Madrid, fevereiro de 1995. Dulce Pontes preparava-se para atuar no Teatro Monumental quando, ainda no hall do hotel, o telefone de Guilherme Inês, músico, produtor e manager da fadista, tocou: do outro lado estava o agente de Ennio Morricone, maestro celebrizado por bandas sonoras como “Aconteceu no Oeste” e “Era uma vez na América”. O compositor queria convidar a cantora portuguesa para interpretar um tema do filme “Afirma Pereira”, com Marcello Mastroianni, que seria integralmente rodado em Lisboa. Pouco tempo depois deu-se o encontro, em Roma: numa tarde gravaram as vozes e os instrumentais, à noite jantaram todos na casa de Morricone.
Por esta altura, Guilherme Inês já levava mais de trinta anos de uma profícua carreira na música. Começara por ser guitarrista nos Hooks mas rapidamente se tornou multi-instrumentista, destacando-se como um dos bateristas mais importantes do seu tempo. “Eu era um puto que tinha jeito para os teclados e toda a gente sabia quem eram os craques da bateria e do baixo. Portugal era uma aldeia”, recorda Jorge Palma, que conhecera Guilherme no final dos anos 60, com quem gravaria alguns dos discos mais marcantes da sua carreira. “Eu estava a chegar da Nazaré, onde tinha tocado num bar, e nesse mesmo dia gravámos ‘O Lado Errado da Noite’”, conta Palma.
“Não havia sequer pré-produção. A música era assim: ‘Está entendido? Então bora tocar”, diz referindo-se ao disco que revelou canções como ‘Deixa-me Rir’ ou ‘Jeremias o Fora da Lei’. “O Guilherme tinha uma enorme capacidade matemática, de memória, de gerir todas coisas na sua cabeça. No ‘Asas sem Penas’, tínhamos músicas complexas em termos rítmicos e ele assegurou praticamente todas as faixas. Era um dos grandes bateristas que surgiram nos anos 60.” A parceria foi longa: tocaram ao vivo mas sobretudo em estúdio, em discos como ‘O Bairro do Amor [1989]’, ‘Asas sem Penas [1984] e ‘Té Já [1977]’.
Aos Hooks, seguiram-se os Zoo, os Chinchilas e Objectivo, esta última com Zé Nabo [baixista de Rui Veloso] e Mike Sergeant [Quarteto 111], Kevin Hoidale, Jim Cregan. Já com Guilherme na bateria – após uma primeira incursão pela guitarra em bandas anteriores –, o coletivo levou o seu rock progressivo até Vilar de Mouros, em 1971, cuja edição incluía no cartaz nomes como Elton John e Manfred Mann. Considerado o primeiro ‘Woodstock português’, foi uma espécie de prenúncio para a carreira do baterista e produtor, que viria a vencer o Festival da Canção com Dora – é o co-autor de ‘Não Sejas Mau Para Mim’ -, e Dulce Pontes, com o tema Lusitana Paixão.
Filho de Aníbal Lopes Inês e de Lídia Monteiro Scarpa Inês, ambos ligados à tipografia – o pai trabalhava na tipografia no Bairro Alto, e a mãe na parte administrativa da Tipografia Scarpa no Chiado, terá sido a mãe – que era pianista – a sua primeira grande influência musical. Aos 15 anos recebeu a primeira guitarra acústica, que a família ainda guarda na casa onde sempre viveu, nas Avenidas Novas, em Lisboa. Foi por ali que começou a reunir-se com amigos e músicos que despertavam para as novas tendências e para os ecos chegados do estrangeiro. Num tempo em que os instrumentos eram caros e os discos não abundavam, ele já dava nas vistas como músico. Franzino, alto, cabelo comprido e bigode, era, de certa forma, a personificação da cultura hippie em Portugal. Nascido em abril de 1951, morreu em setembro de 2021.
“O Zeca mijava-se a rir”
Júlio Pereira dormia na casa de um amigo quando andava a preparar uma série de concertos com Zeca Afonso. Foi num dos ensaios nesse apartamento que se lembrou de Guilherme Inês. “Conhecemo-nos num disco que fiz logo a seguir ao 25 de Abril, uma opereta rock chamada ‘Fernandinho vai ao vinho’ [1976]. Num dia que estava a ensaiar para os espetáculos do Zeca na casa desse meu amigo e lembrei-me dele para tocar percussão’ Era um músico e baterista elegante, e um condutor fantástico”, recorda o vencedor do Prémio José Afonso, em 1991, com o disco ‘Janelas Verdes’.
Ao volante da sua carrinha, uma Citroen GS castanha, Guilherme conduziu a banda por variadíssimas vezes até à Galiza e ao País Basco, onde Zeca Afonso gozava de uma enorme popularidade. “Tudo isto aconteceu num tempo em que havia uma grande curiosidade em Espanha, e noutros países da Europa, sobre o que tinha acontecido em Portugal, a revolução. O Zeca era convidado para festivais folk em vários países, havia uma componente política, músicos cujo repertório passava por uma espécie de ativismo político.”
Há uma outra característica que Júlio Pereira destaca: o sentido de humor. “Era fantástico, tinha um jeito incrível para contar anedotas. Eu, que nem gosto muito de anedotas, adorava. E o Zeca mijava-se a rir com essas anedotas. Isso acabou por ser um elemento muito importante para a banda que acompanhava o José Afonso”, recorda Júlio Pereira, que lhe pôs nas mãos o primeiro adufe. “Era impensável usar uma bateria nas músicas do Zeca. Mas até nas percussões o Guilherme era brilhante.”
Herman José recorda também a faceta humorística de Guilherme Inês. “Foi o primeiro músico profissional que conheci. Foi ele que me apresentou o Luís Pedro Fonseca [Salada de Frutas]. Quando fui desafiado a gravar o meu primeiro disco, é a ambos que recorro como músicos de estúdio. A partir daí nasceu uma amizade muito profícua, que apesar das distâncias se manteve inalterada. Lembro do Guilherme e do seu extraordinário sentido de humor. Fazia imitações do Jerry Lewis de rebolar a rir”, diz Herman, que gravou com ele o disco “Soft”, em 1974, onde tocou baixo, piano e cantou, deixando a secção rítmica nas mãos de Guilherme Inês.
Olhó robot
No início dos anos 80, Lena d’Água junta-se a Luís Pedro Fonseca e Zé da Ponte para a primeira formação dos Salada de Frutas. ‘Sem Açúcar’, o primeiro disco, assim batizado por decisão da cantora, teve como músicos convidados Guilherme Inês e Zé Carrapa. O primeiro registo teve uma receção moderada pela crítica e público, mas acabaria por encontrar o sucesso quando a banda lançou o famoso “Olhó Robot”. O videoclipe, gravado em Lisboa, mostra os músicos a divertirem-se na Feira Popular, sempre acompanhados de um robot. Na verdade, tratava-se de um brinquedo que Guilherme Inês tinha oferecido à filha.
Estávamos em maio de 1981. O single ficou na boca de Portugal, alcançando um enorme sucesso, com vendas acima dos 30 mil exemplares. Mas os problemas no seio da banda levaram à saída de Lena d’Água e de Luís Pedro Fonseca, ambos membros da formação original. “O disco foi gravado no outono de 1980, saiu em novembro, e depois convidamos o Carrapa e o Guilherme para fazermos os concertos. Era uma banda incrível, partíamos a loiça toda”, recorda Lena dÁgua, que acabaria por ser despedida num último concerto, na Festa do Avante. “Eles não se podiam queixar pelo meu profissionalismo, apenas da minha verdura, que por vezes me fazia parecer um pouco totó quando falava no meio das música, durante um concerto. E por vezes ainda sou [risos]”, conta. “Toda a gente diz coisas parvas no meio das músicas.”
Sabendo que alguns dos músicos a queriam dispensar, Lena preparou-se com afinco para esse último concerto. “Levei uma cábula com as coisas que queria dizer entre as canções. Foi um grande concerto, ao fim do dia, em 1981. Ainda existem fotos a preto e branco, lindíssimas.” Mesmo assim, após o concerto, a vocalista foi despedida nos camarins. No hard feelings: oito anos depois, volta ao estúdio de Guilherme Inês – o Namouche, dos mais emblemáticos, que ainda hoje existe – para gravar “Tu Aqui”, em 1989. “Parece que são duas vidas. Tinha na mão os originais do António Variações. Tinha gravado o Estou Além, com produção do António Emiliano, em 87, num disco chamado ‘Aguaceiro’. E acabei por gravar o ‘Tu Aqui’ com o Guilherme Inês, porque o estúdio nos fazia um preço melhor: 3 mil contos [15 mil euros]”
Com a saída de Lena d’Água, os Salada de Frutas voltaram a editar: primeiro saiu o ‘Se cá nevasse’ [1981], música que deixou o país inteiro a cantar, e ‘Crime Perfeito’ [1982]. Trinta anos depois, após a morte de Guilherme Inês, foi a filha a fazer a reedição em vinil. “Muitas pessoas lembram-se apenas do Robot, quando pensam nos ‘Salada’. Mas este é um álbum [Se cá nevasse] com tanta riqueza que tinha de ser reeditado. Aconteceu tudo muito rápido, mas ainda a tempo de ter sido o meu pai a remasterizá-lo”, conta ao Observador Mariana Scarpa Inês, que editou o vinil em Dezembro do ano passado, e que está agora a reunir o espólio do pai para realizar também um documentário. “Estamos à procura de apoios e de um produtor. Por outro lado, estamos a tentar chegar aos vários arquivos que podem ter material importante para o documentário. Este trabalho não é apenas para estar mais próxima do meu pai, é para conservar a memória e obra, que de outra forma se vai perder.” Entre outros planos da família está também a ideia de reunir os Salada de Frutas para um concerto de celebração da vida de Guilherme Inês.
