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Poucos dias depois da notícia da morte de Yevgeny Prigozhin, vários familiares de combatentes da Wagner reuniam-se à porta do escritório da empresa na cidade russa de Goryachy Klyuch, uma das principais bases daquela milícia. Traziam muitas incertezas sobre o futuro e queriam fazer perguntas aos responsáveis. “A Wagner foi decapitada. O que fazemos agora?”, perguntava a mulher de um dos mercenários, que foi ouvida pelo Washington Post no local. “Rezo a Deus para que a empresa encontre um novo líder que valha a pena.”
Nos grupos de Telegram da Wagner, as perguntas também têm surgido em catadupa. E a resposta tem sido sempre a mesma: “Até que as circunstâncias do incidente sejam esclarecidas, pedimo-vos que não cedam a provocações e sejam pacientes. Os empregados e os departamentos da empresa continuam a trabalhar.”
A verdade é que, contudo, a morte de Prigozhin e de outros importantes líderes da Wagner como Dmitry Utkin na queda do avião deixaram o futuro da maior empresa de mercenários da Rússia num limbo. “Prigozhin era a cara do grupo Wagner, era a persona pública”, resume ao Observador Vanda Felbab-Brown, investigadora do think tank norte-americano Brookings, que se tem dedicado nos últimos anos a estudar a fundo a Wagner.
“Mas é um erro reduzir as operações da Wagner a Prigozhin. Ninguém gere uma firma com milhares de homens e várias empresas subsidiárias sozinho. E Prigozhin tinha um diretor executivo, um responsável financeiro, um comandante militar, etc.”, acrescenta.
A forma como a Wagner vai reagir à decapitação das suas lideranças, porém, é ainda uma incógnita. Vários canais de Telegram próximos da Wagner têm noticiado que Prigozhin tinha um plano de transição para o caso de ser eliminado, segundo revelou um especialista ao The Cipher Brief. O mesmo foi reforçado por uma fonte dos serviços secretos militares russos ao Al-Monitor. Mas os contornos desse plano de transição são ainda totalmente desconhecidos.
Dois dias depois da morte do líder, o Conselho de Comandantes da Wagner ainda não tinha emitido qualquer comunicado público, como notou o Instituto para o Estudo da Guerra, que atribui essa falta de reação ao possível “caos e confusão dentro das fileiras” da empresa. Para os analistas do Instituto, o futuro da Wagner não está nas mãos desse Conselho, mas sim do próprio Kremlin e, em concreto, de Vladimir Putin. Vanda Felbab-Brown concorda: “A Wagner vai sobreviver a Prigozhin se o Kremlin quiser que ela sobreviva. A dúvida é se Putin e o GRU [serviços de informações militares] vão querer partir a Wagner em várias entidades mais pequenas ou se querem manter o núcleo da Wagner, com o mesmo nome ou outro e com um novo líder escolhido por eles.”
Andrei Troshev, o “Grisalho” que trocou a Wagner e que pode suceder a Prigozhin
Em julho, ainda antes da morte de Prigozhin — mas já depois da rebelião levada a cabo pelo chef de Putin —, Putin assumiu publicamente que parecia querer seguir a segunda hipótese. Numa entrevista ao jornal russo Kommersant, o Presidente afirmou que ofereceu aos comandantes da Wagner a hipótese de continuarem a trabalhar sob a liderança de um dos seus, conhecido como Sedoy (“Grisalho”, em russo).
O verdadeiro nome de Sedoy é Andrei Troshev, coronel na reforma, antigo veterano das guerras do Afeganistão e da Chechénia e uma das figuras de destaque dentro da Wagner. Dúvidas houvesse, o próprio Troshev foi medelhado por Putin, juntamente com Dmitry Utkin e outros mercenários da Wagner como Alexander Kuznetsov, numa cerimónia do Kremlin em 2016.
“Parabenizo com sinceridade todos os convidados e os nossos heróis que, é claro, não cabem todos nesta sala”, disse à altura do Presidente, na altura de fazer o brinde, de acordo com o jornal Fotanka (um dos órgãos russos que mais tem acompanhado o percurso da Wagner ao longo dos anos). “Desejo a todos vós saúde e paz. Cada um de vós escreveu a sua própria brilhante página na História da Rússia.”
Nada que surpreenda, se tivermos em conta as ligações próximas da Wagner ao Kremlin ao longo dos últimos anos. Embora oficialmente a Wagner funcionasse como uma empresa independente — uma das várias empresas militares privadas que operam no país num vácuo legal —, há várias provas de que funcionaria como braço armado do Kremlin em vários conflitos onde não era conveniente ao Exército russo envolver-se diretamente. Os próprios Utkin e Troshev mantinham contactos regulares com o GRU, os serviços secretos militares, como provou o site Bellingcat.
