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Flórida, Berlim, Londres. Tanto deste como do outro lado do Atlântico, a questão tem-se colocado: faz sentido os alunos repetirem o ano por causa das aprendizagens que ficaram por fazer à boleia da pandemia? A ideia de repetir o ano, tal como é discutida em alguns países, não é sinónimo de um mero chumbo — e os pais, mais do que os professores, têm uma palavra fundamental a dizer. Em Portugal, diretores, encarregados de educação e professores preferem outras hipóteses para colmatar falhas do ensino à distância, como um ano letivo mais longo ou o ensino personalizado.
Nos Estados Unidos, o projeto-lei chegou ao senado da Flórida pela mão da democrata Lori Berman e faz agora o seu caminho legislativo, devendo, em breve, tornar-se lei. A ideia tem sido defendida pelo governador do estado desde 2020, mas o republicano Ron DeSantis nunca passou das palavras à ordem executiva. Agora, se a proposta vingar, os pais têm até 30 de junho para pedir às autoridades distritais de educação que os filhos se mantenham no mesmo ano de escolaridade. Nota importante: mesmo que recuperem tudo a meio do ano, não podem simplesmente avançar. Têm de repetir o ano do princípio ao fim.
Até à data, a lei estadual da Flórida deixa a decisão sobre chumbos exclusivamente nas mãos das escolas. Poderia em Portugal, acontecer algo semelhante?
“A melhor solução é prolongar o ano letivo, com três ou quatro semanas a mais, e começar o próximo ano letivo mais cedo. Deveríamos encurtar as chamadas férias de verão”, defende David Justino, antigo ministro de Educação do PSD, quando questionado sobre as estratégias para recuperar o tempo perdido durante a pandemia. “Chumbar toda a gente um ano é desastroso e não há ganhos em aumentar as horas de escola”, acrescenta, comentando também uma das propostas em cima da mesa no Reino Unido que passa por aumentar o dia escolar. Seja qual for a solução seguida em Portugal, David Justino sublinha que é preciso ter dados sobre a situação dos alunos — algo que o país não tem.
Eduardo Marçal Grilo, também antigo titular da pasta da Educação (PS), é adepto das tutorias e reforça a ideia de que é preciso “diagnosticar bem o prejuízo” para escolher o melhor caminho a seguir. Este, acredita, será diferente consoante o grupo de alunos, já para não dizer que até mesmo de aluno para aluno as necessidades serão diferentes. Tal como David Justino, lembra que “o tempo não é elástico, e há que comer nas férias”.
“As férias de verão deveriam ser manifestamente diferentes. Desperdiçamos muito tempo, são férias muito extensas, e há muitos miúdos que ficam dois meses sem nada. Este tempo poderia servir para compensar. Claro que custa algum dinheiro: contratos de professores, horas extra…”, detalha Marçal Grilo. Criar um ano extra para os alunos recuperarem o que ficou perdido ou simplesmente mantê-los no mesmo ano de escolaridade não é a solução que mais lhe agrada.
“Ouço muito falar da necessidade de recuperar, que é preciso minimizar os prejuízos — e com certeza que os há —, mas não há uma varinha mágica”, sublinha, insistindo que é necessário ter diagnósticos feitos e não trabalhar apenas com base na intuição. “Repetir o ano dependerá muito do estado em que os miúdos estiverem. Por exemplo, se no fim do 2.º ano não souberem ler, só soletrar, isso é o mesmo que não saberem ler. Se for esse o caso, então talvez seja preferível que esse aluno repita o ano escolar, seja um ano letivo especial, seja um ano como os outros.”
O modelo germânico: os pais podem decidir chumbar os filhos
Em alguns estados federais alemães, como Berlim, Hamburgo ou Renânia do Norte-Vestfália, contrariando anteriores regras, os alunos podem voluntariamente repetir o ano a pedido dos pais, desde que a escola concorde. A fórmula é semelhante à norte-americana, mas com uma nuance: na Alemanha a progressão automática de ano é regra e o chumbo de um aluno só acontece mediante critérios muito apertados.
