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Fui ao melhor restaurante do mundo e não gostei das lentilhas

Chama-se Osteria Francescana e fica em Modena, Itália. O chef Massimo Bottura não estava mas os milagres dele apareceram todos, apesar daquele pequeno momento de dúvida.

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À saída da Osteria Francescana, depois de uma refeição que é bem mais que isso, o visitante leva uma garrafinha de vinagre balsâmico para casa. Não é um vinagre qualquer, tem no rótulo o nome do chef da cozinha, Massimo Bottura. É uma amostra da produção do homem e é o que se costuma chamar de “miminho”. Ora bem, uma certeza que aqui deixo, apesar da pouca legitimidade que tenho para fazer julgamentos nestas coisas da comida: o cliente nem repara que leva uma prenda para casa. Está demasiado ocupado a tentar perceber o que aconteceu nas últimas quase quatro horas para dar importância a uma coisa que serve para temperar. Está preocupado apenas com o estaladão gastronómico que acabou de levar.

Mas porquê ir à Osteria Francescana, um restaurante italiano que fica à distância de, pelo menos, um voo de três horas (mais coisa menos coisa) e um comboio? Fácil: porque só se vive uma vez e este é o melhor restaurante do mundo, eleito este ano pelo júri patrocinado pela San Pellegrino, depois de ter sido o protagonista da primeira temporada da série documental “Chef’s Table”. “Então mas e isso não é caro?” Claro que é, mas essa não é a questão. A verdadeira questão é descobrir se vale a pena o investimento. Meus amigos, para responder a isso comecemos pelo princípio para que estejamos todos sintonizados — e há aqui muitos detalhes a ter em conta. Já agora: o menu de degustação custa 250 euros. Sim, por pessoa. E não, não inclui bebidas.

Primeira parte: a reserva

Isto começa no princípio e no princípio era a reserva. Marcar uma mesa é importante, sobretudo quando o restaurante fica uns quantos países ao lado. E é também importante para o próprio restaurante, porque a lista de espera para conseguir um lugar é gigante e desperdiçar cadeiras é má política. Daí que a Osteria Francescana siga o seguinte método: de dois em dois meses, o site abre o sistema de reservas para daí a três meses, disponibilizando marcações para os 60 dias seguintes. Ou seja, a 1 de dezembro próximo será possível reservar lugar (ou vários lugares) para março e abril. Parece perfeito mas é horrível e doloroso.

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As reservas estão disponíveis a partir das 09h00 mas se por acaso não conseguir aceder ao site durante uns bons 20 minutos é porque está tudo normal e as marcações estão a acontecer. Provavelmente não estão é acontecer para si. Foi exatamente isso que pensei: “Isto não está a acontecer para mim”. Fui à minha vida, tratei de coisas e voltei para um “refresh” confiante. E ali estavam os calendários, 60 dias à minha frente, bastava escolher — mas só de entre as datas disponíveis. Ora bem, jantares nem vê-los, almoços alguns. Setembro já era, outubro estava à rasca. O meu plano era ir com mais três pessoas. Não perguntei nada a ninguém e escolhi o dia com o melhor dos critérios, o clássico “porque sim”. Convenhamos, quando temos reservas feitas para o melhor restaurante do mundo é fácil juntar interessados.

Entre o dia da reserva e a própria da refeição, recebi vários emails. Um de agradecimento e outros dois a confirmar e reconfirmar a presença na Osteria naquele dia, àquela hora. Pelo meio de toda esta simpatia no ciberespaço, é preciso enviar os dados de um cartão de crédito. Porque quem marca e não aparece leva o devido safanão na conta bancária sem provar nada. Na dúvida, apareçam, a sério.

Segunda parte: o restaurante

O almoço está marcado para as 12h30. Não fui eu que escolhi a hora nem nenhum dos outros 3 que comigo foram a Bolonha e depois apanharam um comboio para Modena — já agora, a distância entre as duas cidades é de meia hora, talvez menos, e os comboios funcionam tão bem como todos os transportes daquela zona de Itália: uma maravilha, uma verdadeira maravilha. Número 22 da Via Stella, estamos à porta, tocamos à campainha, nada, tudo o que é gente com reserva está ali, 12h32, acabem lá com esta brincadeira, a sério… Porta aberta, chegamo-nos à frente, isto está mesmo a acontecer.

