Odeia chegar tarde aos compromissos e também não gosta de esperar. Raramente tira férias e à mesa troca o sal por especiarias e dá lugar à fruta em vez dos doces. Também não fuma, mas nem por isso espera chegar aos 100 anos. Para os 70 já não falta muito e quando isso acontecer, em outubro deste ano, será hora de despir o fato de diretor-geral de saúde, que veste há quase 12 anos. Diz que não sabe o que vai fazer a seguir, mas não descarta a entrada na política.
Francisco George recebeu o Observador no seu gabinete na Direção Geral de Saúde, em Lisboa, e falou-nos dos tempos de menino e das brincadeiras no Jardim da Parada, em Campo de Ourique, onde cresceu, dos amigos Presidentes, e dos cinco minutos que o separam do seu irmão gémeo, que foram suficientes para o colocar sempre em segundo lugar na hora de escolher e de falar.
Da ida para Medicina, à escolha da especialidade de Saúde Pública, de Cuba (do Alentejo) à China, da Guiné Bissau ao Senegal roda a conversa. Pelo meio, histórias com leões, golpes de Estado e a descoberta da Sida e do VIH (vírus da imunodeficiência humana).
O diretor-geral de saúde garante que não é teimoso e que dá até, muitas vezes, o braço a torcer. E é na leitura e no cinema que busca o prazer para lá do trabalho, não esquecendo os netos. Para esses “é suficiente olhar”.
Por fim, os sonhos que o “ajudam muito a relembrar, a reviver e a matar saudades” da filha e da mulher, que perdeu num trágico acidente de carro em 2006.
São 12h10 e a entrevista estava marcada para as 11h30. Começo mal, parece-me. Ouvi dizer que dá muito valor à pontualidade.
Sim. É uma questão cívica, de simpatia. Não gosto de fazer esperar outros. Chegar tarde a um encontro, chegar tarde ao cinema, chegar tarde a qualquer reunião, é desagradável. É um valor que me foi transmitido pelo meu pai e que eu cultivo e faço cultivar a quem depende de mim.
Terá a ver com o facto de ter ascendentes britânicos? A chamada pontualidade britânica?
Seguramente que sim. Essas regras eram tidas em minha casa como exemplares, como modelo de correção, de educação e naturalmente não é bom chegar tarde nem fazer esperar outros.
Mas nasceu e cresceu em Campo de Ourique. Diz que as pessoas que residem em Campo de Ourique desenvolvem “um sentimento de cidadania particular e uma maneira de estar e de compreender a cidade diferente”. Que sentimento particular e que maneira de estar de forma diferente são estes?
É um sentimento distinto. O bairro é muito especial. É um bairro grande, sobretudo destinado à classe média composta por funcionários públicos, advogados, médicos. Foi desenhado, em termos urbanísticos, ainda durante a Monarquia, mas as ruas terminaram, quase todas, durante a República. E por isso os nomes de cada uma das ruas são dedicados a Republicanos. Mas, mais do que isso, Campo de Ourique é um bairro completo.
Como assim?
Tem tudo. Tinha cinemas, dos primeiros cinemas — o primeiro Cinema Europa — muitas lojas e todos os equipamentos necessários. Parques, jardins, o famoso Jardim da Parada, os carros elétricos. Tinha imensa vida.
Costumava ir brincar para a rua?
Sim, sobretudo quando era mais novo. As minhas primeiras memórias estão centradas no Jardim da Parada a andar de triciclo, teria três ou quatro anos. A primeira casa dos meus pais era exatamente na 4ª Infantaria, por cima da Farmácia Castro Fonseca. Mas, aos quatro anos, o meu pai mudou de residência, uma vez que a minha mãe esperava a quinta criança, a única menina. E mudámos para a Rua Coelho da Rocha, que tem um significado especial para nós, porque era aí que o meu avô inglês vivia com a família principal, o núcleo paterno. A Coelho da Rocha é uma das ruas fantásticas de Lisboa. Tem o mercado, cruza a Ferreira Borges e vai até à Silva Carvalho. Estes cruzamentos sucessivos dos quarteirões de Campo de Ourique têm todos eles um dado especial porque há sempre alguém amigo ou de família que ali morava ou mora. Há uma carga afetiva. Campo de Ourique é uma emoção.
