Da primeira vez que atuou em Portugal, no início de uma carreira a solo, Gilmário Vemba não sabia o que esperar. “Amanhã já vou embora, vocês provavelmente nem se vão lembrar de mim”, disse, na altura, em palco. Tinha acabado de deixar os Tuneza, grupo de comédia que revolucionou o humor em Angola, e preparava então um espetáculo que, logo no título, era o espelho de todas as suas dúvidas: Hipoteticamente Bom.
Quase cinco anos depois dessa primeira apresentação, poderá dizer-se que as incertezas são cada vez menos. Gilmário Vemba não se foi embora; ficou e conquistou cada vez mais o público português, com prestações elogiadas na televisão, no Taskmaster da RTP1, ou na Rádio Comercial com a rubrica Responder à Letra. A ascensão mediática em Portugal valeu-lhe o convite para conduzir o 5 Para a Meia Noite, o formato late-night da RTP1, no maior teste até agora da sua popularidade junto do público nacional.
Pelo meio, resolveu levar o seu humor para a estrada, pelos “caminhos de Portugal”. Temas foi apresentado em 83 cidades, com 121 espetáculos de Norte a Sul do país (fora os que fez em Angola e os que ainda vai fazer em Moçambique), culminando com duas datas, dia 1 de dezembro na Altice Arena, em Lisboa, e dia 2 na Super Bock Arena, no Porto, num best of do melhor material da digressão. “Às vezes ainda acordo a meio da noite a pensar ‘isto está mesmo a acontecer?’”, confessa.
A apresentação iminente de Best of Temas serviu de pretexto para uma conversa com o Observador, na qual Gilmário, auto-descrito como “humorista de 38 anos, pai de 4 filhos e homem feito”, nos levou através de um percurso pelas dificuldades de adaptação a Portugal, país que considera estar “mais sensível” a certos tópicos no que à comédia diz respeito — fator que diz não condicionar a sua comédia, mas sim ser um desafio acrescido: “Tenho que ter o cuidado de transportar as pessoas para a minha realidade”.
Essa realidade, a de Angola, é uma na qual continua empenhado, no humor e não só. Politicamente ativo, recorda o episódio em que foi sequestrado e as ameaças que ouviu dos seus raptores para “ter cuidado com as críticas ao sistema”. O humorista garante que o incidente não o traumatizou — antes pelo contrário, apenas solidificou a crença de que os “filhos” de Angola, os cantados por Waldemar Bastos, têm de continuar a falar: “Ou assumimos que somos uma ditadura ou, se continuamos a falar que isto é uma democracia, temos que a reforçar”, afirma.
O espetáculo que vai apresentar na Altice Arena, o Best of Temas, é o culminar de uma digressão muito longa — quase um ano, se não estou em erro.
Mais. Foram 14 meses, 83 cidades e 121 espetáculos, sem contar os que cheguei a fazer em Angola. Logo quando começámos a tour, já era nossa intenção terminá-la com uma espécie de festa. O espetáculo na Altice é o celebrar deste trabalho que estamos a fazer desde 2018, a tentar coisas novas no mercado português, e achámos que o Temas foi a prova de que todo esse trabalho que fizemos nos últimos quatro, cinco anos não tem sido em vão. Desde 2019 que venho fazendo muitos espetáculos a solo. A Meio Termo, a minha agência em Portugal, olhou e sentiu que tinha potencial para o mercado português e acabou criando condições para que me apresentasse em vários palcos.
A verdade é que a Altice é um desafio de outra dimensão. Sente algum nervosismo?
Estou muito nervoso, mas também muito feliz pela adesão das pessoas ao espetáculo. Não é tão simples quanto se pensa, levar milhares de pessoas à Altice Arena para ver comédia. Às vezes ainda acordo a meio da noite a pensar “isto está mesmo a acontecer?”. Em 2020 viemos aqui ao Observador fazer uma entrevista, na altura para o Hipoteticamente Bom, que era o espetáculo que me estava a lançar para uma carreira a solo. O título tinha a ver com as dúvidas que tinha — na altura havia muitos comentários de pessoas que achavam que ia dar errado, que dali a um ano ia desaparecer, que não ia muito longe. E, como faço com tudo na minha vida, comecei a ver como é que podia transformar aquilo num espetáculo. Não tinha a certeza se ia ser bom, daí se chamar Hipoteticamente Bom. Agora, passados alguns anos, estamos a lançar-nos para outro patamar. Estamos a tentar chegar ao patamar dos grandes comediantes, a nível de Portugal e mundial. E a Altice Arena é a casa dos artistas mais badalados a nível internacional.
Ainda há um mês, por lá passou o espetáculo do Ricky Gervais.
Fui ver, ele faz aquilo parecer tão fácil, tão simples. Pensei “será que é preciso ter 60 e tal anos para poder chegar a este nível”? O Ricky chega no palco com a certeza de que as pessoas pagaram e vão ter um espetáculo bom, e mete-as todas a rir sem demonstrar nenhum tipo de nervosismo ou desconforto. Também quero chegar assim no dia 1 — e no dia 2 na Super Bock Arena, no Porto — com esta tranquilidade e confiança no material.
Cada espetáculo da tour tinha textos diferentes. Como é que foi feito o processo de escolha dos tais “temas” a apresentar neste best of?
É quase o método de Darwin, é a seleção natural. Fazer stand-up tem essa possibilidade, de ir fazendo e testando o material. Fui conseguindo perceber quais eram os assuntos mais transversais e que mergulhavam melhor na cabeça das pessoas. São esses os que foram selecionados para fazer parte do best of Temas, porque temos a garantia que aquelas piadas funcionam em todo o país, seja a Norte, a Centro ou a Sul. E, além das piadas que são parte desse best of, temos pelo menos 30 a 40 minutos inéditos, que têm a ver com a experiência de fazer o próprio espetáculo, com a ida à Altice Arena e com a minha experiência pessoal de ter saído de Angola e de viver em Portugal.
Que diferenças nota?
No primeiro momento, há um impacto com a realidade, o “isto aqui é diferente”. O segundo momento é quando começamos a viver essa realidade, em que temos de nos preocupar com outros problemas, que antes não nos incomodavam. Angola é considerado um país “de terceiro mundo”, há um “buraco” em que parece que estamos a viver nos anos 80 com imputs do século XXI. E eu venho desse país para “o primeiro mundo”, para outro ambiente, e tenho de enfrentar outro tipo problemas. Por exemplo, em Angola não existe uma preocupação óbvia a nível do aquecimento global, dos problemas climáticos. Não existe. Há um ou outro que pode falar, mas não como aqui. Em Portugal ouço isso nas notícias, leio comentários nas redes sociais, vejo ações diretas, está mais presente na sociedade.
Lembro-me, por exemplo, da primeira vez que tive de meter AdBlue no carro. Em Angola isso não existe. A primeira vez que me aconteceu, surge a mensagem no carro, e fiquei “mas que raio é o AdBlue”? Tinha combustível, água, as coisas a que estava habituado. A minha sorte foi que fiz um story e marquei a rent-a-car que trabalha comigo, que me disseram que tinha de abastecer AdBlue, se não ia ficar parado, e eu não sabia. São essas questões, que não fazem parte da nossa realidade, que acabam por criar um momento engraçado, essa colisão de dois mundos, e acho que se vai refletir no espetáculo.
Pegando neste tema das diferenças entre Angola e Portugal, que diferenças sente no público português em relação àquele que tem em Angola?
Uma das vantagens de estar a fazer isto há muito tempo e em várias partes do mundo é que me dá a oportunidade de conseguir passar por realidades diferentes. E dá-me a oportunidade de perceber que, no final, somos todos seres humanos. Uns mais espontâneos, outros mais retraídos, mas no fim do dia, as pessoas são iguais em todo o lado. Às vezes faço este exercício com as minhas filhas, vamos para uma página de Instagram chinesa e traduzimos os comentários. Depois vamos para uma página portuguesa e vemos os comentários, depois vemos uma página de Angola, uma do Brasil, uma dos EUA. A língua é diferente, mas estamos todos a falar sobre as mesmas coisas.
