O ano era de intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), a primeira da História. Em 1977, os funcionários públicos puderam contar com um aumento geral dos salários de 15%, apesar de o Governo de então — liderado por Mário Soares, com Henrique Medina Carreira nas Finanças — reconhecer que tal seria “dificilmente suportável” na “situação de recuperação económica” em que, acrescentava, se encontrava empenhado. Mas porque queria ser “fiel” aos “compromissos que assumiu” e para compensar, ainda que parcialmente, “o agravamento do custo de vida” dos trabalhadores do Estado, optou por atribuir a atualização.
Ao todo, o Governo desembolsou 4,3 milhões de contos (cerca de 21,4 milhões de euros). Mas, perante o esforço, o Executivo avisava os trabalhadores que era preciso fazer acompanhar os aumentos de melhorias na produtividade.
A atualização abrangeu todos os 300 mil funcionários (hoje são mais de 700 mil), mas não permitiu compensá-los pela inflação daquele ano (de 26,74%, segundo os dados do INE, acima de 19,90%, um ano antes). Ou seja, mesmo com um aumento custoso de 15%, os funcionários públicos continuaram a perder poder de compra.
Desde então e até 2009, segundo uma tabela do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE), a que o Observador teve acesso, os aumentos salariais na função pública continuaram a ser muito comuns, ainda que fossem mais cirúrgicos nalguns casos (por exemplo, destinando-se apenas aos ordenados mais baixos). E embora nem sempre tivessem compensado a inflação (tal como na segunda intervenção do FMI, em 1983).
Até 2009, um ano que marcou uma viragem para os funcionários públicos, só em apenas dez anos (1980, 1985, 1986, 1987, 1991, 1996, 1997, 1998, 1999 e 2009) é que as atualizações salariais ultrapassaram a inflação registada no mesmo ano e, assim, permitiram ganhos anuais de poder de compra. Ou seja, só nesses anos houve aumentos reais dos salários. Da equação poderíamos, no entanto, retirar o ano de 1980, uma vez que só a partir de julho foi aplicado um aumento (18%) superior à inflação desse ano (16,05%).
Mais recentemente, em 2020 e 11 anos depois da última atualização geral, o Governo deu aumentos transversais de 0,3%, acima da inflação negativa (-0,01%) registada naquele ano, mas ao nível da inflação do ano anterior, depois de anos de cortes ou estagnação. “Um insulto“, reagiu, na altura, a então líder da Frente Comum, Ana Avoila. Mas a resistência dos sindicatos, que queriam a reversão de anos de perda do poder de compra, não foi suficiente para fazer o Executivo mudar de ideias.
Maior aumento foi com Mário Soares
Em termos nominais, o maior aumento dos salários da função pública aconteceu em 1985, no Executivo do Bloco Central (coligação entre PS e PSD) liderado por Mário Soares (PS) e com Ernâni Lopes na pasta das Finanças. Nesse ano, os salários subiram 21,4%, perto de dois pontos percentuais acima da inflação (19,55%). O ano seguinte, já com Cavaco Silva (PSD) e o seu governo minoritário, não foi muito diferente: os funcionários públicos contaram com uma atualização de 16,4%, também acima de um avanço dos preços de 12,56%. Tirando o ano de 1988 e 1989, os aumentos salariais só viriam a cair abaixo dos dois dígitos em 1992.
Já no novo milénio, e com Manuela Ferreira Leite (PSD) na pasta das Finanças, no Governo de Durão Barroso, a lógica mudou. Quer em 2003, quer em 2004, os aumentos aplicaram-se apenas às remunerações mais baixas e nos dois casos abaixo da inflação registada nos respetivos anos. No primeiro caso, a subida foi de 1,5% nos salários até 1.008 euros; no segundo de 2% até 1.024 euros. A lógica de compensar os salários mais baixos viria a ser retomada, mais recentemente, por António Costa.
A viragem com José Sócrates
O ano de 2009 viria a marcar uma viragem para a função pública. Com José Sócrates a chefiar o Governo e Teixeira dos Santos nas Finanças, pela primeira vez em dez anos houve novo aumento real. Em ano de três eleições (legislativas, autárquicas e europeias) — uma “mera coincidência”, disse então Teixeira dos Santos — a atualização chegou aos 2,9%, num ano em que até houve inflação negativa, 0,8%. A decisão foi tomada numa altura em que os estilhaços da queda do Lehman Brothers, nos EUA ainda não tinham chegado em força a Portugal. Mas não foi preciso esperar muito.
José Sócrates voltaria a ganhar as eleições, desta vez sem maioria absoluta, e, em 2010, depois do presente à função pública, veio a reviravolta: salários e progressões congelados. Um ano depois, cortes entre 3,5% e 10% a partir dos 1.500 euros. Nesse mesmo ano, o governo Sócrates cai e, já com o PSD de Pedro Passos Coelho, é assinado o memorando de entendimento com a Troika. Foi o terceiro resgate.
Nos anos seguintes, os aumentos passaram a ser apenas uma miragem do passado. Na proposta de Orçamento do Estado para 2014, o Governo ainda tentou alargar os cortes, de entre 2,5% e 12%, aos salários acima de 600 euros. Mas a decisão acabou chumbada pelo Tribunal Constitucional. A boa notícia desse ano foi o aumento do salário mínimo nacional, que permitiu, por arrasto, a alguns funcionários públicos beneficiar.
Só em 2015, ainda com Passos Coelho, os cortes começaram a ser revertidos. E foi preciso esperar por 2020 para se chegar a nova atualização geral: de 0,3%, a mais baixa de sempre.
Costa prepara novo aumento geral, mas abaixo do prometido
Com António Costa no poder, as subidas nos salários da função pública começaram por ser apenas por via da atualização do ordenado mínimo. É só em 2020 que o Governo decide mudar o jogo: aumenta em dez euros (cerca de 1,5%) os trabalhadores da função pública com salários até 683,13 euros (o que incluiu a subida da remuneração mínima para 645 euros), com um ligeiramente ajustamento nos salários imediatamente posteriores. Já para os restantes, a generalidade, o ordenado subiu 0,3%, o que nalguns casos se traduziu em aumentos de poucos euros. A medida custou 95 milhões de euros.
Já para 2021, o salário mais baixo do Estado subiu 20 euros para os 665 euros (ficando igual ao salário mínimo nacional) e foram dados aumentos de 10 euros para os ordenados até 791 euros. Foram abrangidos 148 mil trabalhadores, numa despesa de 41 milhões de euros. O Governo quebrava, assim, uma promessa feita antes da pandemia, de atualizar salários ao nível da inflação esperada, 1%, em 2021.
A Covid-19 veio trocar as voltas e fê-lo de tal forma, que, já esta semana, o Governo chegou a comunicar aos sindicatos que bem podiam esquecer nova atualização geral para o próximo ano. Na primeira reunião de negociações, na segunda-feira, a ministra da Administração Pública, Alexandra Leitão, chegou a dizer que “face ao cenário macroeconómico, não estamos a propor e não creio que possamos propor [aumentos gerais]”. Três dias depois, o cenário de crescimento da economia já era outro e, afinal, há espaço para aumentos de 0,9% para todos, o que custa 225 milhões de euros.
Governo propõe atualizações salariais de 0,9% para toda a função pública em 2022
Esse valor não comporta outros compromissos assumidos pelo Governo: por um lado, o aumento do salário mais baixo dos assistentes operacionais por via da subida do salário mínimo nacional. Por outro lado, dos assistentes técnicos, “para que seja mantida a proporção entre o início das duas carreiras”. Nestes dois casos, essa alteração deverá ocorrer quando entrar em vigor o novo salário mínimo nacional (cujo valor não é conhecido, mas tem sido noticiado que deverá ficar em 705 euros).
Há um terceiro compromisso: aumentar o salário de entrada dos técnicos superiores (cerca de 1.200 euros), com uma diferenciação para quem tem o grau de doutor — serão colocados num nível acima. Essa alteração terá de ser objeto de negociação no início do próximo ano, com Alexandra Leitão a acreditar que ainda entrará em vigor algures em 2022. Esse aumento deverá estender-se também para os técnicos superiores que já estão no nível de entrada há mais tempo. “Ainda que gradualmente, teremos sempre de aplicar isso às pessoas que estão na mesma posição daqueles que entram”, apontou.
Os sindicatos continuam, porém, a insistir na recuperação do poder de compra que resultou de anos de cortes ou estagnação. “Esperamos que essa recuperação se venha a fazer porque desde 2010, a perda de poder de compra ultrapassa os 11%“, sublinhou Helena Rodrigues, líder do STE, após a segunda ronda negocial com o Governo.
Essa perda de poder de compra, já deixou claro Alexandra Leitão, não será recuperada. “É impossível reescrever completamente a história. Recuperar dez anos de perda de poder de compra é algo que não sei se é sequer possível”, disse, no ano passado, no Parlamento.