Falou da Farmácia Castro Fonseca. Essa farmácia diz-lhe muito?
Muito. Porque era no rés-do-chão e nós morávamos logo por cima. Muitas vezes fazia compasso de espera na farmácia. Entrava pelo balcão ia lá para trás. O farmacêutico, Dr. Castro Fonseca, era um Republicano de 1913 que se estabelecera ali. Tinha um ar de sábio e usava aquela balança de precisão. Tudo aquilo parecia fantástico. Era um fascínio. As imagens de dele a preparar os medicamentos e depois o funcionário do balcão, que era o senhor Palhinhas, a descodificar a letra dos médicos que bem conhecia e a dizer qual a preparação que tinha uma determinada composição. O Dr. Castro Fonseca, minuciosamente, lá preparava os medicamentos, as soluções, os cremes e as pastas e pomadas e tudo aquilo naqueles frascos coloridos, com tampas diversas. Enfim, era um fascínio muito grande.
No site que alimenta com memórias suas conta como o seu pai, à mesa, ia perguntando a cada filho, por ordem de idade, o que tinha feito durante o dia. Teve uma educação muito rígida?
Era uma educação austera, exigente, mas depois vim a perceber que naquele tempo fazia sentido. Se bem que também tenha na minha memória o pensamento de “quando chegar a minha vez, quando for eu a fazer aquele papel de chefe de família, terá de ser diferente”. Mas, apesar de algumas diferenças, mantive o costume de fazer algumas perguntas à mesa. E hoje faço o mesmo com os meus netos, telefono, e pergunto.
Então em que é que se diferencia do seu pai?
É tudo mais livre. Com menos rigidez, menos rigor. Se bem que é importante saber estar à mesa durante uma refeição. A televisão está sempre desligada.
E nada de telemóveis.
Isso é inadmissível, se bem que seja muito difícil hoje tirar um telemóvel ou um tablet aos netos. É quase impossível, porque fazem aquela chantagem do choro. Mas consegue-se.
De que forma o marcou o facto de ter tido um irmão gémeo?
Ele é mais velho cinco minutos. E na ordem de falar, do mais velho para o mais novo, ou do mais novo para o mais velho, vinha sempre a questão dos cinco minutos. Ou até para andar de carro, quando a minha mãe não ia, queríamos ir os dois à frente. Mas o mais velho, nesta linhagem inglesa, sobrepõe-se sempre a quem nasce depois.
Mas de que forma isso o marcou?
Submetia-me sempre à decisão do meu irmão. Estava sujeito ao segundo lugar. Se era preciso ir comprar o jornal, o meu pai pedia e o mais velho tinha prioridade em dizer se estava disponível ou não. Portanto o mais novo ia fazer esses serviços.
E isso originava zangas entre vocês?
Nunca. Porque era uma regra que sabíamos que tínhamos de observar. Era indiscutível, era um princípio.
Vocês eram iguais, certo?
Éramos iguais, como duas gotas de água. Tínhamos a mesma aparência em termos físicos, não nos distinguíamos ao espelho. Quando estava com ele ao espelho, com a minha mãe no meio, tinha de fazer um sinal para dizer quem era. Era muito difícil a distinção. Certos amigos muito próximos diziam que sabiam distinguir, mas isso muitas vezes não correspondia à verdade. Como sabe, gémeos idênticos têm o mesmo ADN, as mesmas impressões digitais, são indistinguíveis.
E houve situações caricatas?
