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Aos 43 anos, Filipa Ramos regressa a Portugal para dirigir o departamento da arte contemporânea do município do Porto
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Aos 43 anos, Filipa Ramos regressa a Portugal para dirigir o departamento da arte contemporânea do município do Porto

(Rui Oliveira/Observador)

Aos 43 anos, Filipa Ramos regressa a Portugal para dirigir o departamento da arte contemporânea do município do Porto

(Rui Oliveira/Observador)

Filipa Ramos, diretora do departamento de arte contemporânea do município Porto: “Não quero fazer um programa elitista"

Um mês depois de ser nomeada diretora do departamento de arte contemporânea do Porto, Filipa Ramos fala de cultura e de ecologia, das pontes internacionais que quer erguer e dos efeitos da pandemia.

Chega à hora marcada e, com um monte de folhas na mão, procura uma sala sossegada para conversar. “Acabei de chegar, ainda não tenho gabinete”, justifica. Em janeiro, Filipa Ramos foi nomeada diretora do departamento de arte contemporânea do município do Porto e ainda está a conhecer os cantos à casa. Natural de Lisboa, filha de mãe arquiteta, de pai músico e professor de História e neta de um pintor, cresceu a ver concertos e exposições, embalada por uma curiosidade quase inconsciente: “Acho que a arte entrou na minha vida sem eu dar por ela”.

Com o tempo, percebeu que a ciência e a biologia eram outras das suas grandes paixões, mas a complexidade da matemática impediu-a de seguir esse caminho nos estudos. Em 2005, graças a uma bolsa de Fundação Gulbenkian, partiu para Inglaterra para estudar Arte Contemporânea e por lá viveu durante quase 20 anos. Fez trabalhos como tradutora e organizou eventos, até descobrir o que realmente queria fazer. Sobreviveu à competição profissional e foi como curadora e escritora que deu mais nas vistas.

Em 2013, ajudou a fundar a Vdrome, uma sala online que dá palco a talentos cujo trabalho balança entre o cinema e as artes visuais. Graças a este projeto foi convidada para ser curadora do departamento de cinema da Art Basel, uma das maiores feiras de arte do mundo, e à boleia do seu interesse em cruzar a arte e a ecologia, universos aparentemente distantes, integrou a equipa da Bienal de Xangai, em 2020: “Achei que para a minha atividade profissional como curadora, autora, crítica de arte e comissária de exposições fazer mais sentido necessitava de contribuir para uma intensificação do diálogo entre a arte e o ambiente”.

O reconhecimento dos outros dá-lhe doses de entusiasmo e responsabilidade em partes iguais, não acredita que a arte seja capaz de mudar o mundo, mas sublinha o seu papel em criar pontes, sensibilidades e consciências. “A arte tem esta capacidade única de gerar afetos e criar formas de desejo de ação que possam ser profundamente transformadores.” Insatisfeita, curiosa e com múltiplos interesses, Filipa Ramos não tinha intenções de regressar a Portugal, mas um convite inesperado fê-la mudar de ideias e, consequentemente, de vida.

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No início do ano abraçou um novo desafio: assegurar uma produção artística “de qualidade, sustentável e dinâmica” na cidade do Porto, através de espaços como a Galeria Municipal, a Fonoteca ou o auditório da Biblioteca Municipal. “Há a preocupação em não fazer um programa elitista, mas que também não seja populista ou que intensifique uma ideia de que as pessoas não têm capacidade para o compreender. O equilíbrio é sempre fazer um programa que seja complexo, que desafie as pessoas, que toque em questões fundamentais do presente, que seja estimulante e interessante tanto a um jovem universitário como a uma família que vem de visita num fim de semana.”

Para isso, Filipa pretende aproximar as pessoas da arte contemporânea, solidificar relações internacionais e apostar em criações mais participativas. Tem o desejo de ver no Porto, à semelhança do que acontece noutros países, uma política de rendas controladas para produtores culturais se fixarem na cidade, defende que com a pandemia, o mundo — incluindo o das artes — ficou mais fragilizado e não tem dúvidas: hoje o público quer e espera coisas diferentes.