Em Hamburgo, por exemplo, para repetir o ano era necessário que houvesse um fardo excecional sobre o aluno que o impedisse de estudar. A decisão era tomada pela escola e era obrigatória luz verde das autoridades escolares superiores, um parecer vinculativo que agora desaparece. É que a pandemia, o fecho das escolas e o ensino à distância são considerados isso mesmo: um peso extraordinário sobre os estudantes. Assim, as escolas, sem outras autorizações, podem deixar o aluno chumbar, a pedido dos pais, desde que se conclua que isso é no seu melhor interesse. O aluno tem de ser avaliado e deduzir-se que a sua necessidade de apoio é superior à do grupo em que está inserido e que essa desigualdade tenderá a aumentar se os alunos se mantiverem juntos.
“Todas as soluções são possíveis”, diz Jorge Ascenção, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap). “Mas repetir um ano não deve ser a solução à partida. Imaginemos, por absurdo, que todos os anos temos uma pandemia. Manter o aluno no mesmo ano de escolaridade seria demasiado redutor”, acrescenta. Na sua opinião, o que é preciso é “aproveitar o que se aprendeu com o ensino à distância e repensar o modelo pedagógico” que se usa nas escolas. “Não é preciso estar na escola como num autocarro, a ouvir debitar matéria. Podemos fazer mais e melhor em menos tempo”, argumenta o presidente da Confap.
Academias de verão e férias mais curtas
Diminuir a pausa letiva no verão é uma das ideias avançadas pelo ministro da Educação britânico em duas entrevistas. À BBC e à Sky News, Gavin Williamson confirmou que o Governo está a considerar algumas medidas para compensar a aprendizagem perdida: férias mais curtas, mais horas de aulas por dia e um ano letivo com cinco períodos.
Em Portugal, encurtar o descanso de verão é a ideia mais bem recebida e é uma das sugestões feitas por vários especialistas ouvidos pelo Observador, mesmo que os moldes apontados não sejam exatamente iguais.
Academias de verão nas escolas é a proposta de Alexandre Homem Cristo, autor do estudo “Escolas para o Século XXI” e colunista do Observador, onde publica regularmente ensaios sobre políticas públicas de Educação. “É preciso haver um jogo de equilíbrios e sabemos que não temos dinheiro para dobrar o esforço do sistema educativo. Uma hipótese seria as escolas abrirem no verão, mas não seria para lecionar matéria. O objetivo é que os miúdos não se desliguem da escola e, no meio de atividades lúdicas e desportivas, poderem ter algum apoio à aprendizagem.”
O modelo seria quase como ter um pouco de escola dentro de um ATL e não o contrário. Homem Cristo sugere que, por exemplo, houvesse duas horas de revisão de manhã e o dia fosse completado com atividades enriquecedoras que não sejam académicas e possam dar a muitas crianças um ambiente que não têm em casa. “Seria de frequência facultativa, durante o mês de julho, mas era importante sensibilizar os mais necessitados. Às vezes pensamos neste tipo de iniciativas e quem mais precisa não aparece.”
Se esta solução fracassar, o antigo conselheiro do Conselho Nacional de Educação defende que o Governo poderia criar algum tipo de apoio financeiro para os pais que procurassem essas soluções noutro lado. “Era um plano B. Se as escolas não tiverem capacidade de abrir no verão, ou de ter um programa de tutorias, não se pode chegar ao ponto de dizer ‘paciência’. Podia-se envolver os centros de estudo de modo a que as famílias encontrem ali respostas.”
David Justino não tem dúvidas de que a melhor solução é cortar no verão, mas preferia ver o atual ano letivo ser prolongado e o próximo a arrancar mais cedo do que avançar para uma solução híbrida. “A minha preocupação é com as aprendizagens antes de se falar da base extracurricular. Não vejo outra hipótese que não seja prolongar o ano letivo. Isto terá implicações ao nível de avaliações, de exames, mas nesses momentos podem suspender-se as aulas.”
Do lado dos pais, Jorge Ascenção lembra que o descanso de verão é importante para todos e que cortar em demasia nas férias pode afetar a saúde mental das crianças e das famílias: “Prolongar o ano escolar pode ter um efeito negativo, contraproducente, e é preciso perceber se os jovens estão mentalmente capazes ou se precisam de arejar.” Se for para encurtar as férias, o presidente da Confap considera “preferível começar a pensar no próximo ano e começar as aulas uma semana mais cedo em setembro”.
Esta semana, um grupo de investigadores da Universidade Nova publicou o seu contributo para esta discussão: com programas de tutoria e escolas de verão é possível recuperar as aprendizagens. No cenário que implica maior investimento, custará 1.574 euros oferecer a um aluno estas duas possibilidades. O ganho pode ser superior a um ano de aprendizagem.
