A nossa entrevista a Francisca Van Zeller foi um tanto ou quanto atribulada. Não pela sua pontualidade britânica ou pelo cenário onde tudo aconteceu, a Quinta da Aveleda, em Penafiel, mas pelo facto de a conversa ter sido interrompida por mais que uma vez. A primeira porque o gravador deixou de funcionar, devido às altas temperaturas que se faziam sentir. A segunda vez porque, à sombra, fomos surpreendidas por grupo de produtores e, por isso, terminámos a entrevista a uns passos dali, num pequeno banco de pedra entre a vegetação. Valeu-nos a boa disposição de Francisca.
Aos três anos, o pai, Cristiano Van Zeller, mergulhou-lhe o dedo num cálice de vinho do Porto, aos 15 fez a sua primeira prova não profissional e aos 18 anos recebeu como presente de aniversário uma vinha plantada com o seu nome. É, aliás, esse vinho, o Quinta Vale D. Maria Vinha da Francisca, que está na garrafa que traz na mão. Orgulhosa, mostra-nos os quatro cantos da Quinta da Aveleda, em Penafiel, empresa que em 2017 comprou a Quinta Vale D. Maria. Há galos, pavões, cabras, eucaliptos com décadas, fontes imponentes e casas que fazem lembrar o universo de Harry Potter. É ali que divide os seus dias, entre o Douro, Porto, Lisboa e alguns dos principais mercados espalhados pelo mundo.
Francisca Van Zeller rendeu-se ao negócio de família em 2013, depois de ter estudado história em Londres e jornalismo em Madrid. Comunicar faz parte do seu ADN e nas suas raízes está a curiosidade. Para a enóloga, formação que tirou mais tarde, vender vinho é sinónimo de narrar boas histórias e para fazê-lo conta com o exemplo herdado dos pais e com a sua paixão e encanto pelo Douro, zona onde cresceu e até fez questão de viver. O apelido pesa-lhe, assim como a responsabilidade de gerir expectativas, mas nada que a impeça de arriscar. Com a experiência ganhou confiança e aos 32 anos dá nas vistas em apresentações, provas, formações, jantares vinícolas ou masterclasses, sendo brand manager da marca da família.
Não tem uma rotina, adapta-se a quase tudo e raramente tem medo. É uma mulher a liderar num mundo ainda muito masculino, embora garanta que as maiores barreiras e preconceitos vêm de si própria. Nesta conversa nunca perdeu o sorriso, mas emocionou-se, falou de lealdade, das memórias de infância e dos próximos desafios.
Como é nascer numa família ligada aos vinhos?
Não sei, porque só tenho esta. Obviamente que na minha infância tive vivências que me enriqueceram muito a memória, que é um lugar onde se vai muito ao longo da vida, e eu tenho sítios ótimos para ir. O cenário é o Douro, as vindimas, os cheiros que estão ligados ao vinho, as pessoas que o vinho atraía a todos os níveis. Eu brincava com os filhos das pessoas que trabalhavam na quinta, montava na mula, fazia esconderijos pela quinta e sentava-me à mesa no final da refeição com jornalistas, importadores, agentes que vinham do mundo todo. Tenho dois irmãos mais novos, sou a mais velha dos meus primos diretos, tanto do lado da minha mãe como do lado do meu pai, mas somos bastante chegados. A minha infância teve um momento muito marcado com a venda da Quinta do Noval, tinha sete anos.
Por que razão foi tão marcante a venda da Quinta do Noval?
