É líder da única empresa portuguesa cotada na Bolsa de Nova Iorque e, em 2020, lançou uma fundação à qual se comprometeu doar dois terços da sua fortuna ao longo da vida e no momento da morte. A esta fundação, José Neves doa não só dinheiro, mas também o nome e tem uma ambição clara: ajudar a tornar Portugal uma sociedade de conhecimento até 2040. Isto traduz-se em quê? Em melhor educação, melhor informação e mais bem-estar, promete. Para 2021, o alvo está definido: a saúde mental é a segunda pandemia que o mundo vive, explica ao Observador, e é preciso ajudar as pessoas e empresas a ter ferramentas para lidar com as sequelas. Foi para responder a este desafio que a Fundação José Neves (FJN) lançou nesta quarta-feira a 29KFJN: a app gratuita que quer “potenciar o desenvolvimento pessoal de um milhão de portugueses”.
Fundação José Neves lança app para “potenciar o desenvolvimento pessoal de um milhão de portugueses”
Numa conversa em que se fez acompanhar de Carlos Oliveira, que é ex-secretário de Estado de Empreendedorismo, fundador da MobiComp, membro do Conselho Europeu de Inovação e presidente executivo da FJN, José Neves explicou porque é estas temáticas lhe fizeram sempre tanto sentido: faz meditação desde os 13 anos e psicoterapia há mais de 10, semanalmente, porque acredita que é preciso cuidar da mente como se cuida do corpo. “Estou sempre a evoluir os meus conhecimentos”, referiu poucas horas antes de subir ao palco do evento anual da fundação, que também conta com António Murta (diretor-geral da investidora em capital de risco Pathena) como um dos seus fundadores.
Adultos portugueses sem ensino secundário são mais do dobro da média europeia
Na tarde desta quarta-feira, a FJN também apresentou as conclusões sobre o primeiro Relatório Estado da Nação sobre Educação, Emprego e Competências em Portugal, que revela que a percentagem de adultos portugueses que não terminaram o ensino secundário (47,8%) é mais do dobro da média europeia (21,6%) e que a “população portuguesa tem o maior défice de qualificações da União Europeia”. José Neves é o primeiro português a integrar o The Giving Pledge, um movimento criado por Bill Gates e pelo multimilionário Warren Buffet, que reúne milionários que decidiram doar pelo menos metade da sua riqueza a projetos sem fins lucrativos. Lançou a Farfetch em 2008, que em 2015 se tornava no primeiro unicórnio (empresa avaliada em mais de mil milhões de dólares) com origem em Portugal.
A Fundação José Neves lançou uma app focada no desenvolvimento pessoal e na saúde mental. Porquê?
JN: Estamos a viver uma pandemia trágica. É uma pandemia biológica, mas corremos o risco de viver uma segunda pandemia, que é psicológica. Na Suécia, no Reino Unido e nos Estados Unidos, a incidência de pessoas que têm pelo menos uma destas quatro condições — depressão, ansiedade, stress pós-traumático e insónia — era de cerca de 30% da população antes da Covid-19 e subiu para mais de 85%. Estamos numa situação em que as pessoas estão obviamente, para já, a resolver a prioridade, que é cuidar do corpo. Mas rapidamente se aproxima uma outra prioridade, que é cuidar da mente. E para isto, muitas vezes, as pessoas não têm conhecimento nem ferramentas.
Existe um estigma muito grande sobre a saúde mental, principalmente em Portugal, e a Fundação estabeleceu isto como prioritário. Daí a nossa colaboração com a 29K, que é uma fundação sueca, e este lançamento da 29KFJN. Essencialmente, é um aplicativo gratuito, concebido pelo que há de mais avançado a nível de ciência, pela Universidade de Harvard, e adaptado em Portugal pela Faculdade de Medicina da Universidade do Minho e consiste numa série de cursos e de ferramentas. Convidei alguns empresários e o Carlos Oliveira também encontrou algumas pessoas que nos pareceram relevantes para fazerem esses cursos. Nós também os fizemos, [tal como] a Fátima Lopes, a Catarina Furtado, o Luís Portela (Bial), a Paula Amorim, do grupo Amorim. E foi muito interessante ver o apoio que tivemos destas personalidades, que reconheceram que existe uma enorme deficiência neste campo.
Foi, então, motivada pela pandemia, mas houve alguma coisa na sua vida privada/pessoal que o tenha levado a estar mais atento a esta questão de regular as emoções e a ter interesse nestes temas?
