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(Artigo republicado por altura da morte de Fernando Lemos, em dezembro de 2019)
“Muito prazer, sou Fernando Lemos”, lê-se numa parede da exposição. E por baixo do cumprimento vem uma nota biográfica com marca de autor e data de 2016. Ficam feitas as apresentações: “Nasci na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa, em 1926. Fui para o Brasil em 1952 [outras biografias registam 53]. Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, diretor de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias, uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor.”
Perto do meio-dia de quarta-feira, antevéspera da abertura ao público de “Fernando Lemos Designer”, na Cordoaria Nacional, em Lisboa, estavam todos à espera: Bárbara Coutinho, diretora do Museu do Design e da Moda (MUDE) e responsável pela mostra; o curador Chico Homem de Melo, designer e professor brasileiro; o responsável pelo espaço expositivo, Nuno Gusmão; e vários jornalistas. De repente, sai de um elevador, em cadeira de rodas, aquele português à procura de coisa melhor, 93 anos, trazido pela mulher e pelo filho, disposto a falar de coração aberto. Tem dificuldade em ouvir, mas vai escutar o breve discurso de Bárbara Coutinho.
“Esta é a primeira exposição dedicada ao design gráfico e a todo o trabalho de comunicação visual que Fernando Lemos criou. Era obrigação do MUDE fazer isto, porque Fernando Lemos é uma referência das artes plásticas e entende o design da mesma forma que nós: o design como ideia, como concretização da ideia. Estive em São Paulo em 2017 e o Fernando recebeu-me em sua casa. Fui convidá-lo para fazer o cartaz da exposição ‘Tanto Mar’, o que ele aceitou. Depois, quis mostrar-me caixas e caixas com trabalhos de design que tinha feito ao longo da vida e os meus olhos maravilharam-se à medida que ia vendo a qualidade e amplitude das obras.”
Assim nasceu a exposição, feita de inéditos e em estreia absoluta no torreão poente da Cordoaria, na Avenida da Índia, numa iniciativa fora de portas até que o MUDE, previsivelmente no ano que vem, regresse à sede, na Rua Augusta. De 7 de junho a 6 de outubro. E entretanto outros acontecimentos se associaram, como se estivéssemos a celebrar o ano de Fernando Lemos em Portugal:
– “Máscaras do Tempo”, exposição de azulejos inéditos, na Galeria Ratton;
– “Mais a Mais ou Menos”, mostra de desenhos, pinturas e cartões, alguns inéditos, na Galeria 111;
– Lançamento de um livro do seu trabalho fotográfico, com texto de Filomena Serra e edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda.
– Coletânea de poemas de Fernando Lemos, Poesia, preparada pelo escritor Valter Hugo Mãe e publicada pela Porto Editora.
Nesta manhã de quarta, perante jornalistas convocados para uma visita guiada prévia, o artista fala baixinho, com sotaque português bem moldado pelo brasileiro. Bárbara Coutinho informa que ele não quer ver a exposição antes da abertura oficial, por isso, a conversa passa-se num canto da larga sala da Cordoaria onde agora moram vitrines com livros, cartazes, capas de livros, esquissos, recortes de jornais, textos avulsos, pinturas, as fotografias surrealistas. São dez núcleos temáticos em espaço aberto, mais ou menos organizados por ordem cronológica, resultado de uma pesquisa de dois anos no acervo pessoal de Lemos e em vasta bibliografia. O artista está em discurso ininterrupto e irónico, visivelmente satisfeito.
“Uma obra de arte é uma mentira”
“Alguém quer começar com pergunta? Não, por enquanto não. Já que é o momento dos agradecimentos, não sei nem por onde começo nem onde acabo. Tenho a Bárbara e o Homem de Melo como as figuras que levantaram esta bandeira dos meus anos de designer. O design foi muitas vezes tratado como desenho, por equívoco. O design industrial não é desenho. Desenho é aquilo que a gente faz do que já conhece. O design é o resultado de uma ideia, de um sonho que tem de ser construído ou que tem origem em investigação e várias avaliações. Não é desenho. O design no Brasil é uma atividade que não se pode dizer nova, mas é complicada de entendimento, porque está ligada mais ao consumismo, àquilo que é o agradável, que se compra, à indústria, aos produtos. É difícil ficar só nessa ligação.”