"Os campos disciplinares da arte, da ciência, da política, da ação social não podem trabalhar isoladamente, têm que se unir. Falar hoje de ecologia é também falar de justiça social"

(Rui Oliveira/Observador)

Como e quando começou o seu gosto e a sua atenção pela arte?
Acho que a arte entrou na minha vida sem eu dar por ela. A minha mãe é arquiteta, o meu era professor de história e músico e eles sempre me levaram a ver exposições e concertos. A primeira exposição de que tenho memória, e que depois até fui ver o que era porque só me lembrava das formas, foi do Henry Moore nos jardins da Fundação Gulbenkian. Lembro-me de interagir com as esculturas, de ver formas redondas muito orgânicas, tudo isso fez parte da minha infância. O meu avô também pintava, era muito amigo do Júlio Pomar, e sempre passei bastante tempo com eles em Paris. Esta relação com as artes sempre foi algo muito natural na minha infância e depois materializou-se num desejo mais concreto durante os estudos.

Havia uma curiosidade inerente a essa descoberta? Uma vontade de querer saber mais?
Sim, mas nunca de uma forma consciente. Queria muito estudar ciência, a minha outra paixão é a biologia, a vida animal, a natureza e a ecologia, queria muito estudar essa área, mas sou um desastre a matemática, ainda hoje conto pelos dedos! É interessante porque tenho uma grande paixão pelo pensamento abstrato, mas o pensamento da matemática é-me estranho e percebi que iria ter grandes dificuldades em estudar ciências por causa disso. Comecei a imaginar que outros campos poderiam ser interessantes e foi aí que o interesse pela arte se manifestou de forma mais forte. Tinha um grande desejo paixão pela arte medieval, a escultura romântica, os vestiários de criaturas híbridas, meias humanas e meias animais, acho interessante essa parte misteriosa, incompreensível e não óbvia. Quando tinha que decidir entre História de Arte Medieval ou Arte Contemporânea, falei com a minha professora de Arte Medieval na Universidade Nova de Lisboa e ela confessou-me que teve exatamente o mesmo dilema na minha idade. Se fosse hoje, ela teria preferido trabalhar com pessoas vivas do que com pessoas que morreram há muitos séculos porque a possibilidade de dialogar, de perguntar e de interagir é única e, de facto, ela tinha toda a razão. Estou contente e não me arrependi de me ter dedicado à arte contemporânea.

Foi estudar para Inglaterra e por lá ficou. Era um objetivo sair de Portugal?
Fui para Londres quando terminei o curso, antes disso ainda fiz uma pós-graduação de um ano em Barcelona, depois consegui uma bolsa da Fundação Gulbenkian para fazer um mestrado na Goldsmiths, fui em 2005 e fiquei por lá até agora. Ir para fora sempre foi minha intenção quase desde criança.

Porquê?
Por um lado, por razões familiares, tinha parte da minha família lá fora e sempre passei os verões com eles, especialmente em França, onde tinha os meus avós. Sempre tive um grande fascínio sobre o que se passava lá fora e com o passar dos anos comecei a perceber que o tipo de atividade que eu queria realizar e o tipo de instituições com as quais me interessava trabalhar eram de uma escala e de um diálogo global que não conseguia sentir em Portugal naquela altura.

Nunca mais voltou a França?
Voltei, tenho uma casa em França onde passei os últimos dois anos literalmente isolada, mas profissionalmente sempre tive um pensamento muito anglo-saxónico e britânico e acabei por ficar em Londres, que é uma cidade na qual me sinto em casa e da qual tenho muitas saudades. Londres custa muito, é uma cidade dura, tem um clima difícil, é uma cidade enorme que nos dá muito, mas tira-nos muito mais, tira-nos energia, entusiasmo e tempo.

Mesmo a nível profissional?
Inglaterra é uma ilha e sendo uma ilha é bastante isolada e insular, os ingleses têm facilidades profissionais, mas os estrangeiros precisam de provar que são bons e há uma competição enorme. É difícil.

Sente que sobreviveu a essa competição?
Sim, no início fazendo todo o tipo de trabalhos que não tinham qualquer relação com a arte, como traduções ou organizações de eventos, e depois pouco a pouco fui-me integrando.