OsteriaFrancescanainterior1_creditsPaoloTerzi

Fomos ao almoço, aquela luz não estava acesa

Há quase uma dezena de empregados lado a lado, todos de fato e gravata. Um deles dirige-se a nós: “Tiago Pereira?”, diz ele como se tivesse sido sempre um nome tipicamente italiano. Sim, sou eu, vamos lá. E uma vez lá dentro, é preciso notar: o restaurante não tem nada que mereça destaque nestas linhas. Não é necessariamente bonito nem feio; as mesas são redondas como as de um casamento; música, se havia, agora de repente nem me lembro. Explicaram-me que “a ideia é a atenção estar toda na comida”. Compreendo, mas o que eu andei para aqui chegar e o que trabalhei para o que vou ter de pagar mereciam um pouco mais de boniteza. Enfim, prometo esquecer-me rápido desta situação.

A primeira coisa a aparecer na mesa é o menu, daqueles só com duas páginas, uma em italiano e outra em inglês. As hipóteses são simples: pode escolher-se ao prato ou então dois menus de degustação, um com sete e outro com 11 pratos diferentes (com algumas surpresas pelo meio). Agora imaginem isto comigo: estão sentados no melhor restaurante do mundo, coisa que provavelmente não vai voltar a acontecer. A sério que não escolhiam a hipótese mais faustosa, requintada e — obviamente — cara? Pensámos cerca de poucos segundos sobre o assunto, estávamos há muito decididos, ainda que, quando a reserva foi feita, a carta fosse outra e os preços também, algumas dezenas de euros abaixo. Enfim, se és o melhor, exige que te paguem como tal, simples e prático.

Era uma vez um gelado de amêndoa que na verdade é feito de foie gras e que ao comer explode numa festa rija de vinagre balsâmico. Minha gente, foi mesmo isto que aconteceu e foi um espanto.

O problema surgiu com a bebida. Estávamos certos de que vinho era a opção certa mas a carta parece uma lista telefónica, com propostas para todos os gostos e muito poucas carteiras (vinhos a nove mil euros? Claro que sim). Optámos por uma garrafa, porque o wine pairing — ou seja, um vinho diferente para cada prato — acrescentaria mais 17o euros à fatura de cada um. Entre o tinto e o branco, o consenso estava difícil. Vai daí, o simpático sommellier da Osteria Francescana chegou-se à frente e explicou-nos que o melhor seria optar por um lambrusco da região (Emilia-Romagna). Todas as razões eram boas: o vinho tinha a qualidade necessária para o caso, ia bem com todos os pratos da casa e era acessível, dentro do género: 30 euros a garrafa. Não se falou mais no assunto. “Está bom?” Estava ótimo.

Terceira parte: a refeição

Entradas. O primeiro prato não é um prato, são miniaturas de coisas grandes e brutas transformadas em pequenos aparatos de chiqueza. É uma espécie de boas vindas, um “preparem-se para algo completamente diferente”. Fish and chips, é esta a expressão que o nosso amigo empregado usa para apresentar o que está à nossa frente. Mas ao mesmo tempo que diz isto, ri-se, e revela que há por ali no meio uma colher de gelado de alcaparra – nunca tinha visto nenhum, muito menos provado, mas fui de cético a “quem me dera ter uma caixa disto em casa” em menos de nada. Na companhia deste regalo foram servidos uns macarons com coelho e bacalhau e uma bolacha de parmesão que, no campeonato das bolachas, é do melhor que já conheci.

Tributo à Normandia. O que se vê não é o que se come. É uma frase bonita mas, muito mais que isso, é uma enorme e elegante verdade. Não só para este primeiro prato a sério mas para muito do que se passa na Osteria Francescana. Massimo Bottura é o que todos gostaríamos de ser: um adulto criançola, um garoto com mais de 50 anos, que ganha a vida a alimentar esse síndrome de Peter Pan e a dar de comer aos outros com essa graça. Brinca na cozinha como quem trabalha no escritório e depois junta as duas realidades e faz coisas destas: tártaro de borrego e granita de maçã, não parece grande coisa mas isto vem à mesa numa concha de ostra, com a água da dita. Duas conclusões óbvias. A primeira: quem não gosta de ostras não vai gostar deste prato; a segunda: quem não gosta de ostras devia. Aprendam, mas é.

15 fotos

Lentilhas são melhores do que caviar. Ora vamos lá a ver, lentilhas não são melhores do que caviar. E mesmo depois da Osteria continuam a não ser. Vêm servidas numa latinha bonita, com ar de coisa rara, como se fossem uma iguaria que se encontra apenas a partir dos 4 mil metros de altitude, no lado poente do Evereste. Mas depois são apenas lentilhas (apesar do resto que as envolve). E eu fico meio desgostoso, porque ainda agora esta loucura começou e já estamos com dúvidas. Temos que relativizar. E se este é o melhor restaurante do mundo então não me deixem questionar nada. Ou será apenas o chef a querer baixar-nos as expectativas de propósito? Diabos te levem, Bottura.