Acho que todos nós temos pena de perder os nossos lugares de infância e a Quinta do Noval era onde conseguia reunir quase todas pessoas de quem gostava, que na altura eram a minha família direta e os meus primos. Todos nós guardamos muito boas memórias dessa quinta, muitas brincadeiras e uma sensação de liberdade inigualável. Tínhamos o Douro para brincar e descobrir, metíamo-nos no meio das vinhas, íamos para os lagares durante a vindima e tudo isso num ambiente de festa e de brincadeira. A Quinta do Noval marcou-me quando eu nunca mais lá pude voltar, mas está cá dentro algures. Ainda bem que nunca perdi o contacto com o Douro, acho que foi sempre essencial para o meu crescimento e desenvolvimento. Com a venda da quinta, em 1993, o meu pai foi trabalhar para a Quinta do Crasto, depois esteve na Quinta do Vallado e em 1996 comprou a Quinta Vale D. Maria à família da minha mãe, que já a tinha há muitos anos a fornecer uvas para grandes casas de vinho do Porto. Com a compra, esses contratos acabaram e começaram a desenvolver um projeto próprio de vinhos. Recentemente a Aveleda comprou a Quinta Vale D. Maria e nós tornámo-nos pequenos acionistas da empresa.
Lembra-se da primeira vez que provou vinho?
Devia ter uns três anos quando me sentei ao colo do meu pai e ele mergulhou o meu dedo num cálice de vinho do Porto e me deu a provar. Lembro-me da sensação dessa prova e do sabor das compotas que eram feitas com as frutas da quinta e que eu barrava nas torradas de manhã.
A sua primeira prova foi mesmo aos 15 anos?
Não me lembro exatamente onde estávamos, mas era algures cá em Portugal, fui ter com o meu pai a uma feira de vinhos e sentei-me na mesa com os produtores, ao lado dele. Nessa altura eu não bebia, ia apenas dizendo o que sentia no vinho e descrevia-o. Tudo o que era descobrir aromas dentro de um copo, para mim, era fascinante e uma pequena viagem. Lembro-me do meu pai me incentivar muito a continuar a desenvolver e a falar durante a prova, ganhei imediatamente confiança. Essa prova marcou-me.
Nunca ficou embriagada numa prova?
Não, numa prova prova-se, não se bebe. O essencial é olharmos para a cor, sentir os aromas, na boca perceber a textura e o que ainda perdura de sabores, por isso naturalmente isto são provas profissionais, não se bebe, cospe-se. Quem não é do setor estranha, mas quem é do setor já tem isto muito no seu ADN.
Bebe vinho todos os dias?
Tento não beber, tento guardar-me mais para os fins de semana, mas tenho fases em que isso é mais complicado. De repente desperta uma curiosidade gastronómica e vínica de ir descobrir novos sabores e isso está muito presente à minha volta, por isso às vezes é um pouco difícil dizer que não, pois sou naturalmente muito curiosa. Tento criar regras de forma a não beber todos os dias.
Quando fez 18 anos o seu pai plantou uma vinha com o seu nome. Como reagiu?
Não aconteceu mesmo no dia 26 de agosto, no dia do meu aniversário, foi plantada nesse ano e o meu pai disse-me uns meses mais tarde. Lembro-me que estava a estudar, metida no meio dos livros na biblioteca, estava noutro mundo e essa notícia foi bastante fora da caixa, não dei a devida importância. Não percebi a dimensão de ter uma vinha com o meu nome, que um dia iria dar um vinho com meu nome, e que provavelmente andaria a promovê-lo à volta do mundo. A sensação foi de surpresa, mas à medida que fui trabalhando com o vinho o significado foi-se adensando dentro de mim. A primeira colheita do Vinha da Francisca foi em 2011 e começou a ser comercializado em 2013, precisamente no ano em que eu entrei para a empresa dos meus pais.
Como definiria o Vinha da Francisca?
Se o tivesse que definir numa palavra seria frescura. O Douro é uma região quente, caracteristicamente consegue-se produzir vinhos de muita concentração e essa densidade não é muita amiga da acidez. É preciso acidez para que os vinhos não se tornem pesados. Criar vinhos elegantes no Douro é um autêntico desafio e é uma das nossas principais características na Quinta Vale D. Maria, fazer vinhos harmoniosos e elegantes. O Vinha da Francisca foi plantado de base com castas que vão trazer essa frescura, é um vinho cheio de fruta e com complexidade.