As tutorias, defende a equipa de investigadores (Bruno P. Carvalho, Pedro Freitas, Susana Peralta, Ana Balcão Reis e Miguel Herdade), podem equivaler a um ganho de 3 a 15 meses se o programa se estender no tempo entre 12 a 20 semanas. Já as escolas de verão podem permitir uma recuperação correspondente a três meses de aprendizagens. O orçamento também foi pensado: o Governo terá de desembolsar o equivalente a 3% do orçamento da educação para 2021 (se optar pela solução minimalista) ou 10%, se quiser chegar a mais estudantes.
Mais horas por dia? Não, obrigada
No Reino Unido, onde também se discute a hipótese, proposta pelo think tank do Instituto de Políticas Educacionais, dos alunos repetirem o ano, a inclinação do governo é outra e pende para o prolongamento do dia de escola. Em Portugal, isso é impensável.
“A ideia de termos mais horas por dia não faz sentido. Estamos praticamente no limite e, ao aumentar o tempo letivo, há claramente um rendimento decrescente. Cada unidade de hora que se possa acrescentar não vai corresponder ao mesmo ganho”, sustenta David Justino.
O problema, esclarece Alexandre Homem Cristo, é que dar mais uma hora de Português ao final de um dia de escola não é o mesmo que dar essa mesma aula no início da manhã, quando as crianças estão mais focadas. Se, no arranque do dia, uma hora de aula pode corresponder a uma hora de aprendizagem, quando os alunos estão cansados o proveito pode ser de apenas alguns minutos, ou acabar por ser nenhum. “Com o aumento de horas, os miúdos podem não estar a ter um ensino com o proveito que deviam ter, estão a aprender menos, mas tem um desgaste grande. O investimento tem um retorno menor”, sustenta.
Do lado dos diretores, Filinto Lima considera o mesmo: “Não vale a pena aumentar o dia de aulas porque os alunos não têm capacidade de absorver essa hora extra, saía pior a emenda do que o soneto. O mesmo se passa se começarmos a prolongar muito o ano letivo e a cortar nos momentos de descanso”, diz o presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), lembrando que as comunidades educativas não estiveram de férias durante o ensino à distância que foi tão ou mais desgastante do que o ensino presencial.
As propostas britânicas, diz Homem Cristo, são muito afuniladas. “Está-se a discutir apenas a aprendizagem e a esquecer o resto. O foco deve ser na qualidade, não na quantidade.”
Antes que a ideia do ministro britânico seja mimetizada em Portugal, João Dias da Silva, secretário-geral da FNE (Federação Nacional da Educação), deixa um último alerta: “Por cá, o numero de horas que os alunos passam na escola é muito maior do que no Reino Unido e já somos dos países com maior carga horária e maior número de dias letivos. Essa solução não dava resultado. Fez-se o ajustamento possível do calendário escolar, mas temos de pensar no outro tipo de trabalho que podemos fazer: tutorias e fazer o diagnóstico da situação dos alunos.”
Tutorias precisam-se e diagnóstico das perdas de aprendizagem também
As tutorias já existem nas escolas portuguesas e foram reforçadas depois da pandemia. Em junho do ano passado, o ministro da Educação anunciou a intenção de triplicar os alunos que recorrem a estes programas, passando a abranger os estudantes do secundário. Para além disso, anunciou 125 milhões para contratações de recursos humanos.
O apoio tutorial específico chegava, no anterior ano letivo, a cerca de 20 mil alunos do 2.º e 3.º ciclos e era dirigido a quem tinha dois ou mais chumbos. Com as alterações passou a bastar ter um chumbo no percurso académico para se ter direito ao apoio.
Maria Emília Brederode, presidente do Conselho Nacional de Educação, defende que no rescaldo da pandemia (e que não tem fim à vista) é preciso dar algum tranquilidade aos alunos e não exacerbar ansiedades. “Apostar nas tutorias e nas mentorias parece-me que seria um bom caminho a seguir.”
Essa é também uma das soluções apontadas por Alexandre Homem Cristo, Marçal Grilo, João Dias da Silva e Filinto Lima. Para o primeiro, era importante que estas medidas chegassem a quem está em risco de insucesso escolar, de forma a que os alunos tivessem “alguém que os acompanhasse, para terem a compensação de apoio que não tiverem em casa”.
