Texto originalmente publicado a 10 de junho de 2016.

O cavalo de Turim

A 3 de Janeiro de 1889, em Turim, o equilíbrio mental de Friedrich Nietzsche desmoronou-se de vez. Não se sabe ao certo que distúrbios na via pública terão levado a suscitar a intervenção das autoridades policiais, mas as cartas que enviou aos amigos nos dias seguintes ao incidente levaram estes a concluir que o filósofo necessitava de tratamento psiquiátrico urgente. O seu amigo Franz Overbeck foi buscá-lo a Turim, mas os internamentos em clínicas e os tratamentos a que foi submetido não foram capazes de lhe devolver a razão – após 11 anos de loucura silenciosa, faleceu a 25 de Agosto de 1900.

Os últimos dias de Nietzsche: Gravura de Hans Olde, a partir da sua série de fotografias Der kranke Nietzsche, Junho-Agosto de 1899

Os últimos dias de Nietzsche: Gravura de Hans Olde, a partir da sua série de fotografias Der kranke Nietzsche, Junho-Agosto de 1899

Desde cedo surgiu o rumor de que o episódio que desencadeara a sua loucura fora a visão de um cocheiro chicoteando violentamente o seu cavalo. Nietzsche, que acabara de sair da porta do prédio onde vivia, na Piazza Carlo Alberto, precipitou-se para o animal, abraçou-o, lavado em lágrimas, e caiu inanimado. Milan Kundera atribuiu a este episódio (de veracidade não comprovada) um papel central na sua obra-prima A insustentável leveza do ser (Béla Tarr também o utilizou como “embrião” do filme O cavalo de Turim), vendo na atitude de Nietzsche um pedido de perdão por Descartes ter reduzido os animais ao estatuto de machina animata.

“[Descartes] fez do homem ‘dono e senhor da natureza’. O que não deixa de ser uma coincidência interessante é o facto de ser precisamente esse mesmo Descartes que nega categoricamente que os animais tenham alma. O homem é proprietário e dono, enquanto, segundo Descartes, o animal não passa de um autómato […]. Quando o animal geme, não quer dizer que se queixe: só quer dizer que tem uma peça a ranger. Quando a roda de uma charrete chia, não quer dizer que tenha uma dor. é só falta de óleo. As queixas dos animais devem ser interpretadas da mesma maneira, e é perfeitamente estúpido lamentar a sorte de um cão dissecado em vida num laboratório”.

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René Descartes por Frans Hals, c. 1694-1700

René Descartes por Frans Hals, c. 1694-1700

E conclui Kundera: “A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não apresentam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade […] são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros”.

Kundera expressa o seu apreço pelo Nietzsche abraçado a um cavalo em Turim e por Teresa, a personagem do romance que se compadece do seu cão doente e retira as suas vacas do confinamento do estábulo e as leva a pastar nos prados: “tanto um como outro se afastam da estrada em que a humanidade, ‘dona e senhora da natureza’, prossegue a sua marcha sempre em frente”.

O cavalo de Turim (A torinói ló), filme de 2011 do realizador húngaro Béla Tarr

O cavalo de Turim (A torinói ló), filme de 2011 do realizador húngaro Béla Tarr

A criminalização dos maus tratos a animais

Se a era da agro-indústria, com a aplicação à pecuária de processos de racionalização e optimização análogos aos da produção fabril, tornou ainda mais miserável, estupidificante e desoladora a vida de biliões de animais, nos últimos tempos tem-se assistido a um movimento crescente em prol dos direitos dos animais, de que é exemplo a lei 69/2014, de 29 de Agosto, que criminaliza os maus tratos a animais de companhia e prevê penas de prisão até seis meses para quem abandonar ou deixar de lhe assegurar a alimentação e prestação de cuidados, até um ano a quem, “sem motivo legítimo”, lhe causar dor, sofrimento ou outros maus tratos físicos, podendo elevar-se a dois anos de prisão se daí resultarem para a morte ou a incapacidade permanente do animal.

O partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pretende ver aprofundada e alargada esta lei, “já que apesar de ter aberto positivas expectativas, tem incongruências e omissões várias”. André Silva, o deputado do PAN, argumentou que “a legislação deve acompanhar a evolução científica e educar no sentido de explicar que os animais não são coisas, não são mercadoria, são seres sensíveis e para com os quais temos responsabilidades”.