Antes do vinho, o seu percurso começou pela história.
Houve uma altura da minha vida em que queria ser diplomata ou embaixatriz. De alguma forma o vinho dava-me essa capacidade de poder ir à volta do mundo e conseguir estar em contacto com diferentes culturas e com diferentes línguas. Esta parte da comunicação e da aproximação das pessoas sempre foi talvez um dos fatores mais atraentes para mim e não tanto a parte técnica do vinho. A primeira proposta que fiz quando o meu pai me perguntou o que queria estudar, era fazer enologia. A parte da alquimia também me interessava, a mistura, os cheiros e os sabores, sempre me diverti e sempre acompanhei o meu pai nessa parte, mas ele relembrou-me que havia uma parte no mundo do vinho que era contar histórias e saber comunicar. Eu adorava história então fui para Inglaterra estudar e especializei-me no estudo das mulheres no mundo não ocidental, ou seja, qual o papel das mulheres na sociedade e como se pode aprender sobre a sociedade através do papel que a mulher tem.
Hoje faz parte de duas associações femininas ligadas aos vinhos.
Sim, as D’Uva – Portugal Wine Girls, uma associação que envolve oito produtoras de vinhos de várias regiões vínicas portuguesas e que se dedica, desde 2016, à promoção dos seus projetos, e a United Wine Woman, fundada em 2017, cujo objetivo é angariar fundos. Desenvolvi a apetência da visão do mundo através das mulheres já no curso de história, sem saber que o estava a fazer, era uma coisa natural em mim.
Depois do curso voltou para Portugal?
Sim, voltei com 20 anos e estive um ano a trabalhar com o meu pai, viajei para vários mercados onde adorei comunicar sobre vinho. Em setembro o meu pai perguntou-me se queria ir à Califórnia vender vinho. Acho que se ele me tivesse posto as coisas de outra forma, do estilo “queres ir vender vinho?”, eu dizia que não, mas era a Califórnia, acho que toda a gente nessa idade quer ir sozinha à Califórnia. Meti-me num avião e fui lançada aos leões, literalmente, ele não me deu bases para nada. Foi a melhor coisa que ele podia ter feito, pois tinha confiança de que eu ia saber falar o que era preciso.
Não ficou preocupada?
Sim, claro. Só pensava na possibilidade de as pessoas me fazerem perguntas sobre vinho que não sabia responder. O pH, por exemplo, que para mim era um conceito completamente desconhecido, nem sabia a relevância que ele tinha no vinho. O meu pai disse para contar a história que conhecia e foi isso que fiz, contei a história da vindima, de que como é crescer no Douro e vendia quase tudo nas lojas que ia fazer provas, o produto ia esgotando. Claramente tinha algum jeito para aquilo, dava-me muito gozo, nem me lembrava da componente da venda, sinceramente. Estava ali literalmente a divertir-me a contar o meu mundo e partilhar o que sabia. Quando voltei só queria repetir a experiência. Lembro-me que o feedback que deram ao meu pai é que tive imensa capacidade de discursar, explicar e contrapor, se calhar não de uma forma técnica, mas com a sensibilidade que também é necessária no mundo do vinho. Fui ganhando confiança, fiz viagens a Inglaterra, Áustria e Suíça ainda nesse ano, mas não estava ainda disposta a trabalhar a 100% com o meu pai.
Porquê?
Era uma estrutura pequena, não tinha as ferramentas necessárias para sentir que poderia acrescentar valor. Ia depender muito da estrutura para aprender e para me desenvolver. Tinha 21 anos, estava disposta a fazer outras coisas. Fui fazer um mestrado em jornalismo em Madrid, pela comunicação e pela escrita, algo que exercitava bastante.
Como foi essa experiência?