JN: O desenvolvimento pessoal foi sempre um dos pilares da fundação. Apesar de existir um estigma sobre saúde mental, penso que hoje existe uma abertura. Já ninguém questiona que, para sermos felizes, não basta trabalhar o mundo exterior ou externo, temos de trabalhar o interno. Acho que isso é uma coisa que intuitivamente todos sabemos e sentimos e, para a qual, as pessoas estão a despertar cada vez mais. A nível pessoal sempre foi algo que… Todos temos dificuldades na vida, pessoais e profissionais. Eu tive muitas. Tive altos e baixos e é nestas alturas em que estamos mais vulneráveis, mais fragilizados que precisamos desta ajuda e deste conhecimento, destas ferramentas. E é um trabalho contínuo ao longo da vida, nunca termina. Não é ver um documentário da Netflix ou ler um livro que vai ter um efeito transformador. Sempre foi um pilar da Fundação. E pareceu-nos que, este ano, em virtude da Covid-19, era urgente lançarmos algo que pudesse ser transformador. A nossa ambição é impactar no médio e longo prazo até um milhão de portuguesas e portugueses com o 29kFJN.
E vai ser possível atingir esse milhão? Há pouco falava do estigma, a pandemia veio abrir a conversa sobre o tema da saúde mental, mas acha que estas questões do desenvolvimento pessoal e auto-conhecimento estão menos estigmatizadas entre os portugueses?
JN: Há um milhão de portugueses que, regularmente, têm de se medicar seja por insónia, ansiedade, stress. Porque é que esse milhão de portuguesas e portugueses, além de qualquer terapia química que podem fazer — ninguém está aqui contra as terapias químicas, elas têm um lugar também — não há-de reconhecer também que outro tipo de intervenção, mais transformadora, que vai à raiz dos problemas, é fundamental? Acho que é uma ambição muito grande, mas também é encorajador ver as empresas a participar neste projeto. Nós temos a REN, Accenture, Galp, Bial, Farfetch, só para começar. E como diz o Carlos Oliveira, não é só para estar nos comunicados de imprensa. Os departamentos de recursos humanos dessas empresas vão usar a 29KFJN de forma intensa, como uma das ferramentas de um programa de bem-estar que estamos a articular em colaboração com essas empresas. Estamos a falar de dezenas de milhares de colaboradores.
CO: E é uma ambição de médio e longo prazo. Esta é uma ferramenta para as pessoas poderem fazer o seu caminho e pode escalar muito se for bem utilizada, porque é baseada em Ciência e validada cientificamente. Temos cursos de três e de oito semanas. Obviamente que se fizer o curso de oito semanas num dia não vou ter o mesmo impacto se o fizer em oito semanas. Se fizer de acordo com o que ali está, então está cientificamente provado pelos nossos colegas da 29k que estes cursos têm impacto profundo e duradouro nas pessoas. São equivalentes, na Suécia, a intervenções que podem custar entre 1.500 a 2.000 euros. A grande diferença é que esta é uma aplicação não comercial, gratuita, financiada pela fundação, construída em parceria com as entidades que o José referiu.
O grande desafio é as pessoas sentirem vontade de a experimentar e depois de a utilizarem. O grande objetivo é nesta sociedade em que estamos hoje, em que de facto o consumo dos ansiolíticos é um dos maiores da Europa, conseguirmos ajudar as pessoas a, antes de chegarem a estas situações ou de passarem a tal linha vermelha, terem o seu autocontrolo, a sua auto-estima. Podemos ajudar muita agente a estar muito melhor no dia a dia na vida com uma grande escala. É essa a grande ambição.
Voltando à questão do estigma e das empresas: estará o resto do tecido empresarial preparado? Um bom líder não é sinónimo de um bom líder que se autorregula emocionalmente, são coisas que têm de ser trabalhadas em separado. Acham que isso é um défice que temos no nosso tecido empresarial?
CO: Acho que o José pode falar muito bem disso. Mas é precisamente por acharmos que isso não está resolvido no país que estamos a intervir. Estão todas as empresas do país abertas a usar estas coisas? Não, esse é o ponto de partida. Tudo isto parte também desta perspetiva. Não só queremos ajudar a colocar o tema na ordem do dia, como queremos ser uma parte da solução ou um instrumento que pode ajudar a solução. Não estamos enquanto sociedade, de todo, preparados para isto, mas o que queremos muito é que se fale.
JN: Estava aqui a lembrar-me que hoje vamos ter o professor António Damásio no evento, que teve um papel revolucionário a nível mundial, ao demonstrar cientificamente a ligação entre emoções e razão. Antes do seu livro revolucionário “O Erro de Descartes”, que é de 1994, a generalidade da comunidade científica achava que a emoção e a razão estavam até em oposição. As emoções estorvavam aquilo que seria uma mente racional pura. Havia esta ideia de uma mente completamente pura sob o ponto de vista racional e as emoções eram as impurezas que andavam lá a perturbar o sistema. António Damásio prova, há mais de 20 anos, que é o contrário: não existem decisões racionais boas, num contexto real e social, que não sejam baseadas numa plataforma emocional estável. Quanto mais estável e equilibrada for a plataforma emocional, melhor são as decisões que pensamos serem racionais. Estão as duas ligadas.
Acho que os melhores CEO e líderes reconhecem isso. Claro que há muitos estilos de liderança e há pessoas que estão mais direcionadas para essas coisas, mas as que estão menos abertas a esse tipo de conhecimento — estamos a falar de conhecimento científico, isto não é esotérico, é ciência — há uma abertura grande das organizações. Na Farfetch, por exemplo, os cursos que fazemos para os nossos executivos são todos com uma componente psicológica: 90% é psicologia. Nós vamos ensiná-los a gerir emoções, o que está na origem dos comportamentos deles, para que eles possam — eles próprios — fazer a sua evolução pessoal.
CO: Vou dar um exemplo de uma grande empresa, a Microsoft, que tem um CEO com um lado emocional, que não tem apenas o lado racional de vendas, vendas, vendas. E vemos a transformação de um líder que leva toda uma organização atrás de uma perspetiva diferente do mundo, de conciliar pontes e perspetivas. Isto não é de todo incompatível com ter objetivos assertivos. É também o entender do outro.
Como líder de uma grande empresa, o que é que foi mais difícil para o José descobrir sobre si próprio, ao longo do tempo?
JN: Faço meditação desde os 13 anos. Faço psicoterapia há mais de 10 anos, semanalmente, quatro horas por semana. Estou sempre a evoluir os meus conhecimentos. Se for ver os meus audiobooks estão todos nessa linha: ou é neurociência ou são questões do ponto de vista psicológico, subconsciente, etc. E estou sempre a aprender. É como digo, isto é um percurso humano constante, até ao final da vida. Penso que tirei daí muitos benefícios, não tenho dúvidas nenhumas. Vi outras pessoas a fazerem percursos semelhantes e também a tirar benefícios disso. E depois aparece a ciência, a neurologia moderna — e não a neurologia de há 50 anos –, a psicologia, a psicanálise, que, comprovadamente, vem trazer à luz científica resultados muito claros e benéficos para o ser humano.
Temos de tratar da nossa mente como temos de tratar do nosso corpo. Isso devia ser tão simples. E devia ser numa perspetiva de manutenção. Quando me perguntam “fazes terapia, mas tens algum problema?” — é a primeira pergunta que me fazem –, a minha resposta é: “Uma pessoa só entra num ginásio quando está com 150 kgs?” Não. Nós vamos ao ginásio porque gostamos de ir. Ponto final. Porque nos sentimos bem e sentimos que aquilo contribui para a nossa saúde e bem-estar, com impactos tremendos a nível da nossa saúde física e emocional — corpo e emoções e mente –, estão todos relacionados. E é a mesma coisa no campo mental. No campo mental existe esse estigma, que é um estigma cultural. Estamos a tentar ajudar a reduzir isso.
Quanto investiram nesta aplicação?
CO: Isto é um projeto de longo prazo e já temos um road map para os próximos cinco anos. Podemos dizer que, nesta fase, só para o lançamento, o investimento global para o 29KFJN deverá estar muito próximo de meio milhão de euros E vamos investir vários milhões de euros nos próximos cinco anos. Somos cocriadores, com a 29K, desta solução, vamos trazer mais conteúdo e criar mais em português. Temos a universidade do Minho e a escola de medicina que valida os conteúdos e nos ajuda. É um projeto significativo, tal como é o ISA, que, além dos cinco milhões de euros [em bolsas], estamos a investir bastante mais na operação. Isto é só o valor das bolsas que vamos colocar. Até ao momento, já temos 600 mil euros atribuídos a bolsas e, até ao fim do ano, queremos chegar aos 2,5 milhões e, no próximo ano, aos cinco. Temos um caso de uma pessoa que estava em Recursos Humanos, na área da Psicologia, e de repente fez um bootcamp e torna-se programadora. É um dos casos que apresentamos no evento.
Fundação José Neves investe 5 milhões de euros em 1.500 bolsas para estudantes
Qual é o balanço que fazem do ano que passou? A adesão às bolsas foi ao encontro das vossas expectativas?
CO: Estamos no início e sabemos que ainda é um contributo de quem está a dar os primeiros passos. Estamos satisfeitos com o que atingimos, sabendo que, obviamente, os outputs como esperávamos são ainda de pequena dimensão, porque isto precisa de tempo para ter impacto. Por exemplo, estamos agora a começar com a primeira fase, em que vai haver candidaturas a mestrados. Em setembro já não apanhámos isso. Já recebemos mais de 800 candidaturas e esperamos que este número aumente muito mais. Estamos satisfeitos com o progresso, mas não estamos satisfeitos com o output, porque queremos continuar a fazer mais.