Claro que um público pode rir-se mais do que outro — às vezes até tem que ver com questões de clima, há estudos que dizem que nas zonas mais frias as pessoas tendem a ser mais retraídas do que em zonas mais quentes. Mesmo em Angola há diferenças, num ponto do país as pessoas podem ser mais extrovertidas do que noutro ponto. Portugal é igual, não é só Lisboa e o Porto, aquelas realidades em que convivemos mais. Venho a Portugal desde 2009, mas nunca tinha ido ao Algarve, a Santa Comba Dão, a Leiria, a Coimbra, a Tábua, a Vila Velha de Rodão, a Benavente, a Mangualde. Era um Portugal que não me passava pela cabeça que existisse, achava que se saísse depois do Porto já não havia mais nada. Acabou por me dar outra visão, percebi que estava só a conviver com as pessoas dos grandes centros urbanos. De repente, conheço cidades mais pequenas, outro tipo de pessoas, e aos poucos vou encontrando um português que nunca ouvi falar.
Há uma grande variedade de sotaques, de calões…
É uma questão de imaginar eu a chegar a São Miguel, aos Açores. Começo a ouvir as pessoas a falar e penso “este espetáculo vai ser um lixo, ninguém me vai perceber porque eu também não estou a perceber ninguém”. Por isso foi muito ilustrador, ao nível da minha tour, perceber que às vezes pensamos nas pessoas como sendo um todo quando, na verdade, estamos só a ver uma franja daquela população e generalizamos.
No fundo, tem que ver com as limitações da nossa própria experiência de vida.
Exato. Do mesmo jeito que em Angola, até aos meus 14 anos, o mundo era o bairro do Sambizanga, onde viva, do Cazenga e pouco mais. E de repente saio dali e começo a ver outras coisas, outras realidades, a interagir com outras pessoas com mentalidades diferentes. O mundo é enorme, mesmo cada país tem uma dimensão que não se tem noção. É importante ir aos sítios, conversar com as pessoas, até para as conhecer. O Fernando Rocha disse-me uma vez, a propósito de uma discussão que tive com alguém nas redes sociais que resolveu mostrar o seu preconceito. “Existem filhos da mãe em todo o lado. E o filho da mãe destaca-se, porque nunca fica calado, acha que a opinião dele é mesmo importante”. E é quem nós encontramos mais vezes no dia-a-dia, são as vozes mais altas; se não tivermos cuidado, acabamos por assumir que isto é a realidade de todo um povo. Mas quando começamos a andar, a conhecer, percebemos que, apesar das diferenças, no fundo somos todos iguais. Quando somos confrontados com determinada situação, agimos todos mais ou menos da mesma forma.
Sobre os Tuneza, o grupo do qual fez parte em Angola, teve uma popularidade extraordinária. Qual foi, de facto, a importância dos Tuneza, no seu percurso e no humor de Angola?
Havia uma escassez nesta área — vínhamos do teatro e acabámos por estar no sítio certo à hora certa. Era um período novo para o país, o pós-guerra, em 2002/2003. Havia uma sensação de “é agora”, de que íamos crescer, acabou a guerra e íamos ter várias oportunidades. A cultura é sempre um elemento muito importante, não só como entretenimento mas também para poder educar a sociedade, e foi o que tentámos fazer. Quando começámos a fazer pequenos sketches ao vivo em vários espaços, para promover o teatro, escolhemos a comédia como género, porque não queríamos aparecer com uma peça dramática, tinha que ser algo engraçado. A ideia era levar pequenas amostras para, no final da apresentação, dizermos: “Vamos apresentar-nos neste dia no teatro tal, apareçam”.