Um pacote de papel que a mulher lhe colocou momentos antes no colo é aos poucos desembrulhado pelo próprio. Resolveu fazer dois desenhos para oferecer à diretora do MUDE, num gesto que parece revelar cumplicidade entre ambos. “Dois desenhos para ela colocar em casa, um de cada lado da cama, sobre os fractais, que é a matemática dos limites, com que tenho trabalhado para fazer design gráfico”, explica. “Um, em que o branco procura interferir dentro do preto, outro, em que o preto procura avançar sobre o branco.” Bárbara Coutinho agarra-se ao mestre, deixa cair uma lágrima e ele ressurge: “Coloca agora um ‘passe-partout’ ou um vidro. Eu detesto colocar vidros, mas faz o que quiseres.” A invulgar conferência de imprensa avança, Lemos já discorre em roda-livre.
“Se fosse cineasta, já tinha até pensado fazer um filme sobre a saudade, a saudade do que ficou e, mais ainda, a saudade daquilo eu vou ter de fazer, a que a gente chama a saudade do futuro, aquilo que ainda não foi feito. Estamos num momento universal de avaliar a mudança que está acontecendo, que é apenas para verificar se o que foi feito é para valer a pena. Tem muita gente que está fazendo a questão do antigo, não por apreciação, mas para repeti-lo, porque acham que o antigo é que é válido, esquecendo que o antigo foi sempre novo, foi sempre moderno. Então, agora nós estamos num momento em que o universo está mudando para se saber se vale a pena usar o que foi feito e o que falta ser feito. […] Estou sujeito a qualquer pergunta a qualquer dúvida, estou aqui para responder direito, sem má-criação. Se a pergunta for agressiva, eu, que sou muito malcriado, solto um palavrão.”
O Observador pergunta-lhe porque é que não quer ver a exposição antes da inauguração.
“É difícil explicar. Acho que a gente não deve meter o nariz numa hora destas, porque qualquer palpite ganha uma importância que é falsa. Você chega ao momento em que não tem mais direitos sobre aquilo que fez, é a obra aberta. A obra de arte não termina quando você fez, é quando ela é mostrada. Então, você, ao entrar na sua própria exposição, que está fazendo uma inauguração, corre o risco de provocar essa não intervenção das pessoas e de elas olharem torto o resultado. De certa maneira, a obra de arte não te pertence mais. Uma obra de arte é uma mentira, no fundo, nós somos mentirosos. […] Mas garanto que se alguém disser que é mentira o que está aí, vou explicar porque é que é verdade, é a minha verdade. É a verdade que está nascendo aí, como se eu nunca a tivesse visto. Eu fiz, mas faz de conta que eu nunca fiz. […] A ligação com a arte é através de uma coisa que chamo de escuta. Sem a escuta, nunca ninguém consegue se aproximar da arte. Quando a gente está assistindo Picasso pintando a ‘Guernica’, ele não está vendo a ‘Guernica’. Ele está pintando a ‘Guernica’, pensando-a. Não é a verdade, é a convicção. Ao mesmo tempo, ele está passando para nós, que olhamos, o que significou a ‘Guernica’. Essa escuta é que nos leva à verdade. Não quero adiantar mais, porque sou acusado de falar demais. A Beatriz sempre fica escondida, aí, me mandando calar. Ela já disse: ‘O Fernando fala pelos cotovelos’. E eu já disse: ‘Agora, de cadeira de rodas, falo pelos tornozelos.”
A mulher aproxima-se e pede-lhe para não “desembestar” a falar, porque os jornalistas ainda querem fazer mais perguntas. “Avancem, gente.” Mas o marido ainda vai contar um episódio: esta semana, ao ser levado pelo filho a passear na Avenida da Liberdade, pediu para ir até ao histórico edifício do “Diário de Notícias”, sem saber que o jornal já não funciona ali desde 2016. Mas viu tudo fechado e apercebeu-se da mudança. “Tinha um sem-teto lá dormindo, na porta. Fotografei como se fosse a morte do ‘Diário de Notícias’.”
Lemos para além das fotos
Sim, aquele que os portugueses conhecem apenas como fotógrafo surrealista é o mesmo Fernando Lemos que os brasileiros veem sobretudo como designer e professor de comunicação visual. Acontece que depois dos retratos dos novos intelectuais de Lisboa no fim dos anos 40, inícios de 50 – Alexandre O’Neill, António Pedro, Maria Helena Vieira da Silva (e o marido, Arpad Szenes), Jacinto Ramos, Jorge de Sena, José-Augusto França, Glicínia Quartin, Sophia de Mello Breyner, tantos outros –, Lemos foi exilar-se no Brasil, naturalizou-se, e criou ali uma outra vida, mais ou menos incógnita entre nós, razão por que a nova exposição do MUDE pode ser um marco histórico de reavaliação do artista.
Em Portugal, e no que respeita a instituições de arte contemporânea de acesso público, ele está hoje representado na Coleção Berardo; em Serralves; na coleção moderna da Fundação Calouste Gulbenkian; no Museu do Chiado; e na Fundação Cupertino de Miranda. Mas até mesmo essa faceta fotográfica só no fim dos anos 70 ganhou relevo por cá, ou principalmente a partir de 1994, quando o então Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian lhe dedicou a retrospetiva “À Luz da Sombra”, com curadoria de Jorge Molder. Já estava muito esquecida a estreia de Lemos em 1952 na Casa Jalco, loja de móveis da Rua Ivens, em Lisboa, onde apresentou óleos, guaches, desenhos e fotografias, ao lado dos artistas Fernando Azevedo e Marcelino Vespeira.
Chico Homem de Melo registou no catálogo da exposição que a obra de design de Fernando Lemos “é uma lufada de ar fresco”, porque se constitui como “contraponto necessário e urgente” ao cenário “desolador” do design contemporâneo, “dominado por “posturas normativas no ensino e na prática”. O facto de ele ter frequentado a Escola de Artes Decorativas António Arroio (1938-1943), na capital, sem prosseguir estudos superiores, faz dele “um caso raro de criador marcadamente intelectualizado que se manteve distante da academia”, sublinhou o curador.
Assim sendo, pensará Fernando Lemos que a nova exposição lhe faz justiça, uma vez que é quase desconhecido como designer gráfico no país que o viu nascer?
“Isso é verdade, porque comecei como fotógrafo. As primeiras experiências já com preocupação surrealista fi-las já na direção de querer olhar para ver se sabia qual era a nossa cara, a cara do português. Porque nós temos todas as caras neste país. Eu sempre que andei viajando as pessoas me perguntavam: ‘Você é russo? Você é espanhol?’ Nunca me perguntaram se eu era português, como se o português não existisse. Realmente, acabei concluindo que mesmo aqui, para nós, temos todas as caras. Árabe, italiano, russo, somos todos bichos, realmente. Como disse o grande Darcy [presumivelmente Darcy Ribeiro (1922-1997), antropólogo brasileiro e ministro da Educação no Brasil], o homem é um bicho que não deu certo. Aí, eu perguntei: ‘E a mulher?’ Ele disse: ‘Mulher está em pesquisa.’”
“Então, fui procurar nas pessoas que já estavam deprimidas, oprimidas, proibidas, não podendo dar aula, não podendo publicar – eram os malditos, era a minha gente. Aquela gente acabou valendo muito, se mostrou com o tempo, mas nessa altura não valia nada para um sistema político que destruiu a juventude de muita gente, incluindo a minha. A minha experiência foi criar uma galeria de oprimidos, de gente proibida. Há dois anos, fizeram uma grande exposição no Centro Cultural de Belém para mostrar o que foi o meio artístico e político durante esse período. Continuei a viver fazendo exposições em vários lugares do mundo e no Brasil. E fiquei aqui em Portugal com a fama de ter sido um bom fotógrafo e as pessoas perderam de vista a minha qualidade gráfica, os meus desenhos, tudo o resto que agora está aparecendo aqui. A cerâmica, o desenho, a fotografia outra vez. Sou uma soma de atividades com vários nomes, multimédia, e coisas assim, e a certa altura até me perguntaram: ‘Você é fotógrafo, é designer?’ Não, eu não sou fotógrafo, eu sou fotografia. Ficou assim um ar pretensioso, porque não expliquei direito. Quando disse que sou fotografia, eu queria dizer que não sou só a minha fotografia, sou a fotografia também dos outros que a tinham feito, com importância, não por brincadeira. Pertenço a essa vertente da qualidade, que foi inventada pela memória. Ao contrário do que se dizia, que foi a fotografia que trouxe a memória, a fotografia é que foi atrás da memória, porque precisava de imagem.”
Mais tarde, a uma pergunta sobre qual a área de trabalho que mais o satisfaz, o artista, percebendo mal, decide falar sobre a saúde.
“Sou teimoso. Basta olhar para mim, de cadeira de rodas, alguma teima eu tenho. Tenho ligado ao meu princípio de trabalho a própria crise física que a natureza me deu. É difícil falar isso, mas não tenho dificuldade. Graças à minha deficiência, me encaminhei para ser artista. Precisei de mostrar que era capaz de fazer tudo o que os outros faziam, não para ser melhor, mas para ser capaz de fazer. Isso me deu força. Comecei muito cedo, de garoto, a ler e a escrever e isso me auxiliou logo. Até aos 20 anos, passei uma vida de hospital, de massagens, de coisas elétricas. Tive como mestre Egas Moniz, foi o primeiro médico que em atendeu, aqui em Lisboa, no Hospital de Santa Marta. Então, estou satisfeito, estou feliz, sinceramente, estou feliz. Mesmo quando aconteceram coisas que não queriam deixar-me feliz, não deu certo, porque sou teimoso.”
Bacalhau e vinho português
Filho de mãe rendeira e pai marceneiro-antiquário, como regista o “site da Gulbenkian, Fernando Lemos partiu para o Brasil em 1953 por considerar insustentável a vida sob a ditadura de Salazar e cedo se fez notado no novo destino, tendo recebido o prémio de Melhor Desenhista Brasileiro, na IV Bienal de S. Paulo, em 1957. Entre as décadas de 60 e 90 foi sobretudo funcionário de instituições públicas, ao serviço das quais desenvolveu design gráfico modernista, muitas vezes experimental, e chegou a ser professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Design Industrial.
O filho de Lemos que por estes dias o acompanha é Rodrigo, nascido há 47 anos em São Paulo, cidade onde o artista se fixou (distrito de Butantã), depois de uns poucos meses no Rio de Janeiro logo à chegada. Aterraram em Lisboa a 1 de junho e planeiam ficar até ao dia 16. “Em relação a Portugal, o meu pai tem hoje uma proximidade afetiva, sem ser nostálgica”, resume o filho, que em seguida confessa: esta semana, Fernando Lemos quis matar saudades do bacalhau e do vinho português.
A mulher também veio, Beatriz Overmeer, com quem Lemos tem dois filhos (além de outros três, de um primeiro casamento). É ela quem revela ao Observador, já depois da conversa do artista com a imprensa, que todas as fotografias dele pertencentes ao Museu Coleção Berardo, do Centro Cultural de Belém, estão a ser substituída por novas impressões, “porque o papel com que foram feitas está a perder qualidade”. Adianta ainda que a Fundação Gulbenkian comprou recentemente registos fotográficos que Lemos fez na década de 60 no Japão, quando ali esteve a estudar precisamente com um bolsa da Gulbenkian.
À pergunta sobre como está a saúde de Fernando Lemos, o filho responde “muito frágil”. “Toma muitos remédios, tem problemas de coração, de diabetes, de tensão. A cabeça dele é que o faz estar vivo.” Beatriz acrescenta a síndrome pós-poliomielite, doença que acometeu Lemos em jovem. “Dentro deste quadro, está ótimo. Ele desenha e escreve todos os dias. Intelectualmente, está muito ativo. Às vezes, tem um profundo cansaço e precisa de dormir muito. Eu acho que o Fernando tem algo de genial. Ele é impossível, como todo o génio. É um rebelde, que gosta de discutir política, e ao mesmo tempo é um romântico, um otimista.”
Novamente o filho: “A maioria dos artistas fica conhecida depois de morrer, mas ele está tendo isso em vida, tudo o que não teve antes. Quando percebe que vai ter uma nova exposição sobre ele, ganha mais 10 anos de vida, já não pode morrer, já não pode ficar doente.”