Cresceu numa família ligada à literatura, às artes e à política, estando na linha da frente no combate ao fascismo, e talvez por isso Gonçalo Amorim ainda se lembre de com quatro anos ir a manifestações na Avenida dos Aliados às cavalitas de alguém. É difícil conversar com ele sem falar de política, de resistência e de liberdade.
Descobriu o teatro com 14 anos, quando frequentou as aulas de expressão dramática do pai, mais tarde mudou-se para Lisboa para estudar antropologia, mas não chegou a terminar o curso, pois o teatro tinha insistido em entrar na sua vida. Já com a certeza do que queria fazer, passou pelo conservatório e ganhou consciência do teatro também como ato político. Durante uma década foi ator da companhia ‘O Bando’ até que em 2007 experimentou encenar e nunca mais abandonou esse papel.
Em 2010, Gonçalo Amorim encena “A Morte de um Caixeiro Viajante” para o Teatro Experimental do Porto, a companhia mais antiga do país que o seu avô materno, ligado à elite intelectual do Porto, tinha ajudado a fundar em 1951. É convidado para ser diretor artístico e recusa, aceitando o desafio dois anos mais tarde. Em jeito de balanço, recorda o ‘acidente de automóvel’ quando a Direção Geral das Artes cortou o financiamento da companhia, levando à luta pela sua sobrevivência, ou o facto de durante vários anos o TEP não ter uma sede definitiva e todo o seu arquivo estar disperso pela cidade.
Em julho passado, a autarquia cedeu à histórica companhia um edifício de dois pisos no CACE Cultural do Porto, em Campanhã, para instalar a sua sede, com direito a sala de ensaios, salas de arquivo, acervo ou reuniões, e onde a partir de 2023 também será possível apresentar os seus próprios espetáculos.
Enquanto a inauguração oficial não acontece – está prevista para outubro — o espaço está a ser morada de uma residência artística para o espetáculo “A Estética da Resistência”, que irá estrear a 30 de março no Teatro Nacional São João. Em outubro, a nova sede do TEP vai receber a companhia chilena, Teatro La María, com quem a companhia irá coproduzir a peça “Estreito”, com estreia marcada para 17 de novembro no Teatro do Campo Alegre.
Discreto, persistente e inquieto, Gonçalo Amorim acumula a direção do TEP, onde admite não ter uma missão internacional, com a do FITEI – Festival Internacional de Expressão Ibérica, onde defende a continuidade de projetos. Garante que não é possível fazer teatro sozinho e não tem a ambição de criar nada de raiz, espera apenas que um dia exista uma verdadeira regionalização.
Nasceu no Porto numa família ligada às letras e à política. O que é que isso fez de si?
Nasci no Porto numa família de classe média, os meus avós maternos eram advogados, o meu avô, Orlando Juncal, foi também um dos fundadores do Círculo Teatral Portuense, que depois deu origem ao Teatro Experimental do Porto (TEP). A minha mãe é arquitetura, o meu pai, que já faleceu, era professor de português e francês e esteve envolvido na crise académica de Coimbra. Na verdade, eles conheceram-se através do teatro, o meu pai fazia parte do CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra e a minha mãe que estudava no Porto em Belas Artes fazia excursões até Coimbra para ver teatro e um dia reparou naquele rapaz. Talvez tenha crescido mais no meio da política, os meus pais estão mesmo envolvidos na resistência ao fascismo, o meu avô materno esteve preso vários anos. Cheguei a ir a muitas manifestações na Avenida dos Aliados em pequeno, dizia à minha mãe que íamos ao ‘viva, viva’ porque ouvia essa expressão muitas vezes às cavalitas de alguém, devia ter uns 4 ou 5 anos.
Recorda-se de como era culturalmente o Porto nessa altura?
Saí do Porto com 13 anos para S. Pedro do Sul e mais tarde para Lisboa. Sempre senti uma grande diferença entre Porto e Lisboa, o Porto é uma cidade super interessante, muito tertuliano, mas onde há uma certa visão de que é em Lisboa que se vai conseguir ser famoso e ter talento. Lembro-me que via espetáculos no TEP e na Seiva Trupe, mas não havia quase nada, só depois é que entram os anos 90 e esse é um período cultural muito intenso. O Ricardo Pais vai para o Teatro Nacional S. João, a Isabel Alves Costa vai para o Rivoli, são criadas companhias como As Boas Raparigas e há qualquer coisa a crescer no Porto que termina depois em 2001. A grande crise cultural começa precisamente por não se aproveitar nada da Porto 2001, o que resulta depois de uma espécie de travessia no deserto.
Soube logo o que queria ser?