“A criação de tutores faz sentido, mas quem devem ser? Podem ser de diversos tipos: pessoas mais graduadas, mais experientes, estudantes mais velhos, pessoas da comunidade, professores reformados”, diz, por seu lado, Marçal Grilo.
Já o presidente da ANDAEP gostava de ter mais créditos horários, para além do reforço que já foi feito este ano pelo Ministério da Educação, para poder aumentar os recursos humanos nas escolas. “Não nos podemos esquecer que os alunos do 1.º ciclo estiveram mais de 80 dias úteis em casa nos últimos 12 meses — e 80 dias dá para dar a volta ao mundo. Não querendo diabolizar o ensino à distância, sabemos que tem imensos constrangimentos, e nos próximos meses temos de aumentar a qualidade das aprendizagens.” Como? Aumentando o apoio individualizado e as coadjuvações nas salas de aulas (mais do que um professor na sala de aula). Sabendo que é difícil reduzir o número de alunos por turma, esta seria uma forma de contornar a questão, defende.
Às escolas, Filinto Lima gostava de ver chegar também mais psicólogos e assistentes sociais porque considera que é preciso olhar com atenção para a saúde mental dos jovens que passaram demasiado tempo em casa.
Homem Cristo concorda: “No básico, a prioridade deveria ser na recuperação de aprendizagens, com foco no 1.º e no 2.º ciclo, não podendo pôr de lado o 3. º ciclo. E não se pode esquecer o secundário, não focando na vertente da aprendizagem, mas antes no bem-estar emocional dos adolescentes que passaram muito tempo confinados. Justificaria uma reflexão na vertente de saúde mental e física, apostando nas atividades lúdicas e desportivas, e não tanto nos psicólogos.”
Estas perturbações dos alunos preocupam Marçal Grilo, que diz ser preciso olhar para o que se passou com com “grande realismo, sem dramatismo, mas com preocupação”, já que “uma situação excecional precisa de medidas excecionais”.
Lidar com este problemas poderá estar fora do alcance dos docentes, diz o antigo ministro. “Pressentimos que os jovens estão afetados psicologicamente e haverá muitos problemas por resolver mais na esfera dos psicólogos do que na dos professores. A adolescência foi muito afetada. O que se passa no recreio é tão importante como o que se passa na sala de aula, escrevia há dias uma professora inglesa no Financial Times.”
Para decidir o que quer que seja, deixa o mesmo alerta que David Justino. “Precisamos de estudos científicos para responder a uma série de questões. Por exemplo, com que idade é que podem ter um prejuízo maior? É como nas medidas do desconfinamento. Há unanimidade? Há consenso? Todo temos uma opinião e o ‘achar que’ é a pior coisa que existe”, sublinha Marçal Grilo. Bom senso, diz, precisa-se, assim como de dar espaço à autonomia das escolas para que encontrem as melhores soluções para os seus alunos.
“Estamos a trabalhar sem fundamento”, diz David Justino. “Podemos encher a boca para falar de desigualdades, mas se não houver sustentação científica é impossível saber do que estamos a falar. E não sabemos.” Por isso, é da opinião que as escolas têm de ter instrumentos de avaliação, como testes, provas de aferição, ou exames, para saber como estão a decorrer as aprendizagens.
O sindicalista João Dias da Silva deixa o mesmo alerta. “Terá de ser feito um diagnóstico agora e outro no início do próximo ano letivo. O que se perdeu? Perdeu-se o que não se aprendeu e perdeu-se o que se esqueceu. Mesmo durante o ensino presencial, com as novas regras, as aulas não decorrem com normalidade porque não há bem-estar emocional das crianças e dos professores.”
As soluções passam por ter mais recursos nas escolas, reforço das equipas multidisciplinares, melhoria das prática pedagógicas e repensar quais são as competências e conhecimentos fundamentais para que as crianças e os jovens retomem o processo normal de aprendizagem. Soluções que, assume, custam dinheiro. “Não temos educação de qualidade baratinha. Se alguém pensa que pode ter um sistema de educação de qualidade low cost está enganado. Até posso ter um Ministério de Educação que pensa bem, mas se tenho um Ministério das Finanças a apertar a torneira não vou a lado nenhum”, conclui João Dias da Silva.