“Riso levante”. Não é risotto mas é quase. E só é quase porque não tem queijo, ainda que o veludo italiano esteja lá todo. Estou meio confuso e isso é fantástico. Se já recuperei totalmente da história das lentilhas? Não, ainda estou à espera que apareça um unicórnio para voltar a acreditar no inacreditável. Mas, contas feitas, este é o prato ácido mais confortável ao palato que alguma vez comi, mergulhado em citrinos danados para nos fazer fechar um dos olhos num agradável momento de agonia — mais aquela ceviche de perca pelo meio, rapaziada… Além disso, não é normal apreciar tanto uma coisa tão completamente amarela como esta, que é servida com uma borrifadela de essência dos tais citrinos que cozinharam aquele arroz. Que coisa bonita.

Solha do Mediterrâneo. Depois daquele fantástico Tributo à Normandia, este é o segundo grande momento da mesa. Na essência, é solha, aquele peixe achatado que nem sempre é tido em boa conta. Mas é solha feita de três maneiras diferentes: no forno, na grelha e enrolada em papel. Como é que se transforma tudo isto em algo inesquecível? Assim: junta-se uma folha de água do mar desidratada e braseada. Até porque se já fomos à lua, podemos transformar o sabor de uma grelha de churrasco numa espécie de papel queimado feito de água salgada que adoramos comer, certo? Claro que sim.

Uma ceviche de outono em Modena. Lá vêm eles, os nossos amigos empregados de mesa, sempre aos pares. Desta vez trazem umas taças que ameaçam com sopa (a sério, sopa?) mas afinal não. Castanhas, cogumelos porcini e trufas. Tudo cortado milimetricamente, tudo em camadas, tudo a fazer sentido. E com uma daquelas espumas que os chefs de bom nome gostam de fazer, porque fica bonito e não só, nada acontece por acaso neste restaurante. Nada, percebem?

Ganhei um enorme desvio no orçamento mas nunca mais as minhas refeições serão iguais, o que tem tanto de bom como de mau. Serei mais vezes infeliz mas será sempre difícil voltar a ver felicidade como aquela que encontrei naquela estreita rua de Modena.

Cinco idades de parmiggiano. Se gosto de parmesão? Gosto pois. Só não sabia o que era parmesão até terem colocado esta maravilha à minha frente. Cinco queijos de anos diferentes e em formatos distintos, uns mais cremosos, outros menos, todos intensos no sabor. Mas intensos de tal forma que — juro — ainda tenho o sabor de dois deles mesmo aqui. E porquê fazer um prato só com parmesão? Porque Massimo sabe o que é bom, Massimo pode.

Parte crocante da lasanha. Não sou fã de lasanha, que é só uma espécie de empadão mas em pior. É um prato preguiçoso, “vamos lá juntar massa e carne mas agora às camadas, vai ser divertido”. Não é. A boa notícia é que isto de lasanha só tem o nome. O prato é servido ao mesmo tempo que ouvimos a mensagem “partam a massa com as mãos”. E partimos. Desfazemos aquilo tudo, aqueles pedaços de massa estaladiça, que depois juntamos ao molho ragù tipicamente bolonhês. Simples mas bom, muito bom. Refazer um clássico com as partes que interessam. E alimentar ainda mais o meu desdém pela pobre lasanha.

No jantar de Trimalchione: faisão à maneira antiga de Roma. Apesar da mania de dar a volta aos clássicos, Massimo Bottura também é capaz de não andar muito para chegar onde quer, que é surpreender. Faisão mas feito segundo as regras do método sous-vide e com foie gras pelo meio, endívia cozinhada com açúcar e vinagre e uma espécie de batata frita que de tão fina era quase transparente. A melhor coisa que comi na Osteria? Nada disso. Melhor que quase tudo o que já tinha provado antes de ali chegar? Mais que certo.

Croccantino de foie gras. Era uma vez um gelado de amêndoa que na verdade é feito de foie gras e que ao comer explode numa festa rija de vinagre balsâmico. Minha gente, foi mesmo isto que aconteceu e foi um espanto.