Muito boa. Não percebia nada de espanhol e no início tirava más notas. Lembro-me que uma vez um professor expôs um trabalho meu no meio da aula e tive que engolir em seco, mas depois meti na cabeça que tinha que me superar e no final consegui ter 8 em 10 valores. Gostei muito da vertente de televisão, de ser pivot, do improviso e recordo-me que a meio do meu mestrado disse que nunca mais na minha vida iria pedir um cêntimo aos meus pais.
Porque tomou essa decisão?
Porque achei que eles já me tinham dado tudo o que me poderiam dar, foi um pouco isso que eles me passaram. Nunca me deram um carro, por exemplo, nunca tive esse tipo de regalias. Penso que me deram o melhor de tudo que foi a oportunidade de escolher o que estudar, quando e onde. Quando terminei o mestrado a minha obsessão era arranjar emprego, mas a crise estava instalada e trabalhar em Madrid não foi uma opção. Voltei para Portugal e estive em Lisboa a trabalhar dois anos numa empresa que já não existe, em que desenvolvia conteúdos sobre viagens e hotéis para o online, mas chegou a uma fase em que o trabalho se estava a tornar repetitivo e eu sentia falta dos vinhos e de me estabelecer nesse setor.
Sentiu saudades dos vinhos?
Sim, quando regressei de Madrid tive uma proposta para regressar aos vinhos e não aceitei. Primeiro porque era obrigada a voltar para o Porto e, consequentemente, para casa dos meus pais. Estava há 4 anos fora e ainda queria abrir mais as asas, depois tinha a insegurança da expectativa do que poderiam achar que deveria saber sobre vinho e de saber que não sabia. Essa expectativa pesava-me imenso, tive algum medo. Acho que foi aí que o medo me impediu de fazer qualquer coisa, tinha 22 anos.
Quando desenvolveu finalmente essa vertente?
Tive oportunidade de trabalhar na Bacalhôa, fiquei como relações públicas do grupo que tinha quintas em todo o lado, então tive a sorte de provar vinhos de Portugal inteiro e de conhecer o país através do vinho. Desde pequenina que estudei num colégio inglês, depois fui para a universidade fora, então de alguma forma eu vivi cá, mas sempre com os olhos postos lá fora e este regresso, desta forma, permitiu-me conhecer Portugal de lés a lés. Foi ótimo, deu-me propriedade para falar do meu país, foi importante para ganhar raízes. Estive lá dois anos, mas depois precisei de agarrar o vinho de outra forma.
Como assim?
Uma das componentes das empresas grandes é que divide as pessoas por departamentos e responsabilidades e eu queria estar mais em contacto com o produto e fui à procura dessas oportunidades. Vim embora a uma quinta-feira e sexta-feira fui a uma reunião de trabalho com o meu pai e, naturalmente, pela estrutura ser mais pequenina, estive mais envolvida na parte de enologia e tive mais conhecimento do negócio no geral. Fui para os mercados, ou seja, fui posta no mundo a promover o vinho e sempre foi isso que me deu muita energia. Trabalhar com o meu pai a vários níveis foi incrível, principalmente pela responsabilidade que eu tinha.
Em 2013, quando começou a trabalhar com o seu pai, o Douro já tinha um lugar no mundo. O que faz dele uma região especial?
O Douro é distinto de tudo o resto que existe no mundo. Já viajei bastante, já vi muitas coisas, e nada no mundo existe como o Douro. Não estou a dizer que é melhor ou pior, é mesmo muito diferente. É uma zona montanhosa, com inclinações brutais, e pensarmos que aquilo foi tudo feito pela mão humana é uma obra hercúlea. A extensão tem muita dimensão, é a maior área de vinha plantada em montanha no mundo. Quando comecei a ir para os mercados falar sobre os vinhos houve uma estranheza que comecei a ganhar, que era o facto de estar a falar dessa dureza de trabalhar a terra, mas no entanto estava num hotel de cinco estrelas e a jantar num restaurante de estrela Michelin. Nessa altura disse ao meu pai que tinha que ir viver para o Douro e fui. Vinha ao Porto para ter aulas numa pós-graduação de enologia e vinicultura e depois voltava para lá. Nunca fiz muito trabalho de campo, mas ao menos estava ali, senti os invernos duros, o isolamento. Vivi aquilo, senti que precisei disso para passar a mensagem e conseguir ser autêntica. Odeio a conversa de plástico, isto para mim era fundamental. Eu realmente vivi aquilo de alguma forma, da forma que consegui e que me propus, e ganhei propriedade para falar.
Ser mulher ajuda ou atrapalha nessa missão?
Acho que ajuda bastante ter um vinho chamado Vinha da Francisca. No início sentia que era eu que levava o vinho, agora é o vinho que me leva a mim. Tem muita graça as pessoas descobrirem que a Francisca sou eu, existe esta componente de reconhecimento. Quanto ao facto de ser mulher, nunca fui outra coisa. No outro dia fui a uma conferência em que me perguntaram como era ser jovem e mulher neste negócio. Penso que devemos deixar de responder a essas perguntas porque é nessas perguntas que está a residir a diferença.
Mas o facto de fazer parte de duas associações de mulheres ligadas aos vinhos prova que ainda há necessidade que estas organizações existam.
A United Wine Woman nasce em novembro de 2017 depois do Telmo Alves, da Oeno-Tech, empresa que representa várias marcas, convidar 23 mulheres do setor do vinho para visitar a região de Bordéus, em França. Dessa viajem surgiram amizades e parcerias e todas nos unimos com o propósito de, pontualmente, contribuirmos para causas sociais, através de ações de solidariedade que apoiem instituições carenciadas. Se houvessem homens nessa viagem, eram os homens que provavelmente se iriam organizar. As D’Uva surgem anteriormente a isto, em 2016, porque o mundo dos vinhos estava a mudar a todos os níveis, desde a qualidade do vinho que se estava a produzir, a identidade das regiões que estava a ser comunicada, as histórias por detrás do vinho, o desenvolvimento do enoturismo. Nessa mudança também é visível que nas novas gerações que estão a entrar nas empresas familiares são mulheres que estão a dar a cara pelo negócio. Eu quis fazer parte dessa mudança de paradigma e queria que ficasse registado que isso se estava a passar. Como estudei as mulheres no mundo não ocidental, apercebi-me que um dos grandes defeitos que existiu no mundo e na história sobre as mulheres é o facto de nunca se ter escrito sobre elas. Se tudo correr como tem corrido até agora, nas gerações futuras existirá uma igualdade de perceção e de conhecimento entre géneros.
O universo dos vinhos não é ainda muito masculinizado e até machista?
Acho que ainda vivemos numa sociedade assim, a forma como pensamos sobre nós próprias diz que vivemos numa sociedade assim. Claro que existem pessoas no setor que são reflexo da sociedade, sem dúvida, mas também acho que neste setor já existem mulheres em muitas áreas de negócio e até em áreas de decisão. Acredito que as pessoas estão nas suas posições pelas suas capacidades. Pesou-me mais, e senti mais descriminação, pelo facto de ser filha de um produtor do que por ser mulher. Dou um exemplo: queria um estágio numa revista de vinhos em Londres e o meu pai ia enviar um e-mail a pedir que eu ficasse com o lugar. Pedi-lhe para não o fazer, pois não queria ter vantagem sobre as outras pessoas. O meu pai disse-me para nunca considerar o facto de ele estar no mundo dos vinhos uma vantagem, até porque isso pode ser uma grande responsabilidade. E é verdade, há uma expectativa e uma exigência muito maiores. Quando não se tem ligação nenhuma aos negócios em que se vai participar não há expectativa nenhuma, temos que fazer todo o caminho. Aqui já existe o caminho traçado, temos que igualá-lo ou superá-lo, pelo menos essa foi sempre a intenção. O meu pai esteve ligado a todas as áreas de negócio, nele está uma vontade imensa de ver o Douro a tornar-se umas das principais regiões vinícolas do mundo, a par de Bordéus, Champagne ou Borgonha.
