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Pedro Theotónio Pereira na Estação do Rossio despede-se da multidão momentos antes de viajar para Salamanca, 18 de janeiro de 1938
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Pedro Theotónio Pereira na Estação do Rossio despede-se da multidão momentos antes de viajar para Salamanca, 18 de janeiro de 1938

Pedro Theotónio Pereira na Estação do Rossio despede-se da multidão momentos antes de viajar para Salamanca, 18 de janeiro de 1938

"Fiz o que pude". As memórias de Pedro Theotónio Pereira, o quase sucessor de Salazar

O Observador publica um excerto do novo livro "Pedro Theotónio Pereira: o outro delfim de Salazar", a biografia do político do Estado Novo, da autoria do historiador Fernando Martins.

Foi diplomata, subsecretário de estado e ministro. Figura destacada da política do Estado Novo, Pedro Theotónio Pereira chegou a alcançar o estatuto de sucessor de Salazar, de quem foi conselheiro e com quem foi um dos fundadores do regime. Numa nova biografia, o historiador Fernando Martins (autor de, entre outros, “A Formação e a Consolidação Política do Salazarismo e do Franquismo”, de 2012, e “As Revoluções Contemporâneas”, de 2005) recupera, em detalhe, a vida pessoal e o percurso político de Theotónio Pereira.

Neste excerto publicado pelo Observador, Fernando Martins aborda o final da atividade política do governante e os dilemas que o acompanharam no processo de escrita das suas memórias.

A capa de "Pedro Theotónio Pereira: o outro delfim de Salazar", de Fernando Martins (Dom Quixote)

Quando, a 23 de setembro de 1967, foi inaugurado no Porto, na Praça das Flores, um busto de Pedro Theotónio Pereira, o homenageado encontrava‑se em Londres. Nem por isso deixou de ouvir pela rádio as palavras proferidas na ocasião por Américo Thomaz e que, naturalmente, o emocionaram. Fora contrário à inauguração daquele discreto monumento e opusera‑se à atribuição do seu nome a uma praça, sobretudo por se encontrar ainda vivo. Mas tinha-o feito “sem resultado!”. Depois, e mais uma vez em jeito de balanço, dizia a Marcello:

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O que você me escreveu dá-me a sensação de se poder pensar que boa parte da obra que começámos em 1933 já ganhou raízes fundas. Apoquentava-me muito que se dissesse que a nossa geração não seria, como as que a antecederam, capaz de passar da teoria à prática. Fiz o que pude, […] com boas ajudas […] e consola-me pensar que aquele grito ‘O que nós queremos!’ Não ficou sem realização.

A reação a esta e a outras homenagens feitas a Pedro Theotónio Pereira já depois de ter deixado a vida política ativa eram um pequeno exemplo daquela que desde muito cedo foi a sua preocupação pelo lugar que seria reservado pela história tanto a ele, individualmente, como ao regime político que servira quase ininterruptamente durante trinta anos. Aliás, várias foram as iniciativas, mais ou menos visíveis, que institucional ou individualmente algumas figuras do regime levaram a cabo com o intuito de salvaguardar para o Estado Novo o lugar julgado merecido na história de Portugal, ao mesmo tempo que se pretendia assegurar uma avaliação justa por parte dos historiadores. Pelo menos a partir do momento em que foi bem-sucedida a política portuguesa traçada e praticada no contexto da Segunda Guerra Mundial, tanto Oliveira Salazar como Theotónio Pereira trocaram impressões sobre a necessidade de se vir a produzir, a partir do interior do regime, um trabalho sistemático que transmitisse a sua visão de acontecimentos que se considerava serem os mais destacados ocorridos desde a chegada de Salazar ao poder, mas em especial naqueles domínios em que parecia evidente não vir a estar o futuro escrutínio e a análise dos historiadores mais claramente sujeitos ao preconceito político‑ideológico.

