compulsivamente por ter prestado um falso testemunho em tribunal na sequência de um processo de herança da ex-mulher, Alexandra Pinto Basto.

Já antes Vítor Vale tinha sido condenado a uma pena suspensa de ano e meio por violência doméstica, estando em causa maus tratos psicológicos contra Alexandra Pinto Basto por esta não querer reatar a relação que mantiveram até julho de 2011. Depois da separação, o magistrado mandou 12 mensagens escritas a chamar a ex-companheira de “porca”, “miserável” e “mentirosa”, ameaçando-a de que se iria arrepender porque “os juízes mandam nesta m… toda”. O Supremo Tribunal de Justiça acabaria por absolver o magistrado na parte criminal sob o argumento de que “o tipo de linguagem era recíproco” entre o casal, não se verificando por isso o ilícito em questão.

O juiz que atrasou a decisão de 250 processos

A 20 de setembro de 2011, o CSM decidiu aposentar compulsivamente um juiz que tinha sido alvo de um processo disciplinar sete meses antes. Fundamento: “Violação dos deveres de zelo, de prossecução do interesse público e do dever de atuar no sentido de criar no público a confiança em que a justiça repousa.”

O magistrado tinha estado sete anos no tribunal de Mangualde, para depois ser colocado como juiz auxiliar em Viseu. Na altura da expulsão estava ao serviço do tribunal da Covilhã — mudança que ocorreu a seu pedido. E foi por aqui que abriu a conclusão de 250 processos, aos quais deixou passar o prazo legal para a decisão ou despacho final.

Segundo o processo disciplinar, que o Observador consultou, destes 250 processos, 90 acabaram por ser despachados por juízes auxiliares a seu pedido. Para além destas duas centenas e meia, quando lhe foi posto o processo disciplinar o arguido tinha já na a seu cargo 304 processos com conclusão aberta, por despachar, e 50 processos em que se limitou a ler um resumo da sua decisão em audiência, sem nunca tendo passado a escrito a sua fundamentação.

O processo disciplinar descreve também casos de julgamentos em que o juiz só leu a sentença cerca de um ano depois de terem terminado as audiências, depois de sucessivos adiamentos sem qualquer explicação.

Em sua defesa, o juiz alegou sempre que sofria de problemas do foro psíquico, agravados pela morte da mulher com consequência psicológicas para a filha de ambos. Também a doença de um escrivão colocado no tribunal o limitava no desempenho de funções e todos estes fatores tinham sido a bola de neve no seu trabalho. Só a 2 de maio desse ano de 2011 o magistrado acabaria por pôr baixa médica, já depois de lhe ter sido movido o processo disciplinar.

Nessa altura o Conselho Superior da Magistratura foi obrigado a recorrer à colaboração de juízes titulares dos Tribunais do Trabalho de Castelo Branco e da Covilhã, em regime de acumulação para despachar todos os 304 processos que o magistrado deixara pendentes de despacho ou decisão.

Perante o cenário, o CSM acabou por optar pela pena pena disciplinar de aposentação compulsiva — podendo o juiz receber uma reforma de acordo com os anos de serviço. O juiz ainda recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando que o órgão que regula e disciplina a sua profissão não tinha tido em conta a sua situação de doença.

Mas o Supremo deu razão ao CSM: por ter tido em conta essa condição, optou pela aposentação e não pela demissão do juiz. “Ao atuar da forma descrita, não lavrando e não depositando as decisões dentro dos prazos legalmente estipulados e ao ler decisões por apontamento, sem proceder ao seu depósito, sabia o juiz  que desrespeitava de forma grave normas legais e procedimentos processuais imperativos e que dessa forma deixava de administrar justiça em nome do povo de forma pronta e oportuna, lesando assim direitos legítimos dos intervenientes processuais, pondo em causa a eficácia do tribunal, cerceando-lhe o direito a uma decisão célere e justa”, lê-se na decisão do Supremo, assinada a 5 de junho de 2012.