Salada César a florescer. Uma alface é uma alface, menos esta que parece uma coisa vinda da terra dos elfos, recheada com flores e ervas aromáticas e um molho especial que vem ao mundo quando cortamos a obra de arte ao meio. E neste caso, custa muito usar faca, dá mais vontade de perguntar aos senhores se podemos levar a alface para casa.

osteria cozinha

O senhor de gravata foi o que nos serviu e explicou, num inglês à maneira de Coppola, cada um dos pratos. O segundo a contar da direita é Kondo Takahiko, um dos homens de confiança de Massimo Bottura

Ooops! Deixei cair a tarte limão. É fácil explicar o que aconteceu com esta sobremesa: aconteceu que é o melhor doce do mundo. Limpinho limpinho. Não é bem uma tarte, não é bem uma mousse, é uma mistura disso tudo mas com o melhor sabor a sobremesa que já se viu. É uma fantástica festa de aniversário a acontecer-nos no estômago, um reveillon que cabe num prato, como é possível que estes italianos ainda não se lembraram de vender isto à caixa, de exportar para todo o mundo, de conquistar o planeta, enfim. Além de tudo isto, é uma tirada genial da criatividade deste chef que dificilmente vai conseguir algum dia sacar esta sobremesa da carta. Funciona como a assinatura final da refeição… só até percebermos que ainda não acabou. Santa mãe.

Segunda sobremesa. Claro que há outro doce, um com chocolate, frutos vermelhos e peta zetas. Este tipo não se leva a sério e nós é que ganhamos com isso. Cacau daquele que interessa, amargo como é suposto, mais amoras e outras coisas pequenas da mesma escola, saídas da região — que dizem ser terreno fértil para aquele tipo de produto. Tudo junto aos saltos na língua, pá. Massimo, chega-te aqui ao pé de nós, toma lá um abraço.

Café (e não só). Um parágrafo só para o café? Sim, porque é bom. Imaginemos que esta refeição acabava com um café manhoso ou queimado? Não ia dar. Da mesma maneira que não ia dar se me apresentassem a bica sozinha, sem nada a acrescentar. O amigo Bottura sabe que isso não se faz e, vai daí, chega-se à frente com uma pequena travessa com três docinhos em miniatura que devem ser comidos numa determinada ordem, logo seguidos do café. Não me lembro exatamente dos primeiros dois; lembro-me muito bem do terceiro porque parecia uma uva mas era uma pequena bomba de cereja, que se desfaz assim que fechamos a boca e envia de imediato uma mensagem ao cérebro que diz “miúdo, que bom é estar vivo”.

Quarta parte: a despedida

Acabou. Não se faz. Passaram quase quatro horas e ninguém deu por nada. Os intervalos entre os pratos são preciosos, com o tempo ideal para saborear o anterior e estar pronto para o seguinte. Sempre com aquele tipo de serviço que nos faz sentir os gulosos mais importantes do mundo. Ai quer colocar e levantar os pratos em perfeita sincronia? Ora essa, esteja à vontade.

E o requinte vem acompanhado de simpatia. No final da festa fomos à cozinha, conhecemos o sous chef Kondo Takahiko, o principal responsável pela sobremesa da tarte que caiu ao chão. Está visivelmente cansado, a preparar um “jantar de grupo para 40 pessoas, o número máximo que o restaurante recebe”. Gosta de trabalhar na Osteria e de fazer par criativo como Massimo Bottura: “Ele motiva todos, quer que participemos, quer as nossas ideias, por mais estranhas que possam parecer”. Reúne a equipa e faz um sorriso para a fotografia. Fizemos amigos, é o que parece, e temos ainda menos vontade de ir embora.

MassimoBottura_creditsPaoloTerzi

Massimo, da próxima vez vê se apareces

Lá na minha terra, a quem tem falta de critério à mesa chama-se um “boquinha de cabra”, daqueles que comem e não pensam. Eu era um exemplar óbvio dessa raça inferior mas agora tudo será diferente: vou continuar a ser pouco exigente, óbvio que vou, mas ao menos sei que o mundo tem muito mais para oferecer do que o prato do dia ou o panado do dia anterior (adoro panados).

Ganhei um enorme desvio no orçamento mas nunca mais as minhas refeições serão iguais, o que tem tanto de bom como de mau. Serei mais vezes infeliz mas será sempre difícil voltar a ver felicidade como aquela que encontrei naquela estreita rua de Modena e é melhor encarar isso de frente. A garrafinha de vinagre balsâmico está lá em casa, bem visível, mas é provável que continue fechada. Se é para a abrir e confirmar a triste realidade de que os poderes de Massimo não vêm às miniaturas, então mais vale estar quieto.

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