Lágrimas
Com a produção de Carlos Cruz e encenado por Virgílio Castelo, em 1981, Guilherme Inês e Zé da Ponte fizeram audições para dois musicais que seriam apresentados no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Os dois fundadores dos estúdios Namouche compuseram a banda sonora para as peças ‘Quem tramou o Comendador’ e ‘Enfim sós’. Dora, que em 86 seria projetada graças à canção ‘Não sejas mau para mim’, com a co-autoria de Guilherme Inês, foi selecionada para protagonista das peças. Mas a cantora acabaria por fazer apenas uma primeira apresentação, desaparecendo depois para o Brasil.
A peça esteve interrompida durante alguns dias até ser encontrada uma nova cantora. Após um anúncio publicado no Expresso, várias candidatas surgiram nos estúdios Namouche para fazer audições. Com apenas 17 anos, acompanhada pelo pai, Dulce Pontes tentou a sua sorte e acabou por ficar com o papel. “Ela cantava muito”, conta a mulher, Helena Scarpa Inês, recordando o dia em que ficou à conversa com o pai da fadista, no hall, enquanto esta fazia uma audição com Guilherme Inês e José da Ponte. Selecionada, a estreia, com Mário Soares na plateia, foi apenas o começo de uma longa parceria com Guilherme Inês, que acabaria por se tornar produtor, manager e músico de estúdio nos primeiros dois discos: ‘Lágrimas’ e ‘Brisa do Coração’.
“Foi o período mais importante da vida do meu pai”, lembra Maria Inês, que acompanhava todas as viagens ao estrangeiro. Num tempo de forte promoção internacional, a carreira de Dulce Pontes levou-a praticamente a todo o mundo, do Japão aos EUA, Europa e África. O termo ‘world music’ ganhava fôlego e os convites para atuar chegavam dos quatro cantos. Foi assim que acabaram todos a jantar na casa de Ennio Morricone. “Lembro-me das vistas para a praça central de Roma, dos empregados que serviram o jantar com luvas brancas, da Dulce a cantar o Gaivota para os convidados, num piano de cauda que ele tinha na sala”, recorda a filha. “Foi incrível, senti que estava noutro planeta. Conhecia o Ennio Morricone porque sempre que andava de carro com o meu pai tinha de ouvir o que ele andava a ouvir.”
Com os três primeiros discos produzidos por Guilherme Inês – Lágrimas, Brisa do Coração e Caminhos – Dulce Pontes alcançava forte projecção internacional: a ‘Canção do Mar’, um dos seus maiores êxitos, fez parte da banda sonora de ‘As Pupilas do Senhor Reitor”, como tema de abertura da telenovela adaptada da obra de Júlio Dinis, e de Primal Fear [As duas faces de um crime], onde Richard Gere surge numa cena com o disco da cantora portuguesa na mão.
Em 1998, a equipa montou um estúdio numa ilhota da barragem de Castelo de Bode. Foi preciso levar um piano de barco e montar o setup de instrumentos que iam ser utilizados para o disco. Pelo meio, a cantora foi convidada para o encerramento da Expo’98. Regressaram a Lisboa, o concerto foi um sucesso, e no final Guilherme Inês encontrou-se com Dulce Pontes no camarim para combinarem o regresso aos trabalhos, no norte. “Eu já não volto”, terá dito Dulce Pontes. “Acabou.”
ZOOM
“Se esta música fosse de uma banda estrangeira era conhecida em todo o mundo.” Este é um comentário aleatório à canção “This Will Be the Last Time”, disponível no youtube. Os Zoom, um trio formado por Guilherme Inês, Zé da Ponte e Formiga, mulher de Luís Pedro Fonseca (ambos já falecidos), foram das primeiras bandas portuguesas a tentar a internacionalização. Um pop suave e fértil em sintetizadores , guitarras e baixo, acompanhados pela voz doce e melancólica de Formiga.
Aqui se revelava mais uma faceta do músico, que investira num fairlight, um dos primeiros sintetizadores onde podia compor todos os seus instrumentais. Numa das raras entrevistas que deu, ao jornal Público, Guilherme Inês mostrava-se um homem sem fronteiras: “O meu background tem duas vertentes: a música popular portuguesa e o rock, com letra maiúscula. Hoje em dia o que eu gosto de ouvir está um bocado ligado às músicas alternativas e aquilo a que se poderá chamar “world music”.