Só que da primeira vez que fizemos isso correu tão bem que, quando saímos do palco, anunciaram: “E eles voltam daqui a pouco para mais uma apresentação”. E nós ficámos, “que apresentação?”, não tínhamos mais material. Foi aí que entrou o improviso. Dizíamos “vamos entrar e vamos olhar para a sala, ver com o que é que podemos gozar”. E os Tuneza começam a ganhar muito esta dinâmica, a ganhar esta elasticidade de conseguir criar no momento, brincar com pessoas, com as situações… Aquilo foi crescendo, em 2003 já estávamos em quase todos os palcos, foram começando a aparecer contratos para pequenos eventos corporativos. Éramos novos mas era uma coisa nova, as pessoas queriam aquilo. E começaram a pagar-nos cachets. Foram aparecendo convites para a rádio, televisão.
O grupo foi responsável por criar uma infraestrutura ou um mercado que antes não existia em Angola?
É das coisas de que nos vamos orgulhar para sempre. Fomos o grupo que mostrou que era possível criar um mercado humorístico. Fomos os primeiros a fazer disto um trabalho, a entrar a sério no show business. Atuávamos em todo o país em espetáculos em nome próprio, as pessoas iam para ver os Tuneza, isto ainda antes de estarmos na televisão. Fazíamos espetáculos de Natal em que as pessoas, no dia 25, saíam de casa para nos ir ver. Isso levou a que os promotores começassem a pensar em nós como um negócio, criou-se uma estrutura. Depois, quando fomos para a televisão em 2008, foi um boom completo, foi das coisas mais fantásticas que as pessoas alguma vez viram em televisão. Fomos o primeiro grupo a fazer um DVD de humor para o mercado, lançámos CDs, dois discos chamados Humor ao Domicílio Volume 1 e Volume 2. Crescemos muito e fizemos crescer muito o mercado. E isso começou a inspirar muita gente a partir daí, outros humoristas que acrescentaram mais lenha a esse fogo, como o Calado Show, o Projecto Goz’Aqui. Tudo isso começou a surgir pós-Tuneza.
Em 2019 saiu do grupo e, mais ou menos na mesma altura, resolve vir para Portugal e começar a construir carreira aqui. De que forma é que essa mudança condicionou ou alterou a sua forma de preparar um espetáculo, de fazer comédia?
Não condiciona, dá é mais trabalho. Venho de Angola, as minhas referências são outras e isso é bom, mas é preciso encontrar um ponto de convergência para que o espetáculo funcione. Lembro-me de fazer a minha primeira atuação no Stand-Up Sessions, com o Hugo Sousa, o António Raminhos e o Francisco Menezes. Tento ser sincero quando estou em palco e nessa atuação disse: “Acho muito estranho convidarem-me, nem eu nem vocês temos alguma coisa em comum. Mas pronto, estou aqui, vou fazer a minha cena, amanhã já vou embora e vocês provavelmente nem se vão lembrar de mim”. E as pessoas riram-se muito desta minha sinceridade. Só que correu tão bem da primeira vez que, da segunda, já estava confortável e a atuar como se estivesse em Angola. Aí entendi: as pessoas percebem, mas tenho de ter a responsabilidade de convergir, ter um cuidado com a linguagem — lá temos uma linguagem muito informal, diferente da de cá. Depois, há temas em que Portugal é mais sensível do que Angola, com a onda woke e o politicamente correto. Estou um bocado atrasado em relação a isso, então quando abordo coisas como relações amorosas, por exemplo, tenho que ter o cuidado de transportar as pessoas para a minha realidade, para perceberem de onde é que estou a falar e não acharem que sou um tipo mal-educado ou desrespeitoso.
Depois, a partir do momento em que me torno conhecido, com o Taskmaster na RTP, o Mano a Mano na TVI ou o Responder à Letra na Rádio Comercial, isso facilitou, as pessoas já sabiam de onde é que eu vinha, que era alguém que estava a ter contacto com esta realidade pela primeira vez. Não nos transformamos da noite para o dia; nem ao fim de cinco anos estou completamente entrosado. Mas esforço-me e estou muito grato pelas oportunidades que me têm sido apresentadas no mercado português, pela solidariedade que encontrei junto dos meus colegas da área. Foram muito meus amigos e isso é raro de se ver — às vezes, quando chegamos a um sítio onde as pessoas estão com medo que lhes tiremos o lugar, mas eles abriram-me todas as portas. Tanto é que muitas pessoas viram-me pela primeira vez no Pi100 Pé do Fernando Rocha, e no Stand-Up Sessions do Hugo Sousa. Isso deu-me um à vontade muito grande.
Já disse noutras ocasiões que ser “o angolano em Portugal” o ajuda, porque o diferencia dos seus colegas. Sendo um humorista negro, tem a facilidade de dizer certas coisas que um humorista branco pode não querer dizer, para não correr o risco de ser mal interpretado? Por outro lado, tem receio de que às vezes o público se esteja a rir “pelos motivos errados”? Como é que lida com estas duas dinâmicas?
Com muita observação e muito sentido crítico. O facto de ser angolano, de ter esse background, ajuda muito porque cria uma coisa nova, e o que é novo atrai sempre. Ao mesmo tempo, não quero que o facto de ser angolano seja o motivo da piada. Quero que ela assente na minha visão e no argumento que trago.
Sem, ao mesmo tempo, perder a sua forma de se expressar?
Exato, porque isso faz parte da comédia. Tenho a minha forma de “gingar”, mas quero que as pessoas se riam das minhas observações, daquilo que compus, é aí que está a minha arte. Não vou ser engraçado só porque nasci angolano, mas sim porque, dentro da minha “angolanidade”, construí uma narrativa, fiz uma análise sobre determinado assunto e apresentei-o em forma de piada. Claro que todos os comediantes têm uma “funny voice” ou uma “funny face” — quando ouvimos o Ricardo Araújo Pereira, conseguimos perceber onde é que ele inclina mais a voz ou o gesto para a performance ficar mais engraçada. Todos têm uma maneira, seja na voz ou na expressão corporal, ou facial, para poder reforçar a ideia do texto.
Depois, sobre quem pode ou não fazer piada: vamos imaginar que duas pessoas lutaram e um dos tipos perdeu a luta. É mais fácil o tipo que perdeu a luta gozar com o facto de ter perdido ou o que ganhou fazer piada sobre o que perdeu? Se fizermos uma análise histórica e pensarmos “gostei mesmo desta piada do Gilmário sobre pretos, mas se fosse um branco a fazer, ia dar problema”, claro que ia. Porque existiu uma luta em que um saiu a perder e outro saiu a ganhar. E o que perdeu já está no chão. Se fizer a piada até pode ajudar a criar uma certa leveza sobre o assunto. Agora, quem ganhou está num lugar de superioridade. Até pode estar a partir de um local genuíno e sincero, mas nunca vai parecer isso. Vai ser sempre como se não estivesse a ser humilde, como se se estivesse a vangloriar pelo que fez. Não estamos a falar de uma luta no ringue. Estamos a falar de uma coisa que não foi justa, não teve regras, foi desigual.
Em Angola foi sequestrado.
Faz agora dois anos, em fevereiro.
Em entrevistas depois do caso, disse que acredita que parte da razão pela qual foi raptado se prendia com as suas convicções políticas e o apoio a Adalberto Costa Júnior nas últimas eleições. O que é que o leva a acreditar nisso?
É a realidade do país em que vivemos. Antes ouvia dizer da boca de amigos que passaram por coisas, mas quando estamos de fora achamos sempre “não, não é possível, como é que alguém vai ser perseguido só por ter dito alguma coisa”? Até que começou a acontecer comigo. Era um momento muito tenso na nossa política. Pela primeira vez o partido no poder perdeu as eleições. Ficou claro para quem quisesse ver. Havia um descontentamento muito presente na população ao longo dos últimos anos, o novo Presidente [João Lourenço] não conseguiu cumprir com as expectativas das pessoas, infelizmente. Durante aquele processo eleitoral havia uma tensão muito grande, inclusive cogitava-se a possibilidade de haver conflitos armados. As pessoas estavam desesperadas e prontas a ir para a rua, foram votar e foram roubadas. Eu fui um dos artistas que se juntou ao povo nesse sentimento de que o novo Presidente não nos ia levar a lado nenhum. Criticava. Quando chegaram as eleições, fico em xeque porque estou do lado contrário.
Para termos um avanço democrático é preciso haver alternância. Não é que o partido que vem a seguir vá resolver todos os nossos problemas, mas precisamos de dar este passo, que nunca foi dado desde 1975. Tivemos quase 30 anos de guerra civil por conta disso. Aliás, toda a África vem fazendo essa luta, de ter eleições transparentes. No meu caso, por ter falado nisto, já tinha sofrido outro tipo de boicotes; quando foi o assalto, de início até pensei que não era nada, porque tinham acontecido com alguma frequência no meu bairro. Mas quando fui encapuzado e me levam para outro sítio, e começam a dizer “tens que ter cuidado com aquilo que dizes, com as críticas ao sistema”, percebi que não era só um assalto.
Era algo mais deliberado?
Se o tipo me vem roubar, pode levar o carro, o telefone, porque é que vai falar desse assunto? Não faz sentido. E depois daquilo, tive pessoas ligadas ao aparelho do Estado que me ligaram, a aconselharem-me a ter cuidado com as coisas que andava a dizer. Não digo isto para ganhar visibilidade ou, como as pessoas dizem, “só porque estou em Portugal”. A prova é que estou sempre a ir a Angola, o que tiver de acontecer, acontece. Mas não vou mergulhar na cena do medo, daquilo que cantava o falecido Waldemar Bastos: “O meu filho não fala política”.
À medida que vou ficando mais velho, percebo que é preciso falar, que nos países que estão melhor que nós as pessoas falam, dão a sua opinião, fiscalizam o seu sistema político. Só há boas escolas, bons hospitais, boas estradas, boa segurança se tivermos boa política. Às vezes fala-se da “masculinidade tóxica”, que nós homens temos de nos livrar dela porque também é para nosso bem. Em Angola temos uma “política tóxica”, em que certas pessoas acreditam que só elas têm condições para resolver os problemas do povo, que mais ninguém tem essa capacidade. Ou assumimos que somos uma ditadura ou, se continuamos a falar que é uma democracia, temos que a reforçar, até porque as democracias vão-se desenvolvendo aos poucos. Eu estou deste lado e todo o mundo em Angola sabe que estar deste lado é perigoso, é roçar o fio da navalha.
Começou recentemente a apresentar o 5 Para a Meia Noite na RTP, que foi um passo muito grande para a sua carreira. Como é que surgiu o convite?
Acho que surge da minha prestação no Taskmaster. As pessoas gostaram muito, a RTP também gostou, e começaram a pensar “onde é que podemos pôr o Gilmário”? Daí surgiu este desafio, não só para mim mas também para a RTP, de apresentar a 12.ª temporada do 5 Para a Meia Noite. O Nuno Vaz [Responsável de Conteúdos da RTP] falou comigo, disse que achava que aquilo me ficava bem. Claro que a adaptação não acontece logo, mas tenho a Meio Termo a produzir comigo, a ensinar-me tudo e a dar-me todas as ferramentas. Tenho uma equipa muito generosa, que entende que é a minha primeira experiência, e estou a receber esse treino.
Sente alguma pressão para marcar a diferença? Estamos a falar de um formato com muita história, já são quase 15 anos na televisão pública, muito associado nos últimos anos à Filomena Cautela.
Acho que quanto mais próximo estiver de quem sou já será diferente. Não preciso de forçar muito, até porque toda a equipa de guião também é nova. Quando tudo é novo é difícil não ser diferente. Todos os conselhos que tenho recebido de pessoas com experiência na área, inclusive da própria Filomena, dizem-me “vai, sê tu mesmo, sê o Gilmário Vemba, não te preocupes com como é que vais mudar isto ou aquilo”. Se deixar que o programa me leve, vou acabar no sítio certo. Estou a confiar nisso, a livrar-me cada vez mais do medo e do nervosismo de não querer falhar. Acredito que estamos no bom caminho, estamos a crescer, quer em audiências como na qualidade do programa.
Acaba por ser o exemplo mais recente de uma tendência de humoristas não-portugueses a conquistarem público em Portugal. Temos, por exemplo, muitos nomes vindos do Brasil, como o Whindersson Nunes, o Gregório Duvivier ou o Fábio Porchat. Inclusive já se vai ouvindo falar de exemplos contrários, de portugueses a ir para fora, para os países de língua portuguesa, e a terem contacto com esses públicos. O stand-up em Portugal tem crescido muito nos últimos 10, 15 anos — acha que essa pode ser a próxima evolução?
Quero muito que seja. Acho que a comédia ainda está muito fechada em cada país. Os portugueses estão em Portugal, os angolanos estão em Angola, os moçambicanos estão em Moçambique, os brasileiros estão no Brasil, etc. — embora o Brasil já comece a sair mais porque, obviamente, em termos de mercado é muito maior, e porque também são bons e investiram muito no stand-up. O Whindersson Nunes já fez a Altice Arena, o Fábio Porchat esteve no Campo Pequeno.
E até começam a ter programas de televisão. Além do Gilmário, estou a lembrar-me do Viagem a Portugal, do Fábio Porchat, baseado na obra do Saramago.
Exato. Temos todos a mesma língua, em todo o lado existem pessoas com ideias a nível da cultura. Porque não ter um corredor para os artistas poderem sair daqui e ir para Angola ou para Moçambique experimentar coisas, e vice-versa? Em Angola, tenho um projeto chamado Sisco — Festival Internacional de Comédia. Infelizmente tem sido adiado, por várias razões, mas vamos conseguir arrancar com ele, tenho fé. Queria começar com Moçambique, porque em termos de proximidade é mais fácil, são três horas de avião. Fui infeliz na minha primeira tentativa, a pessoa que estava a trabalhar comigo deu uma de bandido e levou-me o dinheiro. Precisamos de capital para poder fazer as coisas em condições. Se fizer alguma coisa em Moçambique, o que ganhar lá quero investir para fazer o projeto crescer; em Angola e em Portugal o mesmo. Mas estamos a crescer aos poucos e ganhamos todos com isso.
Claro que é muito difícil convencer um comediante português com algum nome a ir para Angola “à experiência”, mas por isso é que quero construir capital para poder pagar a essas pessoas que já têm experiência no stand-up. Do ponto de vista técnico e do conhecimento, Portugal está mais avançado, as pessoas já acompanham boa comédia há muito tempo. Quem vá a Angola e pergunte a dez comediantes quantos deles conhecem os Monty Python, incluindo eu, vi uma ou outra coisa, mas já depois de vir para Portugal, porque as pessoas me disseram. Em Angola, quantas pessoas conhecem o George Carlin? Quase ninguém. Aqui é diferente. Às vezes estou a ouvir o podcast do Ricardo Araújo Pereira e fico a pensar “quem são estas pessoas de quem ele está a falar”?
O desafio é também criar essa escola, essa educação cultural, nos país africanos de língua portuguesa?
Sim. Há coisas que comecei a desenvolver porque vi ou ouvi alguém a fazer. Já falava inglês, por isso a língua não foi uma barreira para mim. Mas outros tiveram acesso de outras formas e puderam desenvolver-se mais. Quando ouvimos falar num humorista, pensamos só no performer, no tipo que está em palco, mas também existe a escrita. Nos Tuneza éramos os nossos próprios guionistas; quando chega aquele ponto em que a criatividade está no limite, é importante ter pessoas a escrever comédia connosco, pessoas que têm as referências. Daí a necessidade de criar este corredor. Quem sabe se, além de aprender, também podemos ensinar algumas coisas.