Como foi esse processo?
Normalmente digo aos meus alunos que o difícil não é ser jovem artista, historiador ou jovem curador, o difícil é amadurecer de uma forma sólida. Quando a pessoa é jovem, existem bolsas, residências artísticas, há oportunidades, formas de trabalhar coletivamente, uma energia que não se mantém ao longo da vida. Com o passar dos anos, é importante compreender no que somos bons e realmente capazes de fazer. Demora muito tempo até perceber se quero trabalhar num museu ou se quero ser comissária de exposições independentes, se quero fazer crítica de arte ou abrir uma galeria. Durante este processo andamos ali um bocadinho às cegas, atrás das oportunidades, mas também acabamos por perceber no que somos bons. Muitas vezes estes esforços levam-nos a colaborações e a oportunidades que levam a outras e há um crescimento profissional. Grande parte do meu crescimento profissional passou por escolhas bizarras, estranhas, que não me levaram a lado nenhum e que me ajudaram a perceber mais aquilo que não queria do que aquilo que realmente queria, mas também me levaram a compreender — e que os outros também compreendessem — aquilo que era capaz.

"A minha alegria vem exatamente da possibilidade em ter oportunidades para ativar relações de trabalho e de diálogo entre diversos campos, dar a conhecer propostas artísticas que na minha opinião merecem ser vistas por públicos variados e trazer também para cima da mesa a minha agenda eco feminista, mais inclusiva, mais calorosa."

Como surge a oportunidade de colaborar com Art Basel ou a Bienal de Xangai?
A colaboração com a Art Basel nasce precisamente de um projeto completamente independente chamado Vdrome, dedicado ao cinema de autor e que continuo a fazê-lo sem apoios e patrocínios já há oito anos. De repente, uma feira como esta olhou para mim e considerou que eu tinha feito um grande trabalho em mostrar o cinema de artista e convidou-me para integrar na equipa. Ao longo dos anos tenho feito trabalhos de escrita sobre questões ambientes, o que também levou a organização da Bienal de Xangai a pensar que eu estaria a articular de uma forma particular a arte e a ecologia, convidando-me para a equipa. Acho que tudo isto é resultado de insistência, persistência e uma gradual compreensão da forma como as nossas paixões e capacidades profissionais nos levam a bom porto.

Esse reconhecimento dos outros surpreendeu-a em algum momento?
Não, senti alegria, honra e sobretudo um enorme entusiasmo. Quando uma pessoa faz um trabalho de comissariado ou curadoria nunca o faz para ela própria, a nossa função é sempre ativar dinâmicas entre instituições, artistas e públicos. A minha alegria vem exatamente da possibilidade em ter oportunidades para ativar relações de trabalho e de diálogo entre diversos campos, dar a conhecer propostas artísticas que na minha opinião merecem ser vistas por públicos variados e trazer também para cima da mesa a minha agenda eco feminista, mais inclusiva, mais calorosa.

Cultura e ecologia são duas áreas aparentemente distantes, como se fundem e confundem no seu pensamento?
Em 2013 comecei a fazer o doutoramento em filosofia em Kingston, interessava-me a relação transdisciplinar entre o cinema de autor, as artes performativas e os estudos dos animais. Percebi que tinha chegado a altura de tentar combinar este grande interesse que tinha desde criança na natureza, e nos animais em particular, com a minha atividade estruturada profissional ligada à arte, tinha alguma insatisfação no pouco engajamento da arte com as questões ambientais. Achei que para a minha atividade profissional como curadora, autora, crítica de arte e comissária de exposições fazer mais sentido necessitava de contribuir para uma intensificação do diálogo entre a arte e o ambiente.

De que forma?
O discurso dos cientistas sobre o aquecimento global ou as alterações climáticas têm canais próprios e a arte tem formas de tratar questões sensíveis, políticas e ambientais com uma linguagem e abordagem muito especiais, que elevam as possibilidades da arte a uma possibilidade de ação sobre a sociedade e sobre o mundo. A arte funciona como um tradutor, um canal para chegar a pessoas que talvez não tenham essa consciência e também para propor transformações e criar sensibilidades. A arte tem esta capacidade única de gerar afetos e criar formas de desejo de ação que possam ser profundamente transformadores.