No Brighter Future, há milhares de portugueses que usam mensalmente a plataforma, sejam pais, alunos ou outras entidades. Decidimos lançar o Estado da Nação, que vai ser atualizado anualmente, porque não encontrámos nada que ligasse estas três realidades — a educação por um lado, o emprego pelo outro e a relação ente o emprego e a educação, que é cada vez mais contínua. Por isso, conseguimos com dados, com algo que é factual, tirar aqui um conjunto de conclusões e de dar aqui também oportunidade que eles tirem conclusões com bases nos dados, para depois definirmos uma visão de longo prazo para o país, do ponto de vista da educação. Achamos que isso é fundamental.
O que podemos esperar da Fundação para o próximo ano?
JN: Em primeiro lugar, [queremos] medir o impacto das iniciativas que já temos e estamos muito positivos em relação ao impacto dos ISA e do Brighter Future. [É para] apostar cada vez mais nessas iniciativas, que estão a ter impacto positivo. Dar-lhes o carinho e a atenção e ver os recursos que elas necessitam, como a 29KFJN, e depois ver como o Estado da Nação é recebido e onde podemos melhorar. Uma das coisas de que nos orgulhamos é o facto de termos tido um grau de inovação muito grande. São quatro coisas que lançámos e que não existiam em Portugal: não existia nenhum instrumento de apoio financeiro à educação semelhante aos ISA, não existia nenhuma app de desenvolvimento pessoal gratuito, baseado em ciência, em português, feito por portugueses. Depois, as surpresas são daqui a um ano.
CO: Já temos aqui quatro projetos fortes que têm muito para dar, vamos continuar a fazer uma aposta muito grande na implementação, na execução e no impacto e vamos fazer como o José está a dizer, mais alguma inovação no próximo ano, temos muito por fazer. Temos de fazer mais conteúdo para o 29KFJN, conteúdos mais focados em segmentos etários mais baixos. Queremos começar a atuar mais cedo na perceção destas questões.
No ISAFJN queremos fazer agora uma aposta forte nos education providers [instituições de ensino parceiras], que são mais de 31, que ponham mais estudantes a conhecer e a poderem ter acesso a este instrumento para terem uma educação melhor e não estarem preocupados com questões financeiras. No lado do Brighter Future, continuamos a trazer todas as semanas conhecimento com base nos dados que ali estão. Isto são as nossas conclusões, a ambição que nós gostávamos que o país tivesse para a educação.
O José Neves disse sempre que doava dois terços da sua fortuna à Fundação, mas nunca revelou ao certo em quanto é que estes dois terços se traduzem. Já pode revelar?
JN: A Fundação é totalmente transparente. Somos auditados pela Ernst & Young, reconhecidos em Portugal e ao nível jurídico português como fundação pública. Temos relatório e contas e nesse relatório e contas está lá o número, até ao último centavo, dos donativos para a fundação. E vai poder acompanhar esse número, tal como toda a gente, ao longo da minha vida. O meu compromisso efetivo são dois terços que assumi com o Founders Pledge e também com o Giving Pledge — do Bill Gates e do Warren Buffet — de forma pública e formal. E é esse o meu compromisso ao longo da vida e na minha morte. Não sabemos como seres humanos quanto tempo dura. Agora, os donativos é só vermos os relatórios e contas e ir acompanhando.
O mais importante é ter impacto. Há muita filantropia bem intencionada, que acaba por, em cada 100 euros que são colocados numa causa, às vezes só dez euros é que atingem realmente as pessoas que necessitam e com impacto muito limitado. É esse o erro em que às vezes caímos. Vamos com certeza dotar a fundação com os recursos que vão sendo necessários, mas numa perspetiva de medirmos o que está a ter impacto. Aquilo que está a ter impacto vamos, com certeza, duplicar, continuar com incrementos para financiar essas iniciativas. Importa muito termos noção deste impacto e isso é o mais importante. E depois há o impacto do talento, da criatividade e da inovação, que o Carlos e o António Murta trazem ao projeto, de toda a equipa e de todas as instituições que colaboram connosco. Isto não são só cifrões.
CO: O José já diz que são dois terços e dois terços, felizmente para o José, vão variando, até pela própria valorização da sua riqueza. Para nós, o que é importante é que temos este compromisso, temos um plano anual que queremos fazer e o orçamento que é necessário e fundamental. E que tem estado a aumentar. E tudo isto é feito a 100% com as doações do José. Não estamos à procura de apoios públicos, de fundos disto e daquilo, estamos a fazer tudo com o financiamento. Para nós, o enfoque não é quanto está na conta, é quanto definimos que vamos precisar para cada ano e assegurar que temos esse orçamento definido. E que nunca é o início da conversa. É o contrário: primeiro vemos o que queremos fazer e depois chegamos à conclusão que, para isso acontecer, é preciso este orçamento e é assim que funcionamos.
Fotografias de Rui Oliveira