Há muitas. Estas histórias dos gémeos são famosas. São todas idênticas em todo o lado. Mas nós pensamos ter descoberto a certa altura, já tínhamos 25 anos, uma fórmula absolutamente geradora de confusões imensas. Que era, ao contrário do habitual, continuarmos a conversa quando alguém se enganava. Claro que ao fim de pouco tempo a confusão era imensa. Foi uma combinação que fizemos e deixámos de dizer “não é comigo é com o meu irmão”. Então recebíamos os recados, as recomendações, os conselhos, sem dizer nada.
E com as namoradas?
Naquela fase, nos 14 ou 15 anos, também era fácil enganar namoradas, sobretudo quando não sabiam. E lembro-me até de ter acabado o namoro em nome do meu irmão com uma namorada, porque o meu irmão tinha problemas de timidez, não estava disponível para dizer. E eu disse, então deixa estar que eu trato do assunto.
Fez-lhe o favor.
Fiz-lhe esse favor [risos]. Essa história é de facto magnífica.
A relação que tem com o seu irmão é especialmente forte? Mais forte do que com outro irmão?
É incomparável. Falo com o meu irmão gémeo duas, três, quatro vezes por dia e com os outros passam-se semanas sem falar.
Aos 15 anos o seu pai decidiu separar-vos e o seu irmão foi para Inglaterra. Porque é que isso aconteceu?
O meu pai convenceu-se de que seria mais fácil fazer a fase final do liceu e a universidade separados. Para ele, o facto de estarmos sempre juntos e nenhum de nós fazer nada só era mau. E separou-nos. Hoje penso que terá sido um erro educativo.
Na altura custou-vos muito?
Custou bastante. Depois, o meu irmão, por não ter cumprido com os deveres militares, deixou de poder vir a Portugal. Só veio depois do 25 de Abril, portanto era eu que ia a Inglaterra, com muita frequência.
E teve pena de não ter ido você?
Olhe, nunca pensei nisso. É a primeira vez que me colocam essa questão. Mas eu estava bem. Estava bem em casa dos meus pais, no liceu e fiz a universidade bem.
Optou por seguir medicina. Porquê? Foi uma imposição do seu pai, que também era médico e diretor dos Hospitais Civis de Lisboa?
Foi uma escolha. E tinha a figura do meu pai, que naturalmente admirava, e um tio muito próximo que era arquiteto. Entre arquitetura e medicina escolhi medicina.
E porquê a especialidade de saúde pública?
Porque me interessei pelo conjunto dos problemas na população em geral. E também porque saí do Hospital de Santa Marta, do serviço de Medicina Interna. O meu pai era o diretor e não me agradava a relação pai e filho, filho e pai. Um interno, o outro diretor. A relação não era muito saudável.
Mas havia constrangimentos?
Havia. Não era a mesma coisa, a exigência era outra. E tinha de escolher uma especialidade totalmente distinta, sobretudo, para não magoar o meu pai. Não podia ir para medicina interna de outro serviço. Então vim aqui a esta sala, onde estou, e estava aqui um amigo do meu pai e um amigo também meu, pai dos meus amigos [Jorge Sampaio e Daniel Sampaio]. O Professor Arnaldo Sampaio era Diretor-Geral de Saúde. Disse-lhe que precisava de ir para uma especialidade diferente, que a saúde pública me interessava e que gostava de saber qual o percurso, o itinerário, as etapas. E ele disse-me logo que era simples, que podia ser nomeado delegado de saúde em regime provisório e depois para estar muito atento e concorrer. E assim foi.
Foi para Cuba do Alentejo.
Onde fui cinco anos delegado de saúde, em 1975. Teria 25 ou 26 anos. Correu bem.
Depois Beja e depois África. A pergunta é: o que o levou a África?