E foi o que aconteceu na sequência do debate parlamentar de 12 de Maio de 2016, suscitado por um agendamento potestativo do PAN e em que o PAN, o PS, o PSD e o BE apresentaram projectos de lei relativos ao tema. Todas as bancadas apoiaram “o estabelecimento de um estatuto jurídico próprio dos animais” reconhecendo-os como “seres sensíveis” e o fim do abate de animais sem dono (que passam a ser esterilizados e encaminhados para adopção). Foi também considerada a possibilidade de rever as restrições à “permissão de animais em estabelecimentos comerciais” e de “reforçar o regime sancionatório” aplicável a quem inflija maus tratos aos animais, embora nestas vertentes não exista unanimidade entre os partidos. O Conselho Superior de Magistratura, embora considerando “positiva” a generalização da lei a outros animais, expressou algumas reservas: por um lado entendeu que “em certos casos (formigas, moscas, etc.) o princípio possa porventura considerar-se excessivo” (é de realçar a cautela evidenciada no “porventura”, significando não está excluída a possibilidade de o direito penal português instituir a figura do formicídio e do diptericídio); por outro lado, “algumas das alterações preconizadas podem, na prática, acarretar maiores problemas do que aqueles que pretendem resolver”.

Esses “maiores problemas” advêm, em boa parte de toda a discussão assentar na distinção subjectiva e arbitrária entre animais de estimação e restantes animais.

[alguns animais de estimação menos convencionais]

https://www.youtube.com/watch?v=N1QvtH4kaho

O meu império por um galo

Honório assumiu a liderança do Império Romano do Ocidente em 393 d.C., quando este já estava em franco declínio e já não conseguia controlar as hordas bárbaras. Conta o historiador Procópio que, em 410, estando Honório em Ravena, para onde transferira a capital imperial, recebeu de um eunuco a notícia de que Roma perecera. Honório retorquiu, surpreendido e desgostoso: “Mas se ainda há pouco esteve a comer das minhas mãos!”. O eunuco explicou que quem perecera fora a cidade de Roma, conquistada e saqueada pelas hordas de Alarico I, rei dos visigodos, o que fez Honório soltar um suspiro de alívio: “Julguei que estivesses a falar de Roma, o meu galo de estimação!”.

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Honório, que subiu ao trono com apenas 11 anos, foi um dos mais incompetentes e desastrosos imperadores romanos e só não foi pior porque o seu ex-tutor, o general Estilicão, fez o que pôde para suster o descalabro – até ser executado em 408. Quadro de Jean-Paul Laurens, 1880.

O episódio poderá não ser verídico, mas chama a atenção para uma questão dos debates sobre os maus-tratos a animais que, sendo crucial, é sistematicamente ocultada: o que vem a ser um “animal de estimação”? Mesmo que se encontrasse resposta satisfatória para esta pergunta, ficaria por responder outra não menos espinhosa: porquê conferir aos animais de estimação um estatuto radicalmente diverso face aos outros “animais sencientes”?

O acima mencionado projecto de lei do Bloco de Esquerda parece querer abolir esta distinção, ao pretender que os crimes relativos a maus tratos abranjam não apenas os animais de companhia “mas também todos os animais sencientes cuja vivência está associada aos seres humanos, independentemente da função que desempenham”. É difícil perceber como pode esta ambição coadunar-se, por exemplo, com a morte de animais no âmbito da pecuária e da caça – duas situações que, para já, o projecto de lei do PAN exclui explicitamente da nova tipologia criminal que pretende ver introduzida: o “animalicídio”.

É errado comer o nosso melhor amigo?

Ao contrário de Honório, para quem a saúde do seu galo valia mais do que o seu império, a maioria dos habitantes do planeta come galináceos sem grande remorso. Há, todavia, espécies que sendo consideradas comestíveis nalgumas regiões do globo, são “tabu” noutras.

Os cães são, há séculos (pelo menos desde 500 a.C.), vistos como um prato tão legítimo e apetitoso como a galinha em países como a China e a Coreia, países onde, por ano, são consumidos 10 milhões e 2.5 milhões de cães, respectivamente (os dados da Coreia dizem respeito apenas à Coreia do Sul, já que não existem dados para a Coreia do Norte, embora seja significativo que a carne de cão esteja entre a centena de produtos cujo preço é fixado pelo governo norte-coreano).