O “Grisalho” é por isso uma espécie de número dois que, aparentemente, Putin sugeriu promover para o lugar de Prigozhin, ainda antes da morte deste. Veterano de guerra, ex-funcionário do Ministério da Administração Interna e comandante da Wagner na Rússia, conseguiria juntar os dois mundos da Wagner e do Kremlin. Mas, aponta Felbab-Brown, “é uma figura controversa”. “Ele não é um outsider como Prigozhin, é alguém com quem Putin e o GRU estariam muito mais confortáveis”, diz. “Mas está manchado pelas alegações de alcoolismo e problemas mentais.”
Em junho de 2021, por exemplo, o Fotanka noticiou que Troshev deu entrada num hospital em São Petersburgo, totalmente embriagado e a precisar de assistência. Os médicos estranharam os pertences que trazia consigo: cinco milhões de rublos e cinco mil dólares em dinheiro, mapas da Síria e recibos de compras de armas. Chamaram a polícia. Mais tarde, perceberam quem era o homem que trataram naquela noite.
Putin não quer repetir o “risco” de um monopólio como o da Wagner. E é aí que entram a Redut e a Convoy, dos seus amigos
Não só Troshev traz essa bagagem, como também o seu nome não voltou a ser mencionado por Putin. E, desde aí, Prigozhin não foi apenas afastado; morreu.
A única coisa que se sabe do “Grisalho”, desde então, é que abandonou a Wagner e se juntou à Redut, outra empresa de mercenários privada — o que, para alguns, adensa a teoria de que a Wagner pode vir a ser partida e o seu trabalho distribuído por vários grupos desse tipo.
É essa a convicção de Isabella Curie, outra investigadora que segue atentamente os passos da Wagner. “Não tenho a certeza que a sucessão vá ser interna”, diz ao Observador. “As ações de Prigozhin ao longo dos últimos oito meses, em particular a insurreição e as tiradas iradas sobre a guerra na Ucrânia, puseram a nu o risco de dar o monopólio da segurança a um só grupo.”
O futuro da Wagner, diz, será provavelmente a distribuição dos seus serviços por empresas mais próximas do Kremlin: a Redut, por exemplo, a par de outra empresa do género, a Convoy, “têm estado a recrutar combatentes em África”, aponta a especialista da Universidade La Trobe.
E não há dúvidas de que seria muito mais confortável para Putin contar com uma empresa como a Redut do que com a Wagner do imprevisível Prigozhin. “A Redut foi criada para proteger as fábricas que passaram a ser geridas por Timchenko”, denunciou um antigo militar e combatente da Wagner a um comité da Câmara dos Comuns britânica há alguns meses. “O padrinho deste projeto, Timchenko, foi proposto pelo Exército russo.”
Ora Timchenko é nem mais nem menos Gennady Timchenko, dono da maior distribuidora de petróleo da Rússia, amigo pessoal do Presidente e apontado por investigações como a dos Panama Papers como um dos testas-de-ferro de Vladimir Putin. Segundo o The Telegraph, a Redut chegou a ser encarregada de um plano para assassinar o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no início da invasão de larga escala, mas falhou — e a Wagner foi chamada para a substituir no campo de batalha.
A outra empresa mencionada por Currie, a Convoy, tem também laços a um amigo muito próximo de Putin, também várias vezes apontado como testa-de-ferro. De acordo com uma investigação do Dossier Center (o projeto do oligarca russo que passou dez anos preso, Mikhail Kodorkovsky), o magnata Arkady Rotenbeg é dono de 69% desta milícia, criada no outono de 2022. “Os comandantes são todos antigos Wagner. Conhecem-se todos há muito tempo”, confessou um ex-membro do grupo ao site russo iStories.
O rosto da Convoy é Konstantin Pikalov, conhecido pela alcunha “Mazay” e por um histórico de brutalidade. Em fevereiro deste ano, Pikalov foi sancionado pela União Europeia por ser à altura um dos comandantes responsáveis pelas atividades da Wagner na República Centro-Africana (RCA). “É acusado de ser o instigador do homicídio de três jornalistas russos em julho de 2018”, dizia Bruxelas, responsabilizando-o também por “graves violações de direitos humanos” praticadas pela Wagner no país, como tortura e execuções extrajudiciais. Mas, segundo uma investigação do Bellingcat, Pikalov obteve vários vistos de turista válidos para o espaço Schengen até março de 2021, fazendo frequentemente escala em vários países europeus quando ia ou voltava para a RCA — incluindo em Portugal.