Ainda há muito por fazer nesse na ligação entre a arte e o ambiente?
Digamos que alguns dos artistas contemporâneos com maior visibilidade, estou a pensar por exemplo em Ai Weiwei, Olafur Eliasson ou o português Pedro Neves Marques, têm tocado no seu trabalho de forma chave nestes temas. Há muitos futuros pela frente, mas se queremos um futuro que não seja só habitado por ratos, pombos e gaivotas — animais que os cientistas chamam de oportunistas, porque se tentam adaptar à vida humana — penso que o futuro tem que passar por um repensamento do modo como nos relacionamos com o mundo. É isso que espero, a arte não vai oferecer soluções, a arte não vai mudar o mundo, não consegue mudar o mundo, mas consegue sensibilizar, comunicar diretamente com aqueles que são decisores e podem criar redes e solidariedade. Os campos disciplinares da arte, da ciência, da política, da ação social não podem trabalhar isoladamente, têm que se unir. Falar hoje de ecologia é também falar de justiça social, se pensarmos em problemas como a poluição, a subida do nível das águas ou da seca, estamos a falar de dramas humanos que levam a emigrações, que levam aos problemas na Síria, à crise dos refugiados, a crises políticas e a diferenças sociais cada vez mais acentuadas. Não é só ‘vamos salvar os golfinhos e proteger as nossas florestas’, é conceber o mundo de uma forma mais holística e perceber que o pensamento ecológico é uma forma de ação social e que deverá estar em diálogo e constante coordenação com outras frentes de transformação social. Não se trata apenas de proteger da natureza, a ecologia é mesmo um bastião do pensamento social.

"A cena artística do Porto não é uma coincidência, não é um acaso, é fruto do desejo de alguém que vê na cultura uma ferramenta fundamental para vitalidade da cidade." (na foto: a Galeria Municipal)

Dinis Santos

Fazia parte dos seus planos regressar a Portugal?
Não, de maneira nenhuma. Há um ano e meio atrás alguém me propôs voltar para Portugal para dirigir uma instituição e eu recusei.

Vai dizer-me qual é?
Não posso [risos], mas não era no Porto nem em Lisboa. Em 2019, o Guilherm Blanc – seu antecessor — desafiou-me a comissariar com ele o Fórum do Futuro e essa edição para mim foi extremamente importante. Foi o ano dos 500 anos da viagem de circum-navegação e o Guilherme propôs que o evento fosse um repensar crítico dessa celebração, o contributo e a responsabilidade dos portugueses nesse primeiro gesto de globalização, e as implicações históricas e políticas desse gesto. Trabalhamos juntos com a equipa do departamento de arte contemporânea e fiquei encantada com o profissionalismo, a seriedade e a disponibilidade do departamento, mas também com uma política municipal em relação à cultura que não tinha conhecido em Inglaterra e sobretudo não conhecia em Portugal.

Até essa altura, que relação tinha com o Porto?
Nenhuma. Nasci em Lisboa e claro que durante a minha juventude Serralves era um lugar invejável. Nessa altura uma jovem lisboeta com interesses artísticos como eu via Serralves como o museu de arte contemporânea que Lisboa não tinha e ainda não tem. Era como uma espécie de meca para ver exposições num museu com uma escala superior, a minha relação com o Porto resumia-se a Serralves. Depois da experiência no Fórum do Futuro, que foi muito positiva, o Guilherme convidou-me para fazer a edição seguinte com uma equipa diferente, mas depois chegou a pandemia e transformamos o evento num livro e em seguida, no verão de 2021, surge a exposição “Pés de Barro” aqui na galeria municipal, que comissariei com a espanhola Chus Martínez. Nessa altura, o Guilherme Blanc tinha decidido ir para o projeto do Cinema Batalha e o município abriu a possibilidade de eu vir para o seu lugar.