No campo da política interna, o regime, e também Pedro Theotónio Pereira, procuraram salvaguardar-se dos juízos históricos depreciativos sublinhando que os méritos dos princípios ideológicos adotados e prosseguidos tinham permitido encontrar e pôr em prática, após o 28 de Maio, uma solução política e social global.

No campo da política interna, o regime, e também Pedro Theotónio Pereira, procuraram salvaguardar-se dos juízos históricos depreciativos sublinhando que os méritos dos princípios ideológicos adotados e prosseguidos tinham permitido encontrar e pôr em prática, após o 28 de Maio, uma solução política e social global (assente em princípios, respetivamente, de ordem política e social e de progresso material). Esta tarefa era facilitada, ao menos teoricamente, contrapondo aquela interpretação da realidade a uma outra que, vigorando anteriormente, entre a década de 1820 e o fim da I República, se teria caracterizado pela instabilidade política crónica, pelo profundo atraso material e pela desordem social recorrente. Porém, e no domínio da política externa e da diplomacia, o salazarismo avaliou-se de outra forma. Desvalorizou a dimensão ideológica da sua ação, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial, procurando sublinhar o facto de os êxitos obtidos entre 1939 e 1945, nomeadamente a preservação da integridade do território nacional (metropolitano e ultramarino) e a sobrevivência do Estado Novo, terem sido obtidos através da conceção e execução de uma política de neutralidade de geometria variável, tendo esta tido uma grande importância por conseguir subtrair a Península Ibérica a uma participação na guerra, além de ter dado um importante contributo para que, nomeadamente o Império Britânico e os EUA, pudessem derrotar as potências do Eixo. Neste caso, portanto, aquilo que o Governo fizera fora defender os superiores interesses nacionais, ao mesmo tempo que dera o seu contributo para a neutralidade da Península Ibérica e a vitória dos aliados anglo-americanos.

Theotónio Pereira, por outro lado, tinha uma verdadeira obsessão pelo lugar que a história lhe reservaria na qualidade de máximo representante diplomático de Portugal em Espanha. No entanto, a sua obsessão veio a acentuar-se à medida que foram sendo publicados trabalhos que, dando uma visão da Segunda Guerra Mundial e do papel que neste conflito coubera à Península Ibérica desempenhar, na opinião de Theotónio Pereira (e de Salazar) não era suficientemente valorizada a ação do Governo de Lisboa. Subestimar-se-iam tanto os esforços desenvolvidos para manter a Espanha afastada da nefasta influência alemã ou italiana e, portanto, fora da guerra, como a importância que tivera para o desfecho do conflito a concessão a britânicos e a norte-americanos do direito de utilização de bases militares no arquipélago dos Açores.

Com Paulo Cunha, recebe Isabel II de Inglaterra e o príncipe Filipe na base aérea do Montijo

Se, a partir de finais da década de 1940, Pedro Theotónio foi sempre dando notícia da necessidade de ser vincada a importância, para a causa aliada e para o desfecho da Segunda Guerra Mundial, daquela que tinha sido a atuação política e diplomática portuguesa, depois de se ter retirado da vida pública em 1963 acentuou-se essa sua preocupação. Por outro lado, a publicação, entre outros testemunhos, das memórias de guerra de Carlton J. H. Hayes e de Samuel Hoare, que elogiavam a atuação de Theotónio Pereira em Madrid e o papel da diplomacia portuguesa na manutenção da neutralidade da Península Ibérica, funcionaram a prazo como um dos detonadores da decisão de escrever e publicar as suas memórias. Pretendia deixar a sua visão dos acontecimentos que protagonizara e emular trabalhos redigidos por antigos parceiros nas lides diplomáticas.