Aliás, essa faceta está bem presente na sua produção intensa para jingles publicitários. Após os Zoom – que terminaram com a doença e morte de Formiga –, os dois amigos do estúdio Namouche dedicaram-se a gravar inúmeras campanhas para televisão e rádio. A cantora Isabel Campelo, que era uma das cantoras residentes do Regresso ao Passado, programa de Júlio Isidro, foi uma das vozes mais solicitadas por Guilherme Inês. “Naquele tempo a publicidade era de altíssima qualidade, nada a ver com o que se faz hoje em dia. As canções eram tocadas ao vivo pelos melhores músicos da altura, que usavam a sua criatividade como artistas tanto na indústria musical como na publicidade”, conta.
A própria Mariana Inês participou em dezenas de anúncios, alguns dos quais com Isabel Campelo. É o caso da Leopoldina, dos supermercados Continente. “Um dia trouxe uma amiga da minha turma que cantava e era muito desenrascada, mas quando chegou ao estúdio borregou”, lembra Mariana. “Por que não cantas tu?”, disse-lhe o pai. Foi assim que começou a receber os primeiros cachês. “Acho que nunca fui tão bem sucedida na minha vida profissional como nesse tempo”, brinca Mariana, habitual nas muitas atividades e viagens do pai. A certa altura, Guilherme começou a ter medo de voar e foi preciso um calmante oferecido por Dulce Pontes para fazer uma viagem para o Japão. “Íamos de carro para todo o lado”, diz a mulher, Helena. “Num concerto na Holanda com Paco Bandeira, não conseguiu embarcar. O Paco passou-se: “eu ponho-te um processo em cima”. Nada feito: o produtor ficou em terra.
Cid, o padrinho
A porta está aberta e nas paredes do corredor há várias fotografias de artistas reconhecíveis ao primeiro olhar: está lá Zeca Afonso, Jorge Palma, Fausto, Sérgio Godinho, entre muitos. Na sala exibem-se os discos dos Zoom, Salada de Frutas e um Leão de Ouro, prémio de publicidade que venceu no Festival de Cannes. No meio de muitas fotografias dispostas sobre a mesa, pequenos recortes de jornais, a sua primeira guitarra e o robot do videoclipe, uma imagem desperta-nos a atenção: um grupo de pessoas vestidas com roupas do século XIX num casamento.
Do lado direito está um José Cid irreconhecível, sem óculos, trajado a rigor. Foi ele o padrinho do casamento de Guilherme e Helena. “O Hotel Palace do Bussaco estava fechado, mas o José Cid pediu ao proprietário para abrir para o nosso casamento”. José Cid recorda: “Fomos ao último piso da minha casa (um palacete que pertencera ao avô) e tratámos das roupas. Foi muito divertido”, lembra o músico. “Conheci o Guilherme porque ele apareceu na garagem do Michel, onde ensaiava o Quarteto 1111. Depois acabou por tocar connosco em vários concertos. Era um baterista de uma elegância que ninguém tinha, o melhor”.
Tozé Brito, que na altura tocava no quarteto, recorda um dos melhores bateristas que conheceu. “Excecional, de todas as gerações que conheci dos 60. Tive oportunidade de tocar com ele 1111, umas vezes ele, outras o Vitor Mamede, e o Guilherme era genial, dos mais seguros que conheci. Ainda por cima eu era baixista e tinha que ter uma ligação muito boa com ele. Era um metrónomo perfeitamente completo. Estivemos depois juntos nos Green Windows e aí tive oportunidade de conhecer outra pessoa, com um sentido de humor mordaz, incrível, com muita piada.” Além disso, continua, “foi responsável por lançar uma ilustre desconhecida, a Dulce Pontes”.
Terminada a parceria com a fadista, Guilherme foi-se desinteressando. Ainda produziu discos mas acabou por vender a sua parte dos estúdios Namouche – que ainda hoje existem e são muitas vezes chamados de Abbey Road portugueses – dedicando-se mais à família do que ao trabalho. Há uma frase de Herman José que pode ilustrar um certo desencanto do músico: “tenho muita pena que no terceiro ato da sua vida, a inércia e o prazer de ‘fazer nada’ se tenha sobreposto ao extraordinário músico e produtor. Mas ninguém tem o direito de criticar: o barro do nosso destino só a nós compete moldar”. No ano passado, em setembro, depois de um dia passado com a neta, chegou a casa, adormeceu e não acordou mais. Ficou o seu enorme legado.