O que a fez aceitar o convite?
A equipa, essencialmente. Somos três curadores, eu com uma experiência internacional, a Isabeli Santiago, vinda do Brasil e muito engajada em questões pós-coloniais e femininas, e o Juan Luís Toboso, espanhol, muito interessado em agendas performativas e questões queer. É muito raro em Portugal existir uma equipa internacional com agendas tão interessantes. Depois, o próprio espaço da galeria, uma pessoa entra no Jardim do Palácio de Cristal e cruza-se com um pavilhão extremamente bonito, aberto à cidade, luminoso, transparente, quem está fora vê o que se passa lá dentro, mas sem ser uma coisa impositiva. Às vezes digo que vim para a cidade mais londrina depois de Londres, mas sem dúvida que o que me faz aceitar foi o profissionalismo e a equipa da galeria.

Foi uma decisão rápida e fácil de tomar?
Não foi nada fácil. Tinha compromissos profissionais anteriores, tinha acabado de me mudar para Basileia para dirigir um mestrado e tive que abdicar disso, reduzi a minha colaboração, mas continuo a ensinar. Foi uma decisão difícil: vivo muito confortavelmente entre a Suíça e Londres ou concentro-me num projeto que é uma aventura completamente diferente? Achei que era uma oportunidade única e se não a aceitasse agora iria estar sempre a pensar como ela teria sido.

"O equilíbrio é sempre fazer um programa que seja complexo, que desafie as pessoas, que toque em questões fundamentais do presente, que seja estimulante e interessante tanto para um jovem universitário como para uma família que vem de visita num fim de semana."

Em que consiste concretamente este departamento num município como o Porto?
O departamento de arte contemporânea tem uma missão muito clara que é assegurar que existe uma produção artística de qualidade, bem apoiada, sustentável e dinâmica. Que seja enriquecedora, contribua para a vida da cidade e possa desenvolver e crescer, seja localmente, nacionalmente e internacionalmente. Por um lado, tem como função produzir e gerar oferta cultural, através da galeria municipal, sobretudo na prática artística contemporânea e musical, na produção de exposições, eventos culturais e concertos, ancorados fisicamente nos espaços da Galeria, da Fonoteca e do auditório da Biblioteca Municipal. Por outro lado, apoia artistas, coletivos, instituições e galerias da cidade ou na cidade. No fundo, este departamento produz, apoia e garante que a esta produção chega à cidade como se fosse uma lasanha.

Como uma lasanha?
Sim, há a camada da comunidade artística, a camada dos estudantes, a camada do público geral e do público curioso. A ideia é que os conteúdos que produzimos sejam acessíveis a níveis diferentes.

Como se faz essa aproximação das pessoas com a arte e que papel pode ter o município nessa promoção artística?
Vemos que a cena artística do Porto não é uma coincidência, não é um acaso, é fruto do desejo de alguém que vê na cultura uma ferramenta fundamental para a vitalidade e a identidade de uma cidade. Vemos isso na agenda do presidente Rui Moreira desde o primeiro mandato, onde a cultura é uma prioridade, uma ferramenta operativa para a sua visão da cidade e da sua transformação. O departamento tem o privilégio de trabalhar diretamente com o presidente da câmara, que tem também este pelouro da Cultura, e isso também nos dá uma responsabilidade muito maior, existe uma expectativa grande em relação ao nosso desempenho e à nossa capacidade de conseguir chegar a esses diferentes públicos. Há a preocupação em não fazer um programa elitista, mas que também não seja populista ou que intensifique a ideia de que pessoas não têm capacidade para o compreender. O equilíbrio é sempre fazer um programa que seja complexo, que desafie as pessoas, que toque em questões fundamentais do presente, que seja estimulante e interessante tanto para um jovem universitário como para uma família que vem de visita num fim de semana. Um programa que não seja só arte pela arte, mas a arte como uma forma de falar, pensar, refletir, sentir o que se passa no mundo de hoje.

Que relação tem o Porto com a arte contemporânea?
O que acho muito interessante na cena artística do Porto e muito único é o diálogo com outras disciplinas e com tradições que são muito enraizadas em dinamismos culturais mais tradicionais na cidade. A relação que existe entre o design e a arquitetura, duas escolas tradicionalmente ligadas à cidade, ou o cinema mostra que há uma enorme vitalidade transdisciplinar das práticas artísticas do Porto. É também única a forma como a cidade se organiza em coletivos, tem iniciativa, diálogos pluridisciplinares e reelaborações artísticas da identidade do norte que são muito especiais neste terreno fértil.

"Não tenho uma opinião sobre o trabalho de Graça Fonseca, aguardo com curiosidade o seu parecer sobre a participação portuguesa na Bienal de Veneza"

(Rui Oliveira/Observador)

Tenciona criar uma ponte entre a arte contemporânea portuguesa e a internacional?
A função de uma pessoa como eu, que vem de fora, é precisamente ativar essas pontes usando os canais que o departamento tem disponíveis — os espaços expositivos — criando diálogos e sinergias entre artistas e, consequentemente, entre a cena local e a cena internacional. É necessário agir quase como uma árvore com raízes locais e ramos que vão crescendo internacionalmente. Como? Através de programas de residência que permitam receber pessoas de fora e que os nossos artistas possam também mostrar o que fazem lá fora. É importante intensificar esse intercâmbio, convidar curadores internacionais a virem ao Porto para conhecerem o tecido da cidade e assim poderem possam convidar os nossos artistas para exposições e bienais.

A sua função passa por não trabalhar tanto para o público, mas mais para os artistas?
O público é o turismo que trata, não somos nós. Portugal está na moda, as nossas cidades são pitorescas, ficam lindamente no Instagram, a comida é ótima, tal como o acolhimento e o clima. Há públicos no Porto que, obviamente, têm de ser acompanhados, acarinhados e estimulados, mas a nossa intenção é trabalhar sobretudo para o público local, quem vive ou vem ao Porto. Temos de ter várias linhas de ação, dar prioridade a bons programas na galeria, garantir que a cena artística continua ativa e isso talvez passe por um processo de maior internacionalização. Não tanto porque precisamos de estrangeiros, mas porque o estrangeiro precisa de nós e ficará encantando com a qualidade dos nossos artistas, dos nossos espaços e daquilo que fazemos.

Disse numa entrevista que tem o sonho de ver no Porto rendas controladas para programadores culturais. Pode explicar isto?
Bem, não quero que fique a ideia de que foi o presidente [Rui Moreira] que disse isto ou prometeu isto. É um sonho que tenho quando vejo um exemplo de uma cidade como Nova Iorque, uma cidade gentrificada de uma forma muito agressiva, mas na qual continuam a viver artistas em Soho ou Chinatown. Nova Iorque teve desde os anos 60 uma política de rendas controladas para produtores culturais, poetas e artistas, isso permitiu que a cidade crescesse a nível económico e garantiu que o tecido artístico continuasse a habitar por lá. Adoraria que uma cidade como o Porto tivesse a capacidade de continuar a apoiar a produção artística, mas também oferecesse a possibilidade dessa comunidade residir aqui. Isto não é uma promessa nem uma visão do município, é uma visão pessoal minha, muito relacionada com o boom do turismo em Portugal, com a forma como os centros históricos das cidades estão a acolher um turismo que é necessário, mas que também os descaracteriza. É importante apoiar não apenas os artistas a produzir e a trabalhar, mas também a viver cá.

"A pandemia criou também esta consciência de possibilidade e de responsabilidade, de repensarmos as nossas ofertas culturais. As pessoas que estiveram dois anos fechadas em casa certamente não querem estar fechadas num museu, mas sim ir a um concerto ou a um evento ao ar livre, coisas com mais calor."

Na sua opinião, qual o impacto da pandemia no panorama cultural do país e da cidade?
Não estava cá, é difícil para mim responder a isso porque não estava envolvida com as políticas municipais de apoio à criação ou aos artistas.

Mas no seu entender a cultura está mais ou menos fragilizada neste momento?
O mundo está muito mais fragilizado. Estamos a viver um momento de mais incertezas e mais imprevistos, em que na programação cultural temos de fazer um plano A, B, C e D. Há hoje uma enorme instabilidade que é difícil de gerir e de programar, por outro lado a pandemia veio quebrar uma lógica de produção quase industrial, de piloto automático e de um ritmo muito acelerado.