O Nureongi é uma raça de cães coreana criada para fins alimentares. Estes exemplares foram fotografados numa quinta onde são criados como galinhas ou porcos.

O Nureongi é uma raça de cães coreana criada para fins alimentares. Estes exemplares foram fotografados numa quinta onde são criados como galinhas ou porcos.

No mundo ocidental, tal prática é encarada com um misto de horror e repugnância e têm vindo a tornar-se cada vez mais fortes as pressões para a sua suspensão, como foi o caso recente apelo ao fim do Festival de Carne de Cão de Yulin (na edição de 2011 foram consumidos 15.000 cães). Mas se abandonarmos a perspectiva “ocidentalocêntrica”, tais petições equivalem a um apelo maciço e indignado dos crentes no hinduísmo – religião em que as vacas disfrutam de um estatuto semi-divino – pelo fim das churrasqueiras e dos rodízios brasileiros em Portugal.

Nandibull

Escultura dos séculos I-IId.C em Mysore, representando Nandi, o boi mítico que serve de montada ao deus Shiva. Foto de 1872.

Na esmagadora maioria dos estados da Índia o “vaquicídio” é punido por lei ou é apenas autorizado em condições especiais e a comercialização de carne de vaca é proibida. Nalguns estados a posse, transporte ou consumo de carne de vaca, mesmo que em privado, é também proibida. Os infractores podem ser punidos com até 10 anos de prisão, embora possam ter sorte pior, como aconteceu em 2015 com Mohammad Akhlaq, um muçulmano da aldeia de Dadri, no Uttar Pradesh, que foi linchado por uma turba de hindus, depois de ter circulado o boato de que a sua família comera carne de vaca (o filho escapou ferimentos muitos graves). O acirrar dos conflitos entre muçulmanos e hindus tem levado a que alguns estados indianos tenham tornado a legislação em defesa das vacas mais estrita (o que é visto por cristãos e muçulmanos como uma medida discriminatória) e à emergência de grupos de vigilantes hindus que atacam camiões que transportem bovinos.

Usou-se acima o deselegante neologismo “vaquicídio” em vez de “bovinicídio” porque, paradoxalmente, são raros os estados indianos em que o abate de búfalos ou o consumo da sua carne são proibidos, ainda que, do ponto de vista de um biólogo ou de um não-hindu, pouco separe as duas espécies.

Mas quem julgue que a permissividade para com hábitos alimentares “bizarros” e “pouco éticos” se circunscreve a “países do Terceiro Mundo”, descobrirá com surpresa (e horror) que o consumo de carne de cão é legal, ainda que com reservas, em países usualmente vistos como estando na dianteira no domínio dos direitos humanos e dos animais: a Austrália interdita a venda da carne de cão mas o consumo particular é permitido (excepto no estado da Austrália do Sul) e no Canadá é legal servir carne de cão em restaurantes, desde que o abate seja supervisionado pelo equivalente aos nossos inspectores da ASAE.

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Talho em Guangdong, China

O consumo de carne de cão é relativamente frequente na Ásia e Oceânia (excepto nas regiões onde prevalece a fé islâmica, que a considera, como a carne de porco, “impura”) e nalguns países pode ser mesmo muito expressivo. É o caso das Filipinas, onde o cão é a terceira carne mais consumida, a seguir ao porco e à cabra (mas onde a sua venda foi entretanto interditada), e do Vietnam, onde são comidos 5 milhões de cães por ano. Há indícios de que a tradição está a perder popularidade, sobretudo entre as gerações vietnamitas mais novas, talvez pela exposição aos media ocidentais que representam este hábito gastronómico como indigno de povos civilizados, como sugere um artigo da Atlantic Monthly sobre o tema. Um vietnamita entrevistado pela revista fornece uma outra explicação, que acaba por revelar quão nebuloso e fluido é o conceito de “animal de companhia”: “[Os vietnamitas] costumavam criar cães para guardar a casa, mas quando precisavam de carne, comiam-nos. Agora os cães começaram a ser vistos como animais de estimação e importam-nos da China e do Japão”.

