Abdulrazak Gurnah. Até o nome é difícil de pronunciar à primeira. Mais difícil ainda é encontrar um livro do Prémio Nobel da Literatura em português. Junto ao Rio, de 2001, é o único título publicado em Portugal, através da Difel. A editora já não existe e conseguir contactar quem lá estava nessa altura revelou-se missão impossível. Por cá não há muita gente que conheça bem a obra do escritor que nasceu na ilha de Zanzibar (Tanzânia) a 20 de dezembro de 1948 e que se instalou em Inglaterra, em exílio, em 1968. Uma das poucas pessoas é David Callahan, professor da Universidade de Aveiro que tem como uma das suas áreas de especialização a literatura pós-colonial, exatamente o tema central das obras de Gurnah.
Com o anúncio da atribuição do Nobel, a Academia Sueca divulgou igualmente uma bibliografia importante que ajuda a entender o escritor de quem mais se fala por estes dias. Nela está um dos trabalhos publicados por David Callahan, “Exchange, Bullies and Abuse in Abdulrazak Gurnah’s Paradise”. Segundo o professor universitário, que se formou na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, o universo de Abdulrazak Gurnah “não é um mundo simplista onde os africanos são sempre vítimas e os europeus são sempre vilões”. As narrativas são bem mais complexas e, por isso, fazem dele “um escritor sábio e independente”. O Observador falou com David Callahan para entender o que há de fascinante na obra do mais recente Nobel da Literatura — que até tem (ou já teve) uma casa na zona de Tomar.
Quando é que leu pela primeira vez as obras de Abdulrazak Gurnah?
Descobri as obras dele quando o romance Paradise foi incluído na shortlist para o Booker Prize em 1994 e depois, quando preparava o programa do primeiro ano do Mestrado em Estudos Ingleses na Universidade de Aveiro, em 1996, sabia que queria incluir o livro nas minhas disciplinas de Literatura Pós-Colonial. Os alunos sempre responderam de forma muito positiva ao livro e ainda hoje é a obra de Gurnah que as pessoas costumam conhecer, quando conhecem alguma.
O David escreveu sobre a obra de Abdulrazak Gurnah e esse trabalho [Callahan, David, “Exchange, Bullies and Abuse in Abdulrazak Gurnah’s Paradise” in World Literature Written in English, Vol. 38; Iss. 2, January, 2000] foi incluído na bibliografia de leituras importantes destacada pelo comité que atribuiu o Prémio Nobel. Por que motivo resolveu analisar o trabalho dele?
Foi escrito na sequência das aulas que dei acerca de Paradise. O artigo foi publicado numa revista académica muito conceituada na altura. Ainda acerca da obra de Gurnah, publiquei, em 2013, num número de outra revista internacional dedicado à obra dele, outro artigo sobre outro romance menos conhecido, Dottie.
Para quem não está familiarizado com a obra do agora prémio Nobel da Literatura, como descreveria a escrita de Gurnah?
Abdulrazak Gurnah escreve principalmente sobre a experiência dos africanos durante o período colonial na Tanzânia (que inclui a ilha de Zanzibar, de onde é oriundo). Também escreve sobre a experiência dos imigrantes africanos e asiáticos em Inglaterra, onde vive e viveu durante a maior parte da vida, exilado por motivos políticos.
Há muitos escritores que escrevem sobre estes temas. Porque é que Gurnah foi agraciado com o prémio?
Sem ter lido a justificação dada pelo Comité do Nobel, posso dizer que o mundo dos livros de Gurnah é um mundo que explora e expõe a Tanzânia colonial, mas não é um mundo simplista onde os africanos são sempre vítimas e os europeus são sempre vilões, é um mundo em que os seres humanos de qualquer tipo podem ser qualquer coisa, em que pode existir uma falta de solidariedade flagrante entre indivíduos que achamos que deviam unir-se contra o colonizador. Também pode existir um europeu cujos atos são difíceis de interpretar só e unicamente como atos coloniais. Além disso, não é um mundo em que a relação colonial é a única experiência das pessoas e tem longas secções focadas na experiência familiar, na procura de estabilidade financeira, etc. É um retrato dos povos da Tanzânia e das suas interações quotidianas. No fundo, Gurnah opõe-se à ideia de que os seres humanos se identificam primeiramente em função da sua etnicidade ou nacionalidade e duvida inclusivamente do conceito de cultura étnica ou nacional.
Ou seja, classifica tais ideias como redutoras?
Sim. Nas suas obras, a ideia de que pertencemos a uma única e determinada cultura é sempre apresentada como simplista. Insiste que somos seres humanos primeiro e que devemos ser julgados como seres ético-morais e não principalmente como portugueses, masai, chagga (duas das muitas etnias de Tanzânia), seja o que for. Nisso, os Estudos Culturais estão de acordo: existimos numa espécie de fluxo cultural que mistura aspetos de outros fluxos culturais. Porém, os sistemas de educação e outras estruturas institucionais, bem como os discursos nacionalistas a todos os níveis, insistem em que nos concebamos em termos mais fixos e menos flexíveis. É uma versão da identidade mais fácil de digerir e que algumas pessoas acham mais apelativa.
Em português só é possível encontrar traduzido Junto ao Rio. Qual é o livro de Gurnah mais conhecido?
O livro mais famoso saiu em 1994, Paradise. O título [que significa paraíso] é irónico, uma vez que aí constatamos frequentemente que as pessoas têm imensa dificuldade em tratar os outros com respeito e de forma justa. Os seres humanos estão constantemente a estabelecer hierarquias e a oprimir outros seres humanos quando podem, até ao ponto de escravizar os mais fracos. Uma parte deste processo consiste em ocultar as estruturas e as operações do poder através do encorajamento de sonhos irrealistas, tal como o sonho de que existe um paraíso. Claro que há muito mais que torna os livros de Gurnah interessantes do que apenas estes conceitos abstratos. Os romances dele costumam desenvolver-se no século XIX ou princípios do século XX na África oriental, o que confere um certo ar exótico às narrativas, exotismo esse que é popular junto de um certo público europeu. São livros que contêm histórias de amor, de traição, de sujeição, de sonhos só parcialmente realizados ou gorados, temas que também contribuem para a popularidade da obra de Gurnah.
Que características na obra de Gurnah é que têm pontos comuns com o colonialismo português?
Todos os colonialismos estão relacionados, mas a Tanzânia foi colonizada por dois países europeus—a Alemanha e, depois da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra. E a ilha de Zanzibar foi colonizada pelos árabes durante séculos. Esta mistura de experiências coloniais diferencia as histórias que se constroem acerca do país. Mas no fundo, chegaram os europeus e sujeitaram as populações locais aos seus interesses, utilizando violência, apropriando-se das terras, explorando recursos e oprimindo os povos colonizados, que é a história de todos os colonialismos, incluindo o português.
Os temas que Gurnah aborda são muito específicos. Ficou surpreendido com a atribuição do Prémio Nobel?
Fiquei muito surpreendido porque receava que o mundo não apreciasse a obra dele como devia. Há muito tempo que tenho essa impressão. As suas obras recentes não tiveram tanta atenção dedicada (nem por parte da crítica, nem por parte da academia) como obras mais antigas, na minha perspetiva. Outro episódio curioso que contribuiu para essa minha perceção: há muitos anos propus escrever uma monografia sobre Gurnah a uma editora inglesa, mas disseram-me que ele não estava incluído em muitos programas universitários e que não tinha o perfil para a série que publicavam sobre escritores pós-coloniais. De forma que eu não podia estar mais contente com esta atribuição do Prémio Nobel, finalmente foi reconhecido o mérito de um escritor sábio e independente.
Já alguma vez esteve com Abdulrazak Gurnah?
Conheci-o uma única vez numa conferência em Veneza, em 2008, sobre a Literatura Pós-Colonial em Inglês. Ele era um dos convidados especiais. É uma pessoa sóbria e educadíssima, elegante e culta. Na altura disse-me que tinha uma casa na zona de Tomar — uma casa de férias, imagino, mas quem sabe se a usava para escrever. Sabiam que ele passou por lá? [segundo conseguiu apurar o Observador, não existe, atualmente, nenhuma propriedade registada em nome de Abdulrazak Gurnah nessa região].