Isso é bom?
Sim, acho que é muito positivo. É importante pararmos, pensarmos e avaliarmos o que estamos a fazer, sobre o que as pessoas procuram, querem ou desejam e refletirmos também sobre a nossa responsabilidade na ativação de formas de solidariedade. Vejo como um grande exemplo aquilo que um museu em Munique está a fazer, em paralelo ao programa expositivo começou um calendário de concertos e performances. O diretor pensou que neste momento são esses os artistas mais parados e mais precários, é exemplo excelente de como um museu pode ser uma ferramenta de apoio social e cultura não apenas através da arte. A pandemia criou também esta consciência de possibilidade e de responsabilidade, de repensarmos as nossas ofertas culturais. As pessoas que estiveram dois anos fechadas em casa certamente não querem estar fechadas num museu, mas sim ir a um concerto ou a um evento ao ar livre, coisas com mais calor.

O público também passou a querer coisas diferentes, é isso?
É difícil generalizarmos, mas acho que as pessoas têm vontade de encontrar qualquer coisa de diferente. Esse será um grande desafio para nós e vamos ter um ano inteiro para pensar nele.

Sim, a Galeria vai fechar em fevereiro para obras até ao final do ano…
Exato, são obras necessárias.

O que vai mudar?
Vamos ter um ano para pensar nisso, o que irá mudar vai responder às novas necessidades, mas não vamos estar parados, iremos ter um programa de atividades públicas de vários tipos que será constante. As exposições fecham, mas vai haver uma série de linhas programáticas de atividades que vão preparar o terreno e ajudar-nos para o que virá.

O que já pode adiantar dessa programação?
Será transdisciplinar, além do o auditório da Biblioteca terá outros sítios que vamos ativar, será acompanhada de mudança da imagem gráfica da galeria, que terá uma operação de cirurgia estética a vários níveis, e haverão manifestações de natureza diversa. Vamos tentar menos os eventos numa relação unívoca de alguém que faz e alguém ouve e é passivo, mas criando formatos mais integrados, que permitam estabelecer relações mais participativas e com diálogos entre vários campos disciplinares. Comecei a trabalhar no dia 1 de janeiro, estamos ainda a definir tudo.

Que autonomia pode ter o município do Porto a trabalhar a arte e a cultura face aquilo que é feito pelo governo e pelo próprio Ministério da Cultura?
Sinto que o município tem uma grande autonomia, até porque há uma diferença entre as políticas culturais do Porto em relação a outras cidades. Não quero comparar com Lisboa porque dá sempre a ideia de que queremos ser melhores ou piores, é apenas diferente. Acho que existe de facto uma grande autonomia para criar uma visão cultural própria com grandes linhas como o teatro, com o Rivoli e o Campo Alegre, a linha do cinema, com o enorme investimento que será feito no Cinema Batalha, a linha dos museus, que também estão a ser repensados pelo Nuno Faria, e a linha da arte contemporânea.

Como tem visto e avaliado o trabalho da atual ministra da cultura, Graça Fonseca?
Não tenho acompanhado, só vi uma fotografia dela com a Joana Vasconcelos. Não tenho uma opinião sobre o seu trabalho, aguardo com curiosidade o seu parecer sobre a participação portuguesa na Bienal de Veneza. Não é fugir à pergunta, mas não tenho mesmo acompanhado.

Não tem qualquer tipo de expectativa relativamente a esse trabalho?
Não, estou focada sobre o que se está a passar no Porto, não tenho capacidade de me pronunciar. Tenho estado mais próxima do contexto inglês e suíço do que o contexto português, tenho que me informar melhor porque ainda não tenho uma ideia feita.

Como é regressar a Portugal 20 anos depois? O que sente que já mudou?
Ter uma equipa internacional a trabalhar comigo é uma prova de imensa mudança. Ter pessoas que linguisticamente e culturalmente são próximas de Portugal e que estão a trabalhar com instituições portuguesas é, para mim, uma lufada de ar fresco, dá-me uma enorme esperança. Acho que o país mudou no desejo de repensar a sua identidade cultural, abriu-se muito ao estrangeiro, o que não é sempre necessariamente bom, mas acho que houve um enorme caminho do posicionamento de Portugal na cena artística internacional. Os nossos artistas, músicos, escritores e curadores estão ao nível dos outros, têm discursos e preocupações que são de uma escala e de uma qualidade que está perfeitamente à altura do plano internacional. Este é um sinal de enorme mudança, não encontrava nada disto quando no final dos anos 90 fui embora.

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