Mas se o que define se um animal é de estimação ou uma fonte de alimento não decorre da maior ou menos “senciência” da espécie e é determinado pelas tradições culturais, como encarar a situação de um coreano ou um chinês que aprecia carne de cão e é surpreendido a fazê-lo num país em que tal é visto como crime? Ou apenas será crime se o cão em questão for o seu (ou do vizinho)?

E se o que está em questão é menos o consumo da carne do que o “animalicídio”, então não será a criação de cães para carne moralmente equivalente à criação de raposas e visons para pele? Todavia, esta é uma actividade legal em muitos países ocidentais: nos EUA existem 6.000 quintas deste tipo e a civilizada e minúscula Dinamarca é o maior produtor mundial de pele de vison. Após algum declínio devido às pressões dos grupos de defesa dos animais e à legislação que interditou esta actividade em vários países europeus, as quintas de produção de peles recuperaram a pujança graças à entrada em cena dos novos-ricos chineses e russos sequiosos de símbolos de prestígio.

Raposa numa quinta de produção de peles.

Raposa numa quinta de produção de peles.

Apesar de a perspectiva da maioria dos humanos sobre galinhas estar mais perto de Zbigniew Herbert do que da de Honório, existem organizações, como a Fundação Britânica para o Bem-Estar das Galinhas, que compram aos aviários galinhas destinadas ao abate e as reencaminham para a casa de pessoas dispostas a adoptá-las e a proporcionar-lhes uma “reforma” tranquila.

Entre as espécies tradicionalmente criadas para carne que têm vindo a ser adoptadas como animais de estimação estão os porcos, patos e gansos, que têm a vantagem de serem mais patuscos e parecerem mais espertos do que as galinhas.

[Valentino, um ganso na sala de estar]

Embora um suíno possa parecer um animal pouco apropriado para ter em casa, o porco-barrigudo do Vietnam e algumas variedades anãs (micro-porcos) têm vindo a ganhar popularidade, nomeadamente entre as celebridades. Entre elas estão Miley Cyrus, Megan Fox ou o casal Beckham. George Clooney teve um porco-barrigudo do Vietnam durante 18 anos (até que o animal faleceu em 2006) e Paris Hilton e Danielle Steel também se deixaram encantar pelo bicho.

[conselhos para quem queira um porco como animal de estimação]

https://www.youtube.com/watch?v=mX7a52u1eqs

Embora a inteligência seja algo demasiado complexo para ser medido numa escala linear e não seja possível delinear uma hierarquia inequívoca de inteligências animais, vários estudos científicos têm demonstrado que “os porcos são tão cognitivamente complexos como os cães e os primatas. Isto não significa que são equivalentes a chimpanzés em termos de inteligência. Apenas mostra que há fortes razões para olhar os porcos como criaturas inteligentes, conscientes e emocional e socialmente sofisticados” – as palavras são de Lori Marino, uma neurocientista que, num artigo publicado em 2015 no Journal of Comparative Psychology, passou em revista a literatura científica com contributos para o conhecimento da “vida interior dos porcos”. O que a maioria de nós conhece sobre o interior dos porcos costuma resumir-se a morcelas, chouriços, salames, salpicões e similares, mas à medida que a informação sobre a complexidade cognitiva suína vai alastrando é previsível que comecem a circular abaixo-assinados visando pôr termo a usos bárbaros como a Feira do Fumeiro de Vinhais ou a Feira dos Enchidos de Monchique.

[depois de ver isto, quem não pensará duas vezes antes de trincar uma morcela?]

Mas quando se adopta uma espécie “comestível” como animal de companhia, uma incerteza inquietante paira sempre sobre o seu futuro: e se, tal como os donos de cães vietnamitas, um dia o humano, pressionado pela necessidade ou agastado com o mau comportamento e escassa higiene do seu ganso ou do seu porco, lhe retira o estatuto de “companheiro” e decide comê-lo? Estaremos perante um animalicídio?

A coabitação com os humanos: animais domésticos e selvagens

O poeta polaco Zbigniew Herbert não partilhava dos sentimentos de Honório em relação aos galináceos, pois dedicou à galinha um poema que, caso fizesse parte de alguma antologia para uso escolar, já teria atraído protestos indignados dos amigos dos animais, exigindo a sua erradicação:

“A galinha é o melhor exemplo daquilo a que a coabitação ininterrupta com pessoas conduz. Perdeu toda a leveza e graça de uma ave. A sua cauda ