Lúcia Peres tem 13 anos, está no 7.º ano do ensino articulado de música na Escola Secundária de Arouca, toca flauta transversal. Confessa que não se sente confortável nas apresentações em público dos trabalhos da escola e que os testes lhe causam bastante ansiedade antes de entrar na sala. “Fico muito nervosa, a tremer toda”, conta. Por vezes, também fica dessa maneira em treinos e jogos de voleibol, desporto que pratica. Quando erra um passe, os nervos dão de si, sente a pressão, e surge aquela sensação de que não consegue fazer. “Muitas vezes, choro, não consigo controlar.” E começa a mexer no cabelo, sinal de que algo não está bem. Neste último semestre de aulas, de 15 em 15 dias, ao primeiro tempo da manhã de terça-feira, um grupo de alunos da sua turma junta-se para participar em sessões de regulação emocional do projeto “Equilibra-te”. “Os exercícios que o psicólogo explicou ajudam-me muito, controlo a respiração e fico mais calma.”
Inês Santos também tem 13 anos, é da mesma turma, toca saxofone. “Sou bastante ansiosa, tenho problemas de concentração, ando em acompanhamento psicológico desde pequena.” Inês aprecia esses momentos que se debruçam sobre o que os alunos sentem, vê-os como um novelo de fios enrolados que se vão esticando até deixaram de estar emaranhados, confusos, enredados, depois de explicações e conversas. “Sinto-me como se soubesse melhor o que estou a trabalhar dentro de mim com a minha psicóloga”, diz.
Há dias em Mara Soares se sente mais agitada. “Fico muito enervada com coisas muito simples, não controlo a ansiedade, e expludo”, conta. Tem altos e baixos, horas em que está mais ansiosa por causa de um teste ou de um jogo de voleibol, dias mais cansativos e dias mais tranquilos. Foi ano de transição de ciclo e de escola, tal como os seus colegas, o que obrigou a várias adaptações e a um horário mais exigente. Tem 13 anos, é da mesma turma de Lúcia e Inês, toca trompete. Mara absorve o que é dito pelo psicólogo naqueles momentos de pouco mais de uma hora. “O que devemos fazer para controlar a raiva e focarmo-nos noutra coisa, não só nessa emoção.” Tem aprendido várias técnicas para lidar com a sua ansiedade.
As sessões de regulação emocional nas escolas de Arouca são uma das ações do “Equilibra-te”, projeto municipal focado na promoção da saúde mental, em situações de vulnerabilidade e precariedade social, num território de baixa densidade, geograficamente disperso e isolado – Arouca é uma vila com pouco mais e 21 mil habitantes espalhados por cerca de 330 quilómetros quadrados. O projeto arrancou em março de 2023 e envolveu, até ao momento, 329 alunos de 14 turmas, de todos os níveis de ensino obrigatório. Este ano letivo, centra-se nas turmas de 5.º e 7.º anos, de início do 2.º e 3.º ciclos. Os grupos são formados por alunos indicados pelos psicólogos das escolas e pelos professores.
“É normal ficarem ansiosos, quando bloqueiam num teste, pousam a caneta e respiram, param, fazem um intervalo”, aconselha Pedro Ferreira, psicólogo, licenciado em Psicologia Clínica, mestrado em Psicologia Social, doutorado em Ciências da Educação. Nas sessões de regulação emocional com os alunos, faz jogos, usa técnicas e utiliza materiais para falar de ansiedade, stress, raiva, para lançar desafios relacionados com a afetividade e a perceção da realidade, para fazer treinos cognitivos. Jogos de letras à volta da palavra amor, por exemplo. Legos para encaixar e estimular o cérebro a encontrar analogias.
O enigma de unir três pontos separados em três grupos paralelos com quatro linhas retas, sem passar pelo mesmo ponto, para que percebam que podem ver além e sair desses mesmo pontos, é outro exercício. “As barreiras só existem na nossa cabeça. Tudo tem uma conclusão, porque fazemos isto ou aquilo”, explica o psicólogo do “Equilibra-te”. As sessões são fluidas, os alunos saltam de grupo em grupo. “Usamos dinâmicas muito simples para tentar evitar que a ansiedade escale”, sublinha.
Diogo Justo reteve algumas técnicas e usa-as de vez em quando. “Técnicas de respiração para me acalmar, técnicas de concentração, para controlar mais a minha raiva.” Interiorizou as indicações dadas pelo psicólogo ao longo das sessões. “Fecho os olhos e imagino que estou num campo com muitas flores, pego numa flor e respiro profundamente duas vezes seguidas e expiro para ela duas vezes. Abro os olhos e estou muito mais calmo”, nota. É dessa turma do 7.º ano do ensino articulado, tem 13 anos, toca percussão, admite que “muito cabeça na lua”, conta que fica agitado em algumas ocasiões, como na altura dos testes, e então recorre ao que aprendeu. “Imagino-me a entrar numa casa, abro a porta, há uma vela em cima da mesa, pego na vela e respiro lentamente.”