Sente que o seu pai fez parte dessa mudança?
Sem dúvida nenhuma. Continua a ser uma inspiração, a nossa convivência cria um conflito saudável. A separação da relação profissional e pessoal por vezes não é fácil, mas tem que se impor esses limites. Tenho que me lembrar que ele é uma chefia, e por isso devo saber como lhe apresento as minhas ideias ou soluções, mas depois há minha relação de filha, onde lhe conto as minhas partilhas e os meus medos. Isso vai muitas vezes tudo embrulhado e diluído. Estranhei quando percebi que a nossa relação de pai e filha estava transformada noutra coisa. Hoje em dia está tão interligado que já não me faz confusão, até gosto. Continuar a trabalhar com o meu pai mantém-me ligada ao negócio de uma forma emocional.
Que valores é que ele lhe passou que considera fundamentais?
A dedicação dos meus pais ao Douro, mais concretamente ao projeto da Quinta Vale D. Maria, é uma influência brutal. Construíram um projeto que se tornou numa das principais referências na região e fizeram-no de uma maneira muito pessoal, em que houve muita entrega, muita dedicação, muitos sacrifícios. Senti muito a ausência deles ao longo da vida, embora tivéssemos a sorte de estar todos envolvidos, pois conseguíamos ir com eles para o Douro. Foram um exemplo de perseverança, de consistência, de lealdade, tudo valores que são fundamentais para a minha vida e que me fazem pensar que apesar de não ter imaginado dedicar-me a isto tantos anos, hoje não me vejo a fazer outra coisa.
Porque se emocionou quando falou de lealdade?
Para mim é um dos principais pilares das relações humanas, sejam elas quais forem, e que é muito pouco trabalhada e por vezes não é respeitada. Nós falamos muito de amor, que é sem dúvida aquilo que nos faz mexer, respirar e viver, uma espécie de oxigénio, mas são precisas florestas para o oxigénio existir, e a lealdade para mim são essas florestas. Vivemos muito hoje em dia esse conceito da rapidez, da fome da ambição, da vontade de fazer e isso faz-nos destruir aquilo que tem naturalmente existir. Quando vejo esses valores ainda a existirem, emociono-me. Vivi isso diretamente com os meus pais em muitas alturas da minha vida, não só por ser filha deles, mas também por trabalhar com eles.
Numa empresa familiar têm de existir sempre elementos da família?
Quando se comunica uma empresa familiar tem que se ter um membro da família a trabalhar indiscutivelmente. Uma empresa familiar a nível acionista sem ter ninguém a dar a cara pela empresa é estranho, não cria interesse.
Porque é tão importante o vinho ser comunicado?
Há um produto objetivo que é uma fermentação de uvas, depois o que o diferencia é a sua qualidade, os perfis aromáticos e as sensações que nos provocam, mas isso depois é o gosto de cada um. O que nos liga ao vinho é a história das pessoas que existem atrás do vinho e que vivem o vinho. A parte humana é muito importante para criar essa empatia.
O que atrai as novas gerações ao vinho?
Neste mundo digital em que estamos a criar camadas de distância, do toque e do que é real, o vinho mantém isso 100% vivo, pois existem pessoas ligadas a um produto. São as pessoas que contam a história do vinho e promovem-no, isso cria relações reais e únicas.
Acha que, de alguma forma, o vinho está na moda?
Gosto de pensar que existe muita gente a consumir vinho porque já faz parte dos gostos que têm na vida, que não é só um produto da moda. A moda vai e vem, tem coleções e estações. O vinho já esteve muito entranhado na vida das pessoas, fazia literalmente parte da refeição, mas depois esta profissionalização e melhoramento do produto criou-lhe outra dimensão.
O rótulo, o preço ou a forma da garrafa pode definir um vinho?