Com o objetivo de zelar por aquilo que deveria ser o tratamento justo da atuação político-diplomática portuguesa durante a guerra, Theotónio Pereira leu muito, estando particularmente atento àquilo que jornais, revistas e editoras iam publicando com uma cada vez maior cadência, sobretudo nos EUA e no Reino Unido. Estava ainda atento à documentação histórica que ia sendo divulgada sobre a Segunda Guerra na Europa. Paralelamente, não podia deixar de se interessar por aquilo que se publicava em Espanha e em Portugal, sendo merecedor da sua crítica quase tudo o que nestes dois países se escrevia sobre o assunto. No caso de Espanha, merecia a sua censura o facto de normalmente se publicar sem preocupação com qualquer tipo de rigor histórico. Escreviam-se livros (poucos) e artigos de jornais e revistas (muitos) chamando a atenção para o que teria sido a trave mestra da neutralidade espanhola e que teria assentado na convicção e no desejo de garantir a vitória aliada e de criar todo o tipo de obstáculos ao que teria sido o desejo infrene por parte dos alemães de invadirem a Península e ocuparem Portugal e Gibraltar. No caso da literatura portuguesa, Theotónio Pereira censurava a tentação de analisar o papel desempenhado por Portugal durante a guerra à luz do que teria sido a existência de uma política pacificamente concertada pelos governos dos dois Estados peninsulares, como se ambos tivessem mantido o mesmo posicionamento em relação ao conflito e aos beligerantes. Para Theotónio Pereira, patrioticamente, politicamente, e em nome da verdade histórica, este tipo de visão dos acontecimentos, desde muito cedo abraçada por políticos e intelectuais apoiantes do salazarismo, além de desastrosa do ponto de vista dos interesses portugueses, não passava de uma falsidade que diminuía o país e aqueles que o tinham servido e ainda serviam.

Theotónio Pereira tomou "como ponto assente que começaria a apontar" as suas "notas para ficar alguma coisa escrita sobre certos factos pouco conhecidos", além do que poderia "encontrar‑se na coleção do Diário do Governo e na imprensa".

Era com este espírito que, já bem entrada a década de 1960, Theotónio Pereira continuava a recolher informação que ia sendo divulgava sobre acontecimentos e personalidades ligadas ao período em que exercera em Espanha os cargos de agente especial, primeiro, e de embaixador, depois. Valha a verdade que não se preocupava apenas com os juízos e o lugar reservado à sua pessoa, mas também com o lugar que caberia a Oliveira Salazar. Por exemplo, e logo no início de novembro de 1964, Theotónio Pereira enviava‑lhe um recorte do ABC que evocava o 20.º aniversário da morte do conde de Jordana – antigo vice-presidente do primeiro “governo nacional” e duas vezes ministro dos Assuntos Exteriores. No artigo fazia-se muito sinteticamente uma análise das relações luso-espanholas durante a Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que se reproduzia uma fotografia em que o ex-ministro aparecia acompanhado de Oliveira Salazar tendo como “motivo a constituição do bloco ibérico”. Se desta vez o texto daquele jornal espanhol não merecia críticas ao antigo embaixador em Madrid, foi a intenção de legar uma visão do regime sobre a sua própria história, salvaguardando-o dos caprichos de jornalistas e historiadores parciais, que fez com que, incentivado por Oliveira Salazar, Pedro Theotónio Pereira se decidisse a escrever as suas memórias.

Na abertura do primeiro capítulo daquele que foi o primeiro volume de uma obra que se planeou vir a ter um total de cinco, Pedro Theotónio Pereira deu conta de algumas das razões que o levaram a deixar escrito o testemunho de uma longa vida dedicada ao serviço do Estado português, de um regime político e do seu chefe. Independentemente daquela que era a sua convicção pessoal sobre as vantagens que decorreriam da redação e publicação de um trabalho cujo género era pouco cultivado em Portugal, Theotónio Pereira fez questão de relatar o excerto de uma conversa que manteve com Salazar e no decurso da qual este o aconselhou a avançar para um projeto em que consumiu os três últimos anos da sua vida. Desde esse dia, que não se sabe exatamente quando terá sido, mas que se presume ter decorrido já tardiamente na vida política e pessoal dos dois homens, Theotónio Pereira tomou “como ponto assente que começaria a apontar” as suas “notas para ficar alguma coisa escrita sobre certos factos pouco conhecidos”, além do que poderia “encontrar‑se na coleção do Diário do Governo e na imprensa”. Confessava ainda que, alguns anos antes de ter dado início à sua redação, começara “a fazer planos de conjunto e a pensar no critério de escolha das matérias a incluir, sem esquecer […] a documentação de quarentena” que só podia ser “usada de memória”. Tudo isto na convicção de que o seu testemunho sobre os factos e os acontecimentos só teria algum valor no caso de ajudar a “compreender como se procurou servir o interesse nacional e influir no curso dos acontecimentos sempre que o fator humano pôde ter alguma intervenção”.

Nicolau Franco e António Oliveira Salazar na viagem de regresso a Lisboa após a cimeira de Sevilha, 13 de fevereiro de 1942

Que Salazar incentivou Theotónio Pereira a escrever as suas memórias e que a elas lhes atribuía grande importância, testemunha-o também uma carta que escreveu a Santos Costa quando este se encontrava à frente, há meia dúzia de anos, da Comissão do Livro Branco que publicou os primeiros volumes da coletânea de documentos oficiais relativos à ação político-diplomática portuguesa durante a Guerra Civil de Espanha e a Segunda Guerra Mundial. Depois de manifestar grande satisfação pela publicação para breve do 5.º volume dos Dez Anos de Política Externa, e de confessar ser sua convicção de que morreria “sem que a obra fosse publicada no seu conjunto”, comentava:

A maneira despretensiosa procura resumir a vida amarga daquelas gerações de portugueses que não se resignavam a ver cair a pátria em pedaços. Será o livro compreendido? Eu creio que sim e destroçado por esta doença quero tentar guindá-lo com as forças poucas que me restam.

Em finais de novembro recebeu de Marcello Caetano um documento que este possuía nos seus arquivos relativo à fase inicial de implantação da ordem corporativa portuguesa. O seu conteúdo abalançou-o a rever o início do nono capítulo. Porém, já no princípio de dezembro, Theotónio Pereira desculpava-se junto de Marcello por um erro grave incluído no seu trabalho e que, entretanto, aquele tivera oportunidade de ler e assinalar.

Simultaneamente, a apreciação que Marcello Caetano fizesse era para Theotónio Pereira de grande importância, quase vital, confessando‑lhe que dele esperara a última palavra para se decidir sobre a publicação ou não [de um novo volume de memórias].

Quando o manuscrito seguira já para a editora, Theotónio Pereira interrogava‑se sobre se pusera “suficientemente a claro a vineta [sic]” que lhe dera ao começar a escrever e decidir‑se a publicar as suas Memórias.

Depois de pensar no caso, creio que posso dizer que achei útil que um sujeito com uma experiência de umas dezenas de anos viesse contar coisas sobre um lapso de tempo da vida do país que dentro de alguns anos será vastamente ignorado. […] A causa parece pois muito certa.

Restava saber, do seu ponto de vista, se o “tom e a maneira da obra” seriam as mais adequadas. Iniciara entretanto o “volume II”, sentindo que o iria “despachar […] bastante mais depressa”. Sobre “o estilo e o pensamento”, o trabalho parecia-lhe bem. Mas tinha dúvidas sobre a possibilidade de o seu trabalho poder mexer com “alguns setores do povo português”. Simultaneamente, a apreciação que Marcello Caetano fizesse era para Theotónio Pereira de grande importância, quase vital, confessando‑lhe que dele esperara a última palavra para se decidir sobre a publicação ou não: “A sua opinião é muito importante para mim pois escrevo o livro por o ver nesse lugar e parecer que o meu testemunho pode produzir algum bem.” Finalmente, não enjeitava ser seu objetivo “levantar ainda mais a memória do Dr. Salazar”, independentemente da “ajuda” que tencionava dar a Marcello Caetano, concluindo que fora “difícil encontrar uma maneira que não comprometesse o ‘tempo’ dumas memórias”, mas acreditava que tinha conseguido. Tratava-se, portanto, e muito compreensivelmente, do derradeiro trabalho político executado por Theotónio Pereira. Traído pela saúde, seria ingloriamente interrompido.

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