Ainda hoje se nota o seu sotaque açoriano. Foi ao redor dos quatro quilómetros de Fajã de Baixo que Alexandre Linhares Furtado passou os primeiros anos de vida. Em muitos deles não imaginava ainda que iria deixar para sempre os Açores — muito menos que seria o primeiro cirurgião a fazer um transplante em Portugal, na mesma noite em que o homem chegava à Lua.
Coimbra foi casa na altura de prosseguir os estudos e foi medicina a escolhê-lo. Nos corredores da Universidade de Coimbra já tinha gosto pelo bisturi. Sete anos passados, fez-se médico cirurgião, “de pleno direito”, e cedo mostrou mão firme no corte e costura do corpo humano.
Quando passou a chefiar o serviço de urologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, afligia-se ao ver pessoas “a morrer por uma insuficiência renal” e compreendeu o atraso clínico nos tratamentos que Portugal levava face a outros países. E porque é essa a “função de um professor e de um investigador”, pôs mãos à obra.
Ao peso que um primeiro transplante tem para um país, Alexandre Linhares não dá demasiada importância. Mas certo é que, naquela manhã, escolheu o melhor — ou “o melhorzito” — bloco operatório do Hospital da Universidade de Coimbra, preparado para receber irmão e irmã: ele ia receber um rim saudável que ela decidiu oferecer-lhe, mesmo submetendo-se a uma cirurgia de que não precisava. Era o primeiro transplante de dador vivo em Portugal.
Hoje, o peso da bengala, arrastada pelo braço direito, já se faz notar no andar de Alexandre Linhares. Cinquenta anos passados, diz que voltaria a operar, mesmo sem o apoio jurídico que conseguiu na altura — e apesar de a lei não o permitir. No escritório onde nos recebe há duas caixas de medicamentos na secretária, o som do WhatsApp a ecoar volta e meia num telemóvel moderno e quadros pintados por si. As caras dos netos e as paisagens dos Açores, que não esquece. Recorda-se bem do dia 20 de julho de 1969. Tinha, na altura, trinta e cinco anos. E já não gostava de sangue.
O que é que pensa um médico de 35 anos quando entra num bloco operatório para realizar um transplante pela primeira vez num país?
Não pensei em nada mais do que aquilo que ia fazer. Queria executar tudo como deve ser e isso já era demasiado preocupante.
Quais eram as suas preocupações?
A morte do doente ou da dadora, apesar de ser pouco provável.
Houve muita preparação?
Foi tudo muito bem planeado.
Lembra-se do dia?
Aí posso ser muito preciso. Escolhi um sábado.
Porquê?
Havia uma maior calma nos blocos operatórios. Escolhi o único melhorzito, que era uma desgraça, ainda assim. Foi devidamente preparado. Não falhou nada. Não participei a ninguém a não ser ao meu mestre, que esteve presente, ao diretor do hospital, que quis estar presente, o professor João Costa do Porto, que me pediu para estar presente também, e mais uma ou duas pessoas. De resto, mais ninguém.
Tem memórias visuais do bloco operatório?
Não se esquece. Era uma sala pequena, retangular, com uma mesa muito antiga. Coloquei raios ultravioletas montados em tábuas para esterilizar ao máximo o ambiente, já que a esterilização era muito deficiente. Não havia ar condicionado. Em várias ocasiões, mandei colocar placas de petri para verificar se havia bactérias no ambiente.
Foi de manhã, certo?
Logo às 9 horas, porque a equipa teria descansado e estaria mais fresca. O dia estava extraordinariamente quente e a temperatura nos blocos operatórios nessa altura era uma coisa doida.
Como é que se faz um transplante sem que haja sequer legislação para tal?
A gente fez haver. [risos] A legislação não permitia a colheita de órgãos em dador vivo. E num cadáver também não se podia. Essa situação sempre me pareceu absurda e eu estava disposto a correr o risco de operar, mesmo sem apoio jurídico.
Porquê?
Em todo o mundo já se estava a fazer. O Estado e, sobretudo, a Gulbenkian estavam a gastar imenso dinheiro nas diálises que se faziam ali do lado de lá da fronteira, em Espanha. Os transplantes que se faziam lá fora custavam coisa como — penso — 80 mil contos na altura, um dinheirão louco. Era necessário progredir. É a função de um professor e de um investigador.
E o que fez para conseguir essa legislação?
Consultei algumas pessoas, porque obviamente seria mais agradável ter um apoio prévio. Na faculdade de Direito eram muito complicados. Desisti. Um colega que gostava muito do direito conhecia um juiz jovem, brilhante, o Frederico Batista. Arranjou-me uma reunião com ele e, no final, o Frederico Batista disse: “Faça, faça. Se for necessário, eu vou defendê-lo”.
A pena era pesada?