Claro que isso é perigoso. A quantidade de premium ou special selection que existem por aí se calhar isso não reflete o que está escrito no rótulo. Há formas de tentar convencer que depois não estão refletidas no produto, mas no geral quem tem atenção ao detalhe, quem convida um artista para fazer um rótulo, quem aposta numa garrafa ou numa caixa diferente, pressupõe que o vinho também está pensado da mesma forma. Por isso não está completamente errado julgar o vinho pela capa, pode não correr muito bem, mas não há nada como abrir uma garrafa e provar.
Entre tantas viagens para conhecer novos mercados, qual foi a história mais engraçada que já viveu?
Recordo-me que numa prova que fiz a vinhos chineses senti um odor a urina muito forte num dos vinhos e no fim acabei por comentar isso com um desconhecido, que depois fiquei a saber que era o distribuidor desse mesmo vinho. Foi super constrangedor. Lembro-me também de uma visita que fiz a Fall River onde tive um público muito complicado. Acho que não sabiam exatamente para o que iam, aquilo era um jantar vínico com explicações sobre vinhos, ou seja, uma coisa prolongada. A meio do jantar estavam a encomendar pizas, um deles tinha acabado de sair da prisão, não foi um público propriamente fácil. Percebi que não valia a pena estar com o microfone à frente a falar sobre castas, então lancei um concurso, género show woman, em que no fim quem soubesse responder corretamente a uma pergunta eu oferecia uma garrafa de vinho, um Tawny 20 anos. Assim consegui agarrar a atenção.
Lembra-se qual foi a pergunta?
Quantas castas tinha o Vale D. Maria? 41, era a resposta correta.
Como são os seus dias?
Não tenho propriamente uma rotina e gosto bastante disso. Gosto que cada dia seja diferente e de conhecer pessoas diferentes todos os dias. Não tenho tempo para ir ao ginásio ou de criar a minha rotina alimentar, que são coisas fundamentais para a saúde, mas os meus dias em geral dividem-se entre a Quinta da Aveleda, em Penafiel, a Quinta Vale D. Maria, no Douro, Porto, Lisboa ou os principais mercados internacionais. Neste momento sou brand manager da Quinta Vale D. Maria e desenvolvo a comunicação, o marketing, novos packagings, a estratégia, o posicionamento, e faço a gestão da marca. Já tive mais envolvimento na parte da enologia, hoje em dia tenho um bocado menos, mas não me afasto totalmente do vinho, particularmente da parte em que eu mais gosto que é a parte da prova e de definir lotes. Basicamente trabalho como embaixadora da marca, andando à volta do mundo a fazer provas de vinhos, jantares vínicos, apresentações, masterclasses e formações.
Com a compra da Aveleda, as suas funções mudaram?
Em termos de gestão de marca é um trabalho muito mais profissionalizado. Neste momento estamos a olhar para a estratégia da marca Quinta Vale D. Maria e a estudar mudanças que vão aproximar a marca do consumidor, fazendo-o entender as diferentes gamas e a nossa filosofia. Agora dentro da Aveleda estamos a desenvolver mais embaixadores e isso está a ser super desafiante, trazer novas pessoas para a marca e ainda por cima de uma forma tão dedicada. Comecei a ter a responsabilidade da comunicação institucional, que passou a ser um projeto a longo prazo. Em 2020 a Aveleda completa 150 anos e na celebração dessa efeméride a parte institucional terá algum peso. Estou também a desenvolver uma nova marca da Bairrada que se chama Quinta da Aguieira.
O que nos pode adiantar mais sobre o futuro?
Lançamos este mês o Quinta Vale D. Maria Porto Vintage 2017, um novo conceito no vinho do Porto. Posso dizer que vai surgir um projeto colaborativo dentro do portfólio da marca com pessoas ligadas ao vinho, às artes e à gastronomia. Será um vinho novo, engarrafamos 500 unidades em 2012, estamos a prová-lo de ano a ano, à espera pelo momento certo para ser lançado. Não conseguimos antecipar esse momento, mas também não estamos com pressa. No vinho não se pode ter pressa.