África segue-se à China. Primeiro estive na China a convite da Organização Mundial de Saúde (OMS). Fui fazer um trabalho de análise de saúde materno-infantil na China. Estávamos na transição da revolução cultural. Estive com o Mao Tse Tung a meio metro de distância, embalsamado, com aquela famosa expressão dele. E estive aí a fazer esse relatório com outros colegas e correu bem. Depois ofereceram-me a possibilidade de trabalhar para a OMS nessa região — região do Pacífico Ocidental — e pensei na minha mulher, nos dois filhos que tinha muito novinhos. Manila era muito longe, com muito poucos portugueses, mal servida em termos de voos e tinha muitas catástrofes. Depois falaram em Brazavile, no Congo. Isso já era diferente. Tinha um voo direto da TAP, era mais próximo, não tinha o problema das catástrofes. Tinha riscos de natureza própria de países tropicais, mas aceitei o posto. Fui colocado primeiro em Bissau, depois percorri vários países e o último posto foi no Zimbabué. Entretanto acabaram as minhas licenças.
E foi com a família?
Sempre.
Quer contar algum episódio caricato?
Há muitos. Mas lembro-me de um episódio com graça, autenticamente verdadeiro. Estava no carro com a minha mulher e os meus filhos, que levavam um primo para passear, e um deles diz para o outro. “Olha ali o leão!”. Olhei para o leão e caí num buraco e era preciso pôr o macaco para tirar o carro do buraco. E quem é que ia sair com o leão ali perto? Então lá resolvi. Janelas todas fechadas, disse ao meu filho para estar atento. Enfim, um bocado infantil. A minha mulher aos gritos e a minha outra filha também. Mas tive de pôr o macaco, senão tinha de ficar ali. Era um leão enorme, mas pachorrento. Eu media sempre a distância a ver se conseguia ir para dentro do carro. Lá dentro, o leão não teria hipótese. Bem, ficaria sem o carro. [risos] O meu filho mais velho, o Gonçalo, conta muito bem esta história, com pormenores. Ele teria a caminho de 10 anos. Eu não tenho a graça que ele tem a contar.
Entrou em pânico?
A gente tinha de sair dali e o carro estava atascado num buraco. Estávamos no meio do mato, mais mato que possa imaginar. Era no interior do Senegal. Íamos a caminho do hotel.
E alguma vez esteve numa situação de perigo?
Isso não, mas assisti a golpes de Estado. Uma vez estava numa esplanada no Hotel 24 de Setembro, [em Bissau], com os portugueses, à mesa do café. Eram umas 22h00. Dia 14 de novembro de 1980. Entra uma brigada de revolucionários, monta uma metralhadora no meio da esplanada, estava tudo de braços no ar e vem o empregado de mesa explicar: “Senhor, faça a revolução mas há aqui um problema: eles não me pagaram”. Então eles disseram: “Baixem as mãos, paguem os cafés e voltem a levantar as mãos”. Veja lá bem este episódio. [risos]
Em temos profissionais, esse período foi muito enriquecedor certamente.
Sim, foi muito importante, porque em 1980 surge, pela primeira vez, uma síndrome (Sida) e nós percebemos que havia ali um problema de imunidade, mas ninguém sabia o que era. Nesse ano, seis adultos morreram com diarreia crónica e habitualmente os adultos não morrem disso. Depois, apareceram quadros graves de doenças que não faziam muito sentido. Foram precisos três anos para um francês ter descoberto que o vírus invadia as células do sistema imunitário e o pessoal ficava sem proteção e todas as doenças surgiam com quadro especialmente grave. Esse vírus começou por se chamar LAV (vírus associado à linfadenopatia) e só em 1985 passou a chamar-se VIH (Vírus da Imunodeficiência Adquirida). Mas os primeiros anos foram muito difíceis, pois não se sabia qual a etiologia. Percebemos pela primeira vez que o agente que provocava a doença não era transmitido por mosquitos, porque analisámos a frequência daquela síndrome junto aos lagos e longe dos lagos onde havia menos mosquitos e percebemos que não havia diferença na frequência dos casos. Isso foi motivo para fazer uma festa, porque faz toda a diferença. Se fosse transmitido por mosquito queria dizer que era inevitável. Agora, a grande lição é outra: nós não estávamos preparados para a ocorrência de um fenómeno inesperado.