Podia ir até oito anos de prisão. Nestes raciocínios complicados do direito, a cirurgia era uma agressão. E é… só que é para um fim bom. Claro que a pessoa que dá o órgão, enquanto viva, corre riscos de que não precisa. Era isso que justificava não permitirem as colheitas. Depois também surgiram questões [para a colheita em cadáver] como a mutilação do cadáver. Para mim, não há mutilação pior do que aquela que se vê numa morgue para fins jurídicos.
Foi também o Alexandre que ajudou a criar essa legislação…
Lutei muito por ela, assim como outros colegas. Nós em Coimbra fomos pioneiros na colheita de órgãos num cadáver, quando surgiu um cadáver que era indiscutivelmente cadáver. Se o cérebro está perdido, já não é um doente, é um dador.
Lutou muito por essa ideia de que morte cerebral é morte.
Lutei para que fosse reconhecido em Portugal.
Andámos sempre atrás de outros países, como a França?
Claro. O conceito de morte cerebral nasceu exatamente em França. Chamava-se coma depassé [coma ultrapassado]. Mas depois o domínio anglo saxónico fez com que se passasse a dominar brain death. Mas, nessa altura, a razão não era colher-se órgãos para transplantar. Queria-se libertar máquinas de suporte cardiorrespiratório, um equipamento caro e escasso, para doentes salváveis. Havia cadáveres que estavam ligados semanas a ocupar máquinas que poderiam salvar vidas.
Desde a faculdade que o gosto pela cirurgia já era óbvio?
Sim. Dentro da medicina era a minha área preferida. A minha mãe sofria muito de úlceras varicosas. Na altura não havia grandes tratamentos e eu fazia de enfermeiro. Tratava daquilo todos os dias, fazia ligaduras. Gostava muito de dissecar animais. Na anatomia, dissequei praticamente todo o corpo humano — na altura havia muitos cadáveres.
Gostava da adrenalina da urgência?
É verdade. Por exemplo, na minha primeira traqueotomia [abertura de um orifício na traqueia] devia estar no 4º ano de medicina. Os internos tinham medo de fazer, a doente era uma criança muito pequenina e estava asfixiada. Peguei num bisturi, com autorização deles, e fiz. Salvou-se a criança.
Não é normal um aluno com essa experiência, que não é muita, ter medo?
Depende. Nessa altura tinha um professor, o doutor Bacalhau, que era muito exigente — e não propriamente competente. Com esse professor fiz a minha primeira raquianestesia no 4º ano. Gostava de ver o bloco operatório, de ir lá e tínhamos autorização. O interno que lá estava perguntou-me se não queria ser eu a fazer porque ele tinha medo. Introduz-se, entre duas vértebras, num espaço à volta da espinal medula, uma agulha comprida para anestesiar toda a parte do corpo da cintura para baixo. Eu tinha estudado muito bem. Cheguei lá e fiz à primeira.
Foi esse sentido prático que o levou a tomar a decisão de, naquele dia, naquele doente, fazer um transplante
Quando eu era cirurgião geral — e, na altura, a cirurgia geral era muito mais abrangente do que é hoje — afligia-me ver alguns doentes que não morriam pelos traumas, por exemplo, mas depois morriam por uma insuficiência renal. Quando passei para o serviço de urologia entendi que era necessário começar com a hemodiálise.
Já se fazia no país?
Lisboa já fazia e Porto penso que estava no início, mas Coimbra nunca tinha iniciado. Apesar de não ser da minha área, montei a primeira unidade de hemodiálise nos Hospitais da Universidade. Mais tarde, a Gulbenkian ofereceu um dialisador e um monitor de diálise, que ficou montado no meu gabinete por falta de espaço. E assim se salvaram alguns doentes.
Chegou a aprender a técnica da transplantação na faculdade?
No curso ainda ninguém falava disso. Estive em Londres seis meses para aprender urologia, quando fui tomar conta do serviço, porque a minha formação era em cirurgia geral. Lá estudei sobretudo nefrologia [especialidade para as doenças do sistema urinário]. Cá não havia ninguém.
Já pensando nos transplantes?
Sim.
O bisturi tremia?
Não! Deus nos livre. Ainda hoje não treme. [risos]
Se tremesse era mau sinal?
Claro. Não podia ser. Nervoso poderia estar, mas isso não tinha uma repercussão motora em mim.
Usava alguma fórmula para se acalmar?
Nunca usei medicamentos. Sobretudo estudava em todos os tempos do que ia realizar, os processos, as hipóteses. Por exemplo, para os transplantes intestinais, fiz muitos desenhos com as hipóteses todas. No rim não há transplantes de urgência. No fígado até há de urgência extrema.
O de 1992, o primeiro transplante de fígado em Portugal, também feito por si, foi urgente?
