Exatamente sete meses antes de dirigir ao Tribunal Constitucional (TC) um requerimento a alegar a inconstitucionalidade da lei dos metadados, a provedora de Justiça tentou convencer em janeiro de 2019 o Governo de António Costa a alterar tal norma, invocando para o efeito dois acórdãos do Tribunal da Justiça da União Europeia (UE) de 2014 e 2016.
Nada foi feito e agora milhares de processos de investigação criminal correm perigo de vida depois de o TC ter largado a bomba da inconstitucionalidade com efeitos retroativos da lei aprovada em 2008. Pormenor importante: o acórdão aprovado por 11 conselheiros contra um segue precisamente precisamente a mesma jurisprudência europeia defendida pela provedora Maria Lúcia Amaral em 2019.
Mais: a então ministra Francisca Van Dunem, a quem foi dirigida a recomendação da provedora de Justiça, não só defendeu a constitucionalidade da lei, como disse expressamente: “A decisão do Tribunal de Justiça da UE não deverá afetar as investigações nacionais”. E acrescentou: “Temo não ser possível que o Governo possa lograr apresentar ao Parlamento uma proposta de lei com essa aspiração”, devido ao “calendário legislativo” — uma referência às eleições legislativas de outubro de 2019 — e à “complexidade de alteração legislativa” da lei dos metadados.
Certo é que a Francisca Van Dunem continuou como ministra da Justiça do XXII Governo Constitucional, só tendo deixado o cargo em março deste ano. Pelo meio, a ação do Governo foi marcada pelo combate à pandemia.
Provedoria da Justiça recomenda alteração à lei dos metadados
O Observador leu as cartas trocadas entre a provedora Maria Lúcia Amaral e a ministra Francisca Van Dunem, que estão disponíveis no site da Provedoria da Justiça, e explica-lhe os pormenores deste caso.
Contactada pelo Observador, Francisca Van Dunem não quis prestar declarações.
Maria Lúcia Amaral em janeiro de 2019: “Urge promover a reforma” da lei dos metadados
O ofício dirigido pela provedora Maria Lúcia Amaral à então ministra Francisca Van Dunem foi enviado a 29 de janeiro de 2019 e tem um contexto que é fundamental explicar.
O Tribunal de Justiça da UE tinha decidido a 8 de abril de 2014 que a Diretiva 2006/24/CE, que regulamentava a obrigação dos operadores de telecomunicações guardarem os metadados de todos os seus clientes, era inválida por não respeitar a Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
Como a lei portuguesa dos metadados, aprovada pelo Governo Sócrates em 2008, decorreu de uma transposição daquela diretiva, o problema jurídico era inevitável. E pior ficou quando o mesmo tribunal da UE reforçou a sua jurisprudência com novo acórdão em 2016. Grosso modo, o tribunal considerou ilegal “qualquer legislação nacional que preveja uma retenção geral e indiscrimindada de todos os dados de tráfego e de dados de localização de todos os assinantes e utilizadores registados com todos os meios de comunicação eletrónica”.
A provedora de Justiça não tinha dúvidas de que o “legislador português acolhe a solução que expressamente o Tribunal de Justiça censurou: prevê a conservação generalizada e indiferenciada de todos os dados de tráfego e dos dados de localização de todos os assinantes e utilizadores registados em relação a todos os meios de comunicação eletrónica”. Tal como o Tribunal Constitucional veio a confirmar agora em abril último.
Daí que Maria Lúcia Amaral tenha dirigido um ofício à ministra Franciscao Van Dunem com data de 29 de janeiro de 2019 onde foi bastante direta.
Penso, Senhora Ministra da Justiça, que urge promover a reforma da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho, de modo a que o regime nele fixado se conforme com o Direito, originário e derivado, da União”, lê-se no ofício dirigido a Francisca Van Dunem.
Apesar de a lei entrar na exclusiva competência legislativa da Assembleia da República (AR), Maria Lúcia do Amaral considerou que, tendo em conta a “incidência” que tal lei “tem em várias áreas da polícia de investigação criminal”, “a iniciativa da lei melhor caberá ao Executivo de que Vossa Excelência faz parte”.
Até porque a lei dos metadados “teve na sua origem uma proposta legislativa governamental” do então Executivo liderado por José Sócrates. Daí que, no entender da provedora, fizesse sentido que o debate no Parlamento fosse precedido “de uma proposta de lei preparada pelo Governo.” Daí, aliás, que tenha exortado diretamente o Governo (através da sua natural interoluctora, a ministra da Justiça) a fazê-lo em vez da AR.
É verdade que a provedora Maria Lúcia Amaral, ela própria juíza do Tribunal Constitucional entre 2007 e 2016, escreveu que o TC tinha julgado como constitucional em 2017 (Acórdão 420/2017) a norma que “estabelece o dever de os fornecedores de serviços de comunicações conservarem pelo período de um ano a contar da data da conclusão da comunicação os dados relativos ao nome e ao endereço do assinante ou do utilizador registado, a que o endereço de IP estava atribuído no momento da comunicação.”
Apesar dessa primeira conclusão pela conformidade constitucional, a provedora alertou que nada impedia que, num caso diferente, o “Tribunal conclua pela inconstitucionalidade da Lei n.º 32/2008”.
A igualmente vice-presidente do TC entre 2012 e 2016 reforçava que “melhor será que o legislador previna a sua invalidação por intermédio da competência estritamente cassatória do Tribunal Constitucional, adequando-o desde já às exigências decorrentes dos direitos fundamentais” da UE.
Van Dunem responde: “Temo não ser possível que o Governo” possa alterar a lei
Confrontada com esta recomendação da Provedoria da Justiça, a então ministra da Justiça acabou por defender a lei dos metadados aprovada e regulamentada no tempo do Governo de José Sócrates na resposta com data de 4 de março de 2019. Isto porque, apesar do Tribunal de Justiça da UE ter concluído pela “invalidade da Diretiva em causa”, Francisca Van Dunem entendia que a legislação portuguesa” respeitava um conjunto de “garantias no acesso aos dados de comunicações”.
Mais: Van Dunem estava convencida juridicamente que “a legislação portuguesa parece assegurar, apesar de tudo, medidas proporcionais suficientes”, pelo que “a decisão do Tribunal de Justiça da UE não deverá afetar as investigações nacionais”. Francisca Van Dunem estava confiante nisso mesmo e invocou o acórdão do TC n.º 490/2017 de 13 de Julho que atestava “tal conformidade”.
A então ministra da Justiça acabou assim por defender a constitucionalidade da lei dos metadados aprovada e regulamentada no tempo do Governo de José Sócrates. Porquê? Porque impunha um amplo controlo judicial, com a obrigatoriedade do acesso aos metadados ser precedido de uma promoção do Ministério Público e uma autorização expressa do juiz de instrução criminal.
Acresce a tudo isso outros pontos igualmente favoráveis:
- “O catálogo dos crimes está devidamente especificado” e os casos de segredo profissional estao devidamente protegidos;
- “A transmissão dos dados é limitada a determinadas pessoas”, ligadas à investigação criminal;
- E existiam “mecanismos de fiscalização externa geral” atribuídos pela lei à Comissão Nacional de Proteção de Dados e à ANACOM
Francisca Van Dunem ignorou um facto sobre a Comissão Nacional de Proteção de Dados que Maria Lúcia Amaral tinha recordado no seu ofício de janeiro de 2019. O Tribunal de Justiça da UE exigia que o acesso aos metadados fosse escrutinado por uma autoridade administrativa independente.
No caso português, a lei tinha nomeado a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). Ora, e tal como a provedora de Justiça recordou a Francisca Van Dunem, a CNPD tinha declarado a 18 de julho de 2017 (na Deliberação n.º 1008/2017) que a lei nacional dos metadados ia contra a Carta dos Direitos Fundamentais da União e a Constituição da República, tendo decidido “desaplicar” a lei dos metadados”.
A esse dado, Maria Lúcia Amaral acrescentava outro: “A lei portuguesa não obriga a que os dados sejam conservados em território da União, em contradição com o que decorre da interpretação feita pelo Tribunal de Justiça da UE”, lê-se no ofício da provedora.
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A única questão que Francisca Van Dunem reconheceu foi o facto de existirem alguns “aspetos a carecer de melhor estudo, de forma a ajustar a plena conformidade do regime previsto na Lei n.º 32/2008 de 17 de julho”. Contudo, exista uma “complexidade associada” à plena “compatibilização do direito fundamental da proteção de dados pessoais e da intimidade da vida privada face ao interesse geral da perseguição penal”.
Assim, Francisca Van Dunem prometia “acompanhar com preocupação” as questões suscitadas pela provedora Maria Lúcia Amaral. Contudo, a então ministra da Justiça, temia “não ser possível que o Governo” pudesse “lograr apresentar ao Parlamento uma proposta de lei com essa aspiração”. E porquê? Van Dunem invocou o “calendário legislativo” e a “complexidade de alteração legislativa” da lei dos metadados, “cuja competência pertence à Assembleia da República”, para não avançar com tal proposta.
Os argumentos do Tribunal Constitucional
O ponto concreto da lei dos metadados que levou o TC a tomar a sua decisão prende-se com a conservação por parte dos operadores de telecomunicações das comunicações eletrónicas, dados de tráfego e localização de todos os cidadãos. A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho estipula um prazo de um ano para que tais dados sejam de conservação obrigatória, de forma a ajudarem o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal a prevenirem, investigarem e reprimirem a prática de crimes graves, como terrorismo, tráfico de droga, de armas e de pessoas, corrupção, branqueamento de capitais, entre outros.
O TC não só colocou em causa o prazo de um ano, considerado excessivo, como também a proporcionalidade da lei. Ou seja, estão em causa os dados de todos os cidadãos, que são guardados e podem ser acedidos pelos órgãos de polícia criminal após a devida promoção do titular da ação penal (o Ministério Público) e a respetiva autorização do juiz de instrução criminal.
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Os conselheiros do Palácio Ratton afirmam igualmente que não respeita a Constituição o facto de os cidadãos desconhecer esse facto. Isto é, os cidadãos que não são considerados suspeitos pelas autoridades não são notificados pela Justiça quando os seus dados pessoais são acedidos pelas autoridades.
Aliás, é precisamente este último ponto — o acesso a dados sobre as “comunicações eletrónicas da quase totalidade da população”, nomeadamente de cidadãos sobre os quais não há qualquer suspeita da atividade criminosa — que leva o Constitucional a afirmar que a lei coloca em causa de “modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à autodeterminação informativa.”
O TC também contesta o facto de a lei não prever o armazenamento dos dados num Estado-Membro da União Europeia, o que coloca em causa a fiscalização do acesso aos mesmos por parte de “uma autoridade administrativa independente”, lê-se num comunicado emitido pelo Constitucional a 27 de abril.
A Procuradoria-Geral da República anunciou esta segunda-feira que irá requerer a nulidade do acórdão do TC.
Texto alterado às 10h45m com novo quarto parágrafo