O tom de voz, a linguagem corporal, a respiração
Joana Martins é professora de Físico-Química no Agrupamento de Escolas de Escariz, representante do Ministério da Educação na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, esteve nas sete sessões de capacitação em cuidados de saúde especiais na escola que o “Equilibra-te” promove para docentes. “Temos de trabalhar com os alunos as questões da saúde mental. Após o Covid, há mais ansiedade, ataques de pânico, stress por causa dos testes, situações que são um problema por não conseguirem gerir as suas emoções”, adianta.
Os alunos bloqueiam em testes, sentem-se assoberbados emocionalmente, alguns já desmaiaram. “Estamos numa situação muito grave de saúde mental e este projeto fez toda a diferença.” Nessas sessões, feitas em dois meses, os docentes partilham histórias e problemas, ouvem dicas e aprendem estratégias para lidar com os alunos quando os níveis de ansiedade aumentam, para desbloquear determinadas situações. “A parte do relaxamento, o que dizer a um aluno ansioso, o tom de voz, a linguagem corporal”, especifica a docente.
Neste ano letivo, no tempo dedicado às escolas, foram implementadas várias atividades, nomeadamente palestras sobre autoestima, autismo e uso adequado de tecnologias, sessões de capacitação em bem-estar e promoção de saúde mental para 52 auxiliares de ação educativa, sessões sobre estratégias de autocuidado para 74 professores do Agrupamento de Escolas de Arouca e do Agrupamento de Escolas de Escariz. Ao todo, foram já realizadas cerca de 200 sessões com grupos de capacitação ou formação.
“Trabalhar a saúde mental é útil, é prático, é algo de que todos precisamos nos dias de hoje. Em menos de uma hora, estamos tristes, alegres, zangados, e temos estratégias para regularizar as emoções quando elas nos escapam”, sublinha o psicólogo Pedro Ferreira. Por isso, o trabalho que faz com vários públicos com alunos, adultos e seniores, num trabalho que articula com o psicólogo do centro de saúde e com os psicólogos dos serviços de psicologia e orientação dos estabelecimentos de ensino do concelho. Para que tal como uma dor na ponta do pé é vista como uma questão física, e é tratada como tal, uma dor no cérebro deve ser olhado como um problema de saúde mental que merece ajuda e apoio.
Há oito meses que António Dias Noites, de 80 anos, vai às consultas de psicologia do “Equilibra-te”, primeiro numa base semanal, agora uma vez por mês. O filho mais novo e uma funcionária do centro de dia que frequentava falaram-lhe desse apoio. “Procurei esta ajuda para ter uma pessoa com quem desabafar”, conta. Há um conflito antigo que mexe consigo, histórias inventadas que não aceita, provocações à mistura. Tudo isso remoía-lhe a cabeça, agora sente-se melhor, mais leve, agradece às conversas com o psicólogo. “Ajudou-me muito, deixa-me falar, deixa-me desabafar. Faz perguntas e eu respondo, abro o livro.”
António está reformado, começou a trabalhar cedo, depois da quarta classe, a cortar mato, a alcatroar estradas, viveu 13 anos em Angola, voltou, foi trolha, pedreiro, serralheiro. O corpo tem dado de si, problemas na coluna, rins, vesícula, coração a trabalhar a um terço, dois pacemakers. Passa os dias em casa com a mulher, tem uma discreta tatuagem na mão com um coração pequenino e o seu nome Lila. Quando é dia de consulta, os filhos trazem-no à vila de Arouca. “Quando venho a uma consulta, tenho a impressão de que vou para o pé de um familiar. Tem sido bom, das melhores coisas que me aconteceram”, garante.
No primeiro ano do projeto, previam-se 30 pessoas em consultas de psicologia, número que foi ultrapassado. Neste momento, são 52, a mais nova tem seis anos, a mais velha 83. Dessas 52, dezanove são alunos. Até agora, foram feitas mais de 300 consultas a gente que é encaminhada pelo centro de saúde, escolas, centros de dia, instituições particulares de solidariedade social, ou pela sua livre iniciativa. Nesse acompanhamento, há diversos casos. “Quadros depressivos e perturbações de ansiedade são muito marcados. Temos situações de luto, de comportamentos auto lesivos e suicidários. Situações de burnout, o exagero da pressão do trabalho e das responsabilidades familiares, tudo junto está a ser pesado”, refere Pedro Ferreira. “Nos contextos educativos, pressão social, pressão entre pares, pressão para os resultados”, adianta o psicólogo do projeto.
Como diretora de uma turma do 8.º ano do Agrupamento de Escariz, Joana Martins já encaminhou casos para o serviço de psicologia da escola. “Os pais ainda sentem um estigma de levar um filho ao psicólogo, mas essa resistência vai desaparecendo”, diz. “Eu deteto, como professora, situações que os pais não detetam e encaminho-as para a psicologia. Há uma grande falha de comunicação em casa, as famílias sentam-se à mesa e não conversam com os filhos.” As sessões permitem olhar para dentro. “No Covid, tivemos de fazer reajustes num curto espaço de tempo, o mundo fechou, mexeu connosco, sentimo-nos muito cansados, aprendemos técnicas para os alunos e para nós.” “Este projeto é, sem dúvida, um tesouro em todos os aspetos, a nível profissional e pessoal trouxe-nos mais-valias”, remata Joana Martins.
“Pedir ajuda não é errado, não podemos chegar ao limite”
Na adolescência, as emoções andam à flor da pele. Ema Esteves tem 12 anos, toca violoncelo, anda no 7.º ano, e sempre gostou dos temas relacionados com a psicologia. É uma área que lhe interessa, dos sentimentos, das emoções. Os momentos às terças-feiras de manhã, de duas em duas semanas, sabem-lhe bem, compreende muita coisa. “Percebemos o que temos na nossa cabeça, a controlar a nossa ansiedade, a entender as nossas emoções”, afirma. Dessas sessões de regulação emocional, tem retido ensinamentos que não esquece. “Fez-me perceber que pedir ajuda não é errado, se houver motivos, se fizer sentido, nós não podemos chegar ao limite.” Exteriorizar o que se sente é sempre melhor do que guardar tudo para dentro.
Carolina Ferreira tem 13 anos, está a aprender a tocar piano no ensino articulado, já andou em consultas de psicologia, sabe que o que à primeira vista pode não ter nexo, acaba por ter enorme importância. Dá um exemplo. Os desenhos e os riscos que os psicólogos pedem para fazer têm uma explicação. “Apesar de parecer que não faz sentido, acaba por fazer. Não temos de expressar muita coisa para que percebam o que estamos a sentir. Exteriorizamos o que estamos a sentir sem dizer quase nada.” As sessões têm ajudado, sobretudo quando os testes estão à porta.
O “Equilibra-te”, integrado na Estratégia Municipal de Saúde de Arouca, é financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência, no âmbito dos Planos de Ação das Operações Integradas em Comunidade Desfavorecidas da Área Metropolitana do Porto. O projeto assenta num trabalho em rede, em constante articulação com instituições do concelho – serviços de saúde, IPSS, associações, agrupamentos escolares -, e não terminará no fim do próximo ano, como está previsto na candidatura.
“A saúde mental sempre foi uma preocupação e este projeto tem de ter continuidade, o município não larga nada que é estruturante”, assegura Margarida Belém, presidente da Câmara de Arouca. Há motivos para isso. “É um projeto muito rico que está a ter resultados porque surge do diagnóstico que foi feito das necessidades, fazemos diagnósticos contínuos e estamos sempre muito próximos das pessoas.” Até porque a realidade mudou. “No pós-pandemia, as pessoas estão diferentes, com mais stress, mais ansiedade, tudo é um problema. Ao trabalharmos a saúde mental, estamos a trabalhar o bem-estar da nossa comunidade”, acrescenta o autarca.
Marta Ferreira, enfermeira de saúde escolar da Unidade Local de Saúde de Arouca, acompanha algumas sessões do “Equilibra-te”, é abordada pelos alunos sobretudo por questões relacionadas com saúde sexual. O projeto é bem-vindo e bem acolhido, em seu entender. “A área da saúde mental tem vindo a ganhar relevância no trabalho que se pode fazer em qualquer contexto”, observa. Nas escolas, é importante simplificar dinâmicas, ouvir alunos e professores, perceber as suas emoções, níveis de stress e de ansiedade, analisar contextos e circunstâncias. “É preciso que esta geração cresça a pensar que é tão válido ter uma dor física, como uma dor mental.”
Para Inês Santos, aluna do 7º ano, as atividades em grupo têm tido bons resultados, as conversas são fluidas, os desafios resolvidos com os colegas, as partilhas do que se passa com cada um, inquietações, alegrias e tristezas. Sente-se melhor depois das sessões. “Ajudam-me bastante a entender melhor o que se passa comigo.” E acaba por comentar: “O ser humano, no geral, tem muita dificuldade em exprimir o que sente e os psicólogos têm um trabalho complicado.”
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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