Sim. Era uma senhora perfeitamente normal que, subitamente, entrou em coma. Tinha uma hepatite fulminante. Felizmente apareceu um fígado compatível, de noite. Hoje é a doente mais antiga transplantada de fígado em Portugal.
Ainda hoje a conhece?
Ela é uma pessoa extraordinária. Passado um mês já estava a trabalhar e nunca mais deixou de trabalhar.
Também chegou a desenhar salas operatórias específicas para transplantes?
Existem duas salas desenhadas por mim muitos anos antes de o hospital novo ser construído, em 1986. São compostas por uma sala bastante maior para o recetor do órgão, outra sala mais pequena para o dador e, no meio das duas, há um laboratório para fazer análises. Mas isso só me foi concedido muito mais tarde porque aquelas salas geraram a cobiça dos professores mais velhos [risos].
Este transplante foi o momento mais marcante da sua carreira?
Não.
Qual é?
Sobretudo as transplantações pediátricas de fígado, que não têm nada a ver com as outras porque levantam problemas técnicos tremendos e uma responsabilidade moral incomparável. O primeiro transplante em Portugal significou a abertura de um caminho.
Recentemente foi dado o seu nome a um bloco operatório no Centro Cirúrgico de Coimbra.
Foi um gesto bonito de amizade.
Se agora precisasse de um transplante, confiaria?
Incontestavelmente. Eu deixei mais de meia dúzia de jovens — hoje não assim tão jovens — com uma experiência muito vasta e que até já inovaram.
É religioso?
Não. Acredito só numa coisa: que não sei nada.
O Peter Morris disse que a transplantação foi o maior milagre da medicina do século XX. Concorda?
É natural que quem faz cirurgia assim pense. Mas há outros milagres.
Quais?
A descoberta dos antibióticos, por exemplo.
Qual acha que será o milagre da medicina no século XXI?
A criação de órgãos de animais, em laboratório, que sirvam para o homem. Eu quis fazer investigação nesse sentido, mas já não foi possível. Com o Thomas Starzl, já se fez isso com uma base científica grande, mas mesmo assim falhou. E nunca mais se repetiu.
Essa solução não levanta problemas éticos?
Em relação ao PAN? Eu não sei qual seria a reação dos protetores dos animais — e eu gosto imenso de animais —, mas a verdade é que não acabam com os parques zoológicos, onde todos os dias as pessoas se encantam a ver um leão comer uma zebra. O homem é o predador máximo e faz tudo para sobreviver. E eu vejo no caso da Matilde, a criança que tem atrofia muscular espinhal, que o medicamento faz parte de uma família de novos químicos que já propõe uma intervenção de caráter genético num vivo. Isto pode vir a criar um campo de coisas novas porque, como sabe, a competição entre laboratórios é muito grande. Falta apenas capital.
Havendo dinheiro, haverá avanços?
A verdade é que foi essa sociedade capitalista que gerou avanços. Se percorrer a literatura mundial, não encontra quase nada de válido na medicina nos países que não pertenciam a uma sociedade capitalista. Não encontra. Enfim, é extremamente desumano dizer que aquele medicamento custa o dinheiro que custa, mas é possível que, daqui a dois ou três anos, já custe uma centésima parte.
Qual é a saúde do Sistema Nacional de Saúde?
Não estou em condições de dizer porque a desinformação é, pelo menos, tão veiculada quanto a informação e, às vezes, supera-a. Mas no meu círculo de colegas denoto um descontentamento em relação às condições de trabalho. Eu nunca fui fã do Serviço Nacional de Saúde. Penso que um país pobre como o nosso não tinha condições para criar um serviço público e tendencialmente gratuito. Desafio o doutor Arnaut a fazer um Serviço Nacional de Justiça igualmente universal e tendencialmente gratuito.
O que é que poderia substituir o Serviço Nacional de Saúde?
Não creio que haja substituição. Tem de haver uma colaboração entre o setor privado e o setor estatal. Não gosto do termo público porque um hospital privado presta um serviço público. E agora fala-se da humanização do Serviço Nacional de Saúde… É porque as pessoas desumanizaram a medicina. No meu tempo, o doente sempre foi o centro da nossa atenção. Lembro-me de um diretor do hospital, que não era médico, ter mandado o secretário dizer-me para lhe dar conta se acontecesse alguma coisa a um doente específico. Num domingo de manhã, houve algo de mal com o doente e eu telefonei ao senhor diretor. Atenderam-me a dizer “Está a dormir. O sotôr não se acorda”.
O problema é que não serem médicos a mandar nos hospitais?
Não. Por vezes também os médicos degeneram e habituam-se a ser donos. Há carências enormes. Muitas delas, a meu ver, são superáveis. Também tive imensas para realizar o que realizei. E consegui. Tenho um cartão de um célebre colega meu que já morreu — trocávamos correspondência — que dizia que o que eu fiz é caso único e irrepetível. É verdade. Isto não é um autoelogio.