São estas as figuras que, creem as investigadoras ouvidas pelo Observador, podem herdar algum do trabalho que até aqui pertencia a Prigozhin. “A Wagner é um grande conglomerado, espalhado por vários continentes, que envolve uma grande operação financeira que movimenta milhares de milhões de dólares e isso representa o risco de que quem a gere se sinta encorajado a desafiar o poder de Putin”, explica Felbab-Brown. “O que é o oposto do que o sistema russo quer, que é apenas preservar os interesses estratégicos e os bens económicos que a Wagner representa, sem a ameaça. Portanto acho que o mais provável é que nasça um mundo de pequenas empresas privadas de segurança [no lugar da Wagner].”
Transição em África, a maior dor de cabeça para o Kremlin
O grande desafio para o Kremlin, porém, é se essas empresas conseguem ter mão em toda a operação da Wagner, em particular em África, onde o grupo se tornou essencial para vários regimes.
Precisamente para acautelar isso, desde a rebelião de Prigozhin que o Ministério da Defesa russo tem feito uma série de viagens ao continente para tentar assegurar que parte dos trabalhos da Wagner transitam para a sua alçada.
O Financial Times e o Wall Street Journal garantem, segundo informações de fontes, que Moscovo já tem um homem para substituir Prigozhin em África e concentrar em si as operações: Andrey Averyanov, vice-chefe do GRU e responsável pela Unidade de Operações Secretas, que chegou a ser acusado de ter liderado a missão para envenenar o antigo espião Sergei Skripal e a sua filha. Averyanov foi inclusivamente convidado para a delegação oficial russa na passada cimeira Rússia-África, em São Petersburgo, onde conheceu pessoalmente vários líderes africanos.
O Wall Street Journal dá ainda mais detalhes sobre esta transferência de poder em África, que já estaria em marcha desde a rebelião de Prigozhin, ilustrando, por exemplo, que o embaixador russo na RCA passou a informação ao regime do país de que o responsável da Wagner no terreno seria substituído. E que o próprio Putin terá dito ao Presidente da RCA, Faustin-Archange Touadéra, que tinha chegado a altura de se distanciar de Prigozhin.
E o jornal também levanta a possibilidade de o traficante de armas Viktor Bout, que esteve preso nos Estados Unidos e regressou à Rússia há seis meses numa troca de prisioneiros, estar envolvido nesta remodelação da presença russa em África. Uma presença que Felbab-Brown explica como podendo servir para “dar o rosto de uma figura dramática à liderança” destas forças militares russas no continente.
Vanda Felbab-Brown considera que esta mudança em África não é assim tão difícil de executar. “A aura do grupo Wagner é muito maior do que o seu desempenho concreto no campo de batalha”, diz, destacando desastres em África como o combate aos islamistas em Cabo Delgado (Moçambique), onde a Wagner não teve sucesso militar. “O que a Wagner lhes vende é acima de tudo uma guarda pretoriana para quem os contrata e muitas outras empresas conseguem fazer isso também.”
Prigozhin só há um. Sucessor deverá ser mais discreto
Mas as réplicas da morte de Prigozhin em África ainda são imprevisíveis porque nem tudo se resume ao sucesso militar.
Isabella Currie nota, por exemplo, que “mesmo após a insurreição de junho, o grupo Wagner continuava a expandir-se no Mali e não parecia estar a ser afetado pelo que acontecia na Rússia”. O Wall Street Journal também notou que vários grupos de combatentes russos em África que trabalham com a Wagner mostraram a sua lealdade a Prigozhin após o motim em Moscovo, começando a usar um distintivo igual a um que ele usava.
E, já depois da morte de Yevgeny Prigozhin, um conselheiro do Presidente da RCA disse diretamente ao The New York Times que considerava o antigo chefe da Wagner um herói nacional e que se sentia de luto. “Mas há de haver um novo Prigozhin. Estamos à espera do próximo”, afirmou.
É difícil, porém, que Vladimir Putin queira arriscar criar uma nova figura mítica como Prigozhin. “A Rússia tem três objetivos aqui”, aponta Vanda Felbab-Brown. “Manter a estratégia, influência e recursos económicos que obtinha através da Wagner; continuar a poder negar oficialmente qualquer envolvimento nestas atividades; e não permitir que se crie um novo pólo de poder independente como o que Prigozhin criou. E, por isso, provavelmente vão preferir líder muito mais discreto.”