As decisões do Conselho Superior da Magistratura são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça

Juíza alegou problemas pessoais para justificar as falhas

A mesma pena foi aplicada, na sequência de um processo disciplinar nascido de inquérito aberto em maio de 2013 a uma juíza de um tribunal cível do Norte. A magistrada estava ao serviço da magistratura judicial há já 15 anos e tinha já sido multada pelo atraso em passar a papel as suas decisões. “Nalguns casos há um hiato de tempo além do que é razoável entre a data da realização da diligência e a assinatura eletrónica da ata (audiência preliminar) onde é reproduzido o despacho”, constava no processo disciplinar consultado pelo Observador.

Segundo o relatório sobre o seu trabalho, a magistrada sempre exerceu as funções demonstrando preparação técnica-jurídica, no entanto, também revelou sempre “significativas deficiências em termos de organização, método, tramitação / controlo de processos e observância dos prazos”.

Ao Supremo, a juíza alegou que tinha um irmão já adulto a viver com a mãe e que, sem trabalho, sofre de problemas psicológicos agravados pelo consumo de álcool e haxixe. A juíza e a irmã prestavam à data apoio à família, sobretudo em situações de tentativas de suicídio do irmão, chegando a mãe a ligar para ela quando estava no tribunal.

Já antes de se separar, o marido trabalhava longe e só vinha a casa de vez em quando, deixando as duas filhas a cargo da magistrada. “Os problemas do casal que levaram à separação e decisão de divórcio, afetaram a arguida, tendo desenvolvido uma perturbação psiquiátrica de foro afetivo – perturbação de adaptação com ansiedade, depressão e alterações de conduta. Esta perturbação psiquiátrica da arguida é ainda agravada pela ansiedade de saber não estar a corresponder ao nível de desempenho profissional consentâneo com o que seria esperado”, lê-se no processo.

Vários processos por aposentação compulsiva devem-se à avaliação Medíocre dos juízes, dada por atrasos a despachar processos. Uma das principais razões para o Estado português ser condenado pelos tribunais europeus.

Aliás, já depois de suspensa, a magistrada pediu para terminar os processos que tinha pendentes, mas três meses depois ainda não o tinha feito “o que reforça a conclusão da classificação de medíocre”, lê-se no acórdão do Supremo.

O CMS reconhece que a juíza possa ter tido problemas pessoais e familiares, como a própria alegou, “contudo não é a principal explicação para tudo o que de negativo se mantém desde há vários anos em claro prejuízo do cidadão“. Também o tribunal superior considerou que “as dificuldades de índole familiar da recorrente, sendo assinaláveis, não revestem carácter inultrapassável e não explicam totalmente o desempenho profissional deficitário da juíza evidenciado pela facticidade provada”.

Ainda assim, o Supremo considerou que dos 562 processos em que houve violação dos seus deveres, a maior parte já tinha sido alvo de um processo disciplinar que resultou numa multa. Dos processos que ficaram para apreciar (93), 47 foram considerados justificados por baixa médica ou férias judiciais, dando razão à magistrada, por considerar, assim, a pena desproporcional ao que já lhe tinha sido aplicado. A decisão contou, porém, com um voto vencido da juíza Ana Luísa de Passos Geraldes.

Para esta magistrada, ficaram claras no processo as “significativas deficiências, em termos de organização, método, tramitação/controlo do processo e observância dos prazos e procedimentos legais,” assim como a “produtividade muito modesta” da juíza. O que a seu ver tem “impacto negativo no estado dos serviços e na imagem pública dos tribunais”. Daqui ter sido avaliada com notas de “Suficiente” e de “Medíocre”. Na declaração de voto, a juíza lembra que grande parte das condenações do Estado Português pelos tribunais europeus se deve sobretudo ao direito do cidadão à decisão judicial em prazo razoável. O que tem a maior relevância na decisão.

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