Não, de todo. Sinto-me mais filho da literatura, da discussão política e até da televisão do que propriamente do teatro. O meu pai dava aulas de expressão dramática em S. Pedro do Sul, fui aluno dele e é aí, com 14 anos, que tenho o meu primeiro contacto com o teatro, mas estava muito longe de pensar em grandes autores ou na possibilidade de seguir uma carreira artística. Aos 17 anos vou estudar antropologia para a Universidade Nova, em Lisboa, e essa escolha é fruto da minha indecisão sobre o que fazer, fui porque os meus colegas de S. Pedro do Sul também vão e o meu percurso é quase sempre feito de afetividades. Durante o curso, que não terminei, começo a fazer teatro na universidade com a Natália Luiza e o Miguel Seabra e é com eles que sou encenado e dirigido pela primeira vez. Senti mais exigência e responsabilidade e mal comecei a fazer teatro tive noção que o meu futuro poderia passar por ali. São eles que me ajudam a preparar o monólogo para entrar no conservatório, em 1996.
Como foi essa experiência?
Quando entro para o conservatório ganho consciência do teatro como um ato político, lembro-me de querer aproveitar todos os conhecimentos técnicos, mas mais uma vez meto-me na associação de estudantes. Acabo o terceiro ano e escolho trabalhar com ‘O Bando’, onde estou 10 anos como ator.
Quando descobre a encenação?
Sempre gostei muito de ensinar, aliás estudava no conservatório e já dava aulas no Instituto Superior Técnico de expressão dramática. O primeiro espetáculo que enceno chama-se “Rumor Clandestino”, em 2007, e era um áudio walk escrito pelo Fernando Dacosta, um jornalista e estudioso da obra de Agostinho da Silva. Coloquei as palavras na boca de duas personagens animadas e gostei muito de cumprir esse papel de encenador. Já estava a fervilhar, acho que não havia outro encenador que me aturasse mais [risos].
Encena “A Morte de um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, no TEP em 2010, convidam-no para ser diretor artístico, mas recusa. Porquê?
Quando o Júlio Gago vai a Lisboa falar comigo para me convidar, o TEP e o Porto para mim estavam longe dos meus planos. Em Lisboa era freelancer e estava numa fase boa, na minha segunda encenação recebi o prémio da crítica e estava tudo a correr bem. Depois comecei a hesitar, tive o meu primeiro filho em 2010 e aí comecei a pensar que estar constantemente a tentar vender um projeto para chegar aos teatros é cansativo e sempre batalhei muito pelos artistas terem os meios de produção do lado deles. Com o TEP não me livrei disso completamente , mas a possibilidade de ter uma casa onde podia planear as coisas a longo prazo seduzia-me muito.
Houve uma responsabilidade acrescida por se tratar de companhia tão antiga e com um legado tão grande?
Sim, claro, mas é um peso que tenho de me libertar para poder criar e encontrar soluções. Enquanto o Luís Miguel Cintra pode dizer: “boa noite, a Cornucópia fechou”, eu tenho a preocupação latente de não deixar o TEP morrer. O TEP não é meu, é dos 250 associados, que noutros tempos chegaram a ser três mil, ultrapassando o número de sócios do Futebol Clube do Porto. A minha função como diretor artístico é tentar voltar ao que o TEP podia ter sido e acabou por não ser.
Como assim?
Podia ter sido um The Royal Court, como o de Londres, um espaço de novas dramaturgias com encenadores jovens e uma visão contemporânea. O TEP é de certa forma contemporâneo, quando surge reúne a juventude à sua volta, mas não foi esse teatro de referência. Se estivesse em Lisboa provavelmente teria o seu espaço e uma visibilidade diferente ou maior. Claro que nem todas as companhias têm de se internacionalizar, o TEP é uma companhia que terá os seus laços com o estrangeiro, mas é essencialmente uma companhia de cidade e quer ser uma companhia de cidade. Não há uma missão de internacionalização, mas sim de criar cada vez mais raízes no Porto, conquistando espaço cá. Quando chego, a companhia estava associada ao clássico e a uma coisa muito antiga, hoje tento olhar para os encenadores, dramaturgos e artistas da cidade e envolvê-los, chamando-os a colaborar.
Que balanço faz destes nove anos?
O TEP sempre teve pedras no caminho, passou por incêndios, várias dificuldades financeiras e ocupou vários espaços temporários, mas fomos sempre superando tudo com criatividade, com energia e com a ajuda dos nossos pares. Quem acha que é possível fazer teatro sozinho está enganado. Não é. Em 2017/2018, quando a Direção Geral das Artes retira o apoio financeiro foi, sem dúvida, o momento mais difícil. A sobrevivência da companhia ficou em causa, foi quase como ter um acidente de automóvel. Ao mesmo tempo, foi importante porque fez abrir os olhos a uma nova geração de pessoas que agora luta pelos direitos na cultura. Pessoalmente foi um período que me marcou bastante a partir do qual perdi o lado romântico que sempre me ajudou imenso. Nessa altura, foi a autarquia que nos ajudou.
Em 2021 volta a ser a autarquia a ajudar o TEP ao garantir uma sede.
A companhia não tinha uma sede definitiva desde 1994 — quando um incêndio destruiu a Sala-Estúdio do edifício da antiga Escola Académica, onde o TEP funcionava desde 1981. Em 1999, o teatro mudou-se para Vila Nova de Gaia, onde ficou até à mudança do executivo municipal. Em 2013, o vereador da cultura do Porto, Paulo Cunha e Silva, chama-nos para voltar à cidade, mas ficamos com uma presença muito espalhada pelo território. Ensaiávamos no Teatro do Campo Alegre, onde também guardávamos as obras de arte da companhia de de autores como António Pedro, Augusto Gomes, Ângelo de Sousa, José Rodrigues ou Júlio Resende, tínhamos um escritório e arquivo na Cooperativa do Povo Portuense, materiais de cenografia e luzes alojados num armazém na zona do Covelo e biblioteca, fonoteca e videoteca no Clube dos Fenianos Portuenses. A minha preocupação durante estes anos era não sair da direção com o arquivo todo espalhado, tinha quase a obrigação de conseguir uma sede, era fundamental que isso acontece. Esta nova solução, no CACE Cultural do Porto, permite-nos ter tudo concentrado. Aqui está já a funcionar a nossa sede, mas também a nossa sala de ensaios e local onde teremos o nosso arquivo e espólio protegido e em segurança. Só não vamos conseguir alojar toda a nossa biblioteca, trouxemos grande parte dela, mas os documentos sonoros irão permanecer nos Fenianos.
No entanto, este não será para já um espaço para apresentação de espetáculos…
Sim, está previsto que em 2023 o CACE tenha duas black box que podemos usar como palco, até lá iremos continuar a ensaiar e a trabalhar com os nossos parceiros, como Teatro Municipal do Porto, o Teatro Nacional São João, ou o Cine-Teatro Constantino Nery, em Matosinhos. É importante termos uma casa, obriga-nos a cuidar e a jardinar, é fundamental ter este contacto físico com um espaço, sem ele é difícil conseguirmos um equilíbrio, isso não se consegue com o digital.
Em 2014 torna-se diretor artístico do FITEI – Festival Internacional de Expressão Ibérica, um evento com 43 anos de história. Há uma tendência para abraçar estruturas antigas?
Talvez. Se já existem meios de produção num sítio porque vou criar um ao lado? Nunca tive a ambição de criar uma coisa de raiz. Há estruturas que mereceram um investimento do Estado durante muitos anos, mas que depois vão sendo abandonadas sem grande sentido, é quase como mandar dinheiro ao ar. Defendo um projeto de futuro e uma lógica de continuidade, felizmente que no TEP e no FITEI tentou-se sempre que houvesse uma renovação, aliás, estou sempre a pensar como é que reciclo o meu próprio trabalho e como posso estar relacionado com ele de outras maneiras.
Lembro-me de o ter visto em maio numa manifestação do setor da cultura nos Aliados. Como sentiu os efeitos da pandemia?
No caso TEP penso que até fomos um pouco sortudos, conseguimos reagendar a maioria dos nossos espetáculos e ter alguma atividade online. Pessoalmente foi duríssimo do ponto de vista psicológico, quando voltei a uma sala de ensaios percebi que sou completamente viciado em teatro. Durante esse período olhei muito para o tecido cultural que estava de rastos, onde claramente me sentia um privilegiado, e tentei ser o mais solidário possível com os meus pares. Este meu lado otimista mudou, são sempre os mesmos problemas, estão sempre a nascer rosas no deserto, a vida dos artistas é realmente uma montanha russa, onde temos de estar disponíveis para tudo. Claramente que me sinto cansado e um derrotado na linha de pensamento de esquerda europeu que sempre defendi.
Estamos em vésperas de eleições autárquicas, o que gostaria que mudasse na cidade?
Portugal já é um país pequeno, mas com estas eleições parece que fica ainda mais pequeno. Os discursos políticos tendem a não diferir muito e é importante que haja tensão na cidade, no fundo, que as pessoas não concordem umas com as outras. Gostaria de ver fortalecido o tecido independente no Porto, que brotassem como cogumelos estes pequenos espaços independentes de bairro. No que a mim me diz respeito, sinto que posso ser útil em enraizar cada vez mais esta companhia e no caso do FITEI conseguir dar visibilidade a estruturas da cidade. Tento pensar no Porto como um novo centro com vários centros e várias possibilidades de centro, gostava que o centro e a periferia estivessem sempre em diálogo e se confundissem e isso existe muito pouco. Quando trago companhias que não são do Porto ou de Lisboa ao FITEI sinto há sempre uma certa tensão na cidade e em algumas elites da cidade.
As grandes diferenças não se sentem agora tanto entre o Porto e Lisboa, mas entre o interior e o litoral?
Começo a sentir isso, sim. Portugal é um país tão pequeno que poderia ser muito mais fácil existir uma verdadeira regionalização, uma verdadeira transferência de poderes para as regiões e para as autarquias, e não esta descentralização encapotada de outra coisa qualquer. Sou completamente a favor da regionalização, acho que não deve haver medo em construir patamares intermédios de decisão política, não é isso que vai aumentar a carga do Estado se houver realmente coragem de a diminuir em Lisboa. Portugal continua a desequilibrar-se do ponto de vista político para Lisboa e do ponto de vista produtivo para o litoral. O norte, por exemplo, não tem praticamente nenhum centro de decisão política ou financeira cá em cima, o que é uma pena.