Findas as licenças, em 2001 chega à Direção Geral de Saúde (DGS).
Chego em 2000. Iniciei os meus trabalhos numa divisão de saúde ambiental.
E em 2005 assume o papel de diretor-geral. Em outubro deste ano, passados 12 anos, abandonará o lugar por força da lei pois completará 70 anos. Se não fosse por isso continuaria como diretor-geral?
Não posso responder com honestidade, porque sempre soube que aos 70 anos os funcionários públicos abandonam funções. Nunca imaginei isso não acontecer. Considero que a lei é justa. O avô da minha mulher presidiu a uma empresa até aos 90 anos e ninguém o conseguiu tirar antes, porque simplesmente ele não queria e era o dono. Mas isto aqui não é a empresa do avô nem a empresa de ninguém. É uma empresa de todos os portugueses. E concordo com a lei, porque é preciso renovar. Fazer com que outros percorram um caminho até ao topo, inovar em todas as dimensões, novos conhecimentos, novas responsabilidades, novos tempos. Portanto, é bom sair e é bom que venham outros.
Resistiu a vários governos, de várias cores, e vários ministros. Com qual gostou mais de trabalhar ?
Isso nunca respondo. Costumo dizer que nunca fiz uma grelha de avaliação de ministros. Pode ser que um dia a faça, mas o que lhe posso dizer é que trabalhei bem com todos, sem nenhum problema. Comecei no governo de António Guterres, depois veio Durão Barroso, depois Santana Lopes, depois duas legislaturas com José Sócrates, a seguir dois governos de Passos Coelho e agora com António Costa. Lidei bem com todos os ministros, porque eu é que tenho de me adaptar a eles, não eles a mim. Portanto, conhecendo o estilo, o perfil, adaptei-me e nunca tive problemas. Às vezes houve divergências mas sem grandes problemas.
Sente que falhou em algum momento?
Isso não, porque se isso tivesse acontecido não estaria aqui de certeza. Sou daqueles que cultiva a responsabilidade pela condução dos programas, pela condução das iniciativas, e se considerasse, alguma vez, que tivesse havido uma falha, teria apresentado imediatamente a minha demissão. Mas demissão no sentido de ir embora, não era demissão para ficar.
E o que é que se segue depois da DGS?
Não sei o que é que se vai seguir. Sei que não poderei trabalhar para a Administração Pública.
A política está nos seus horizontes?
Não posso dizer que não. Gosto de política em termos sociais, de pensar a sociedade, na melhoria das condições de vida da população. Costumo dizer que os políticos têm que se ocupar sobretudo dos mais desprotegidos, dos mais pobres, das desigualdades, das iniquidades e há muito para fazer nesse campo. Mas também reconheço que nos últimos anos tem havido um desencanto, que se compreende, porque os diferentes órgãos de soberania, os quatro, não terão interpretado devidamente o sentimento dos cidadãos.
Fruto da crise?
Não. A crise não pode explicar tudo. Falei propositadamente nos quatro órgãos de soberania, porque não é só uma questão de Governo, nem só do Presidente, nem da Assembleia da República, mas sobretudo dos tribunais. Há algum português satisfeito com o regime de trabalho dos tribunais? Há algum? Enfim, há, mas excluindo aqueles que se servem desse regime, os portugueses não percebem a lentidão da justiça, como não percebem determinadas questões discutidas em público, aliás. Há aqui um desencanto e é preciso relançar o interesse geral pela política.
Tem vários amigos políticos. Foi colega de escola, por exemplo, do atual Presidente da República.
É verdade, mas há mais. O Presidente Jorge Sampaio, com quem lido desde os 12, 13, 14 anos de idade.
Foram colegas de escola?
Não. Mas tenho um irmão que é exatamente da idade dele e frequentava tertúlias com ele, em Campo de Ourique, nos cafés do Jardim da Parada. E lembro-me perfeitamente de estarmos envolvidos nas discussões dos movimentos estudantis. Participei em 1962/63 na recolha de fundos para o Jornal República, para ter uma rotativa nova. Terá sido o meu primeiro ato político: recolher fundos para o jornal República, o jornal da oposição.
Mas de Marcelo Rebelo de Sousa foi colega de escola, certo?
Fomos colegas no banco da escola primária, no Lar da Criança, uma pequena escola laica que não obedecida àquelas normas antigas do governo de então. As salas não tinham nem a fotografia do Presidente do Conselho, nem do Presidente da República, nem o crucifixo. Era um ambiente livre. Nasceram ali associações de estudantes. Os alunos organizavam-se em pequenos grupos associativos.
E quem os liderava?
Eram quatro ou cinco grupos associativos, cada um deles tinha um presidente e um tesoureiro. Era uma escola muito singular, muito avançada para a época.
Marcelo Rebelo de Sousa liderava algum dos grupos?
Sim, liderava. Ele era já na altura diferente. Destacava-se pelo brilhantismo, se quiser. E pela forma como sempre lidou com os estudos, com as relações sociais. Sempre foi brilhante. Depois voltei a vê-lo na faculdade. E de quando em quando encontrávamo-nos e sempre fomos próximos no sentido de nos reconhecermos e de nos lembrarmos do Lar da Criança. Marcelo Rebelo de Sousa, como imaginei, tem sido um excelente Presidente. Era preciso ter este Presidente.
Mas o Presidente Marcelo é o Marcelo Rebelo de Sousa que conhecia?
É ele. No período em que foi presidente do PSD, na oposição, não era. O verdadeiro Marcelo Rebelo de Sousa é agora. É aquele que não depende de mais ninguém, não está amarrado a colégios, a acordos com outros partidos, aquelas amarras próprias do esquema partidário que não permitiam a libertação do pensamento dele. Este Presidente é Marcelo Rebelo de Sousa e traduz na prática aquilo que ele pensa: o apoio da doutrina social da Igreja, o apoio aos excluídos, os afetos.
O Doutor Francisco George também é um homem de afetos?
Sim. Não posso exibir como ele exibe, claro, mas percebo muito bem esse rumo.
Manifesta-o junto dos mais próximos.
Sim, não podemos ser frios perante os mais vulneráveis, os excluídos, os pobres, aqueles que não têm futuro. Vi isso muito bem na China, depois em África, mas o desemprego e a pobreza são particularmente marcantes para mim. Costumo dizer que estar três meses sem salário deve ser um inferno. Isto é o que mais me preocupa em termos sociais. E a verdade é que muitos dos portugueses estão desempregados, e famílias inteiras, às vezes. É uma situação que me preocupa.
https://www.youtube.com/watch?v=4SmguKbTs9g
“A love like ours never dies”. Foi esta frase que pediu para inscreverem na campa da sua mulher e da sua filha mais velha.
Sim. É de uma canção dos Beatles e essa expressão diz que o amor para quem fica não morre.
Ia perguntar-lhe isso. Passados 11 anos do trágico acidente como está esse amor? Ainda está vivo?
Nunca morre, como aí está escrito.
E como se supera a dor?
Há mecanismos próprios para isso. Os sonhos ajudam muito a relembrar, a reviver e a matar saudades. Mas marca.
Mas como é que se supera?
Com força. Isto tem de ir tudo para a frente. A vida continua.
E voltou à Aldeia da Luz depois disso?
Voltei ainda há relativamente pouco tempo e falei com o presidente da Câmara. Foi uma visita com emoção, porque ele depois falou-me daquilo que os habitantes da aldeia ainda dizem. A minha mulher costumava dizer: “Isto é pôr patins na aldeia e andar cinco quilómetros”. A minha mulher era a arquiteta responsável pela coordenação da reinstalação da nova Aldeia da Luz. Uma vez chegou-me a casa e contou-me uma situação que nunca mais esqueci, porque achei fascinante. Recebeu uma pessoa mais rica que disse: “Oh arquiteta Maria João, agora tenho uma casa igual à D. Mariana que foi minha empregada a vida toda. Como é que pode ser?”. E os arquitetos não tinham pensado nessa questão. Resolveram estas questões com parapeitos, garagens maiores e mais pequenas, mas foi um processo difícil.
Há pouco tempo perdeu também uma tia-avó, com 111 anos. Também espera viver até aos 100?
Não. Não espero nada. Espero viver aquilo que estiver inscrito não sei onde. E morrer tranquilamente.
Tenta levar uma vida saudável?
Sim, não faço exageros, mas não sou radical. Tomo medicamentos preventivos. O pessoal da minha idade toma aspirina, tem cuidado com o colesterol, controla-o quimicamente, que não faz mal nenhum.
Mas ouvi dizer que tem muito cuidado com o sal e o açúcar. Nisso é radical?
À minha mesa no lugar do sal tenho muitas ervas aromáticas. Sou grande consumidor de cebolinho e manjericão. Os portugueses ingerem o dobro do sal do que deviam ingerir. Temos um consumo de 10,3 gramas por habitante e devíamos ter um consumo de 5 gramas. O sal é um drama, porque é o sal que provoca a hipertensão arterial e nós não a sentimos, mas ela atinge mais de 40% dos portugueses adultos. E a hipertensão está ligada a acidentes vasculares sejam no cérebro – os AVC – sejam no coração – o enfarte.
E em relação ao açúcar?
Isso, desde sempre. O antigo diretor-geral de saúde Arnaldo Sampaio, em 1975, mandou escrever aqui no nosso restaurante a frase “Prefira fruta à sobremesa” e como ele almoçava lá em cima o pessoal não comia o pudim flan nem a mousse de chocolate. Só fruta.
Come muitas vezes no gabinete. É porque trabalha muito?
Não. Considero que trabalho o normal. Realmente tenho um problema de não fazer férias. Faço muito poucas férias, mas quando as reuniões estão marcadas para as 14h00 e acabo as minhas coisas por volta da uma prefiro usar esta mesa e comer aqui.
Disse-me que em relação ao sal e açúcar é um pouco mais radical. E em relação ao resto?
Não fumo e, curiosamente, não posso ver fumar. Faz-me impressão. Faz-me confusão como é que as pessoas fumam sabendo, comprovadamente, que encurta a vida. Não sei se sabe que há um estudo que comprova que os fumadores têm probabilidade de viver sempre menos 10 anos do que os não fumadores.
Mas nunca fumou?
Fumei durante a faculdade. Moderadamente, sempre, mas fumei. Deixei de fumar em 1974.
É pessoa de dar o braço a torcer?
Em conversas de trabalho, de princípios de trabalho, sou. E dou muito, quando percebo que não tenho razão. Aliás, penso que é uma das minhas características de liderança: não ser teimoso, não impor a minha vontade. Cedo muitas vezes, as minhas colegas subdiretoras gerais podem testemunhar. Muitas vezes mudo de opinião em função de explicações e da comprovação de outras soluções. Tanto, que as decisões são tomadas ouvindo todas as partes, e costumo, aliás, recomendar aos diretores que nos conselhos científicos dos respetivos programas tenham escolas diferentes aí representadas e não se rodeiem de amigos.
Para terminar: o que faz, para lá do trabalho, que lhe dê prazer?
Cinema e literatura.
E os netos?
Ver os netos. Estar com eles o mais possível, é verdade. É suficiente olhar. Vê-los andar para a frente e para trás, as correrias, as zangas. Tenho imenso prazer nisso. Mas também aproveito para estar com eles e ler o jornal ou um livro. E vou vendo. Às vezes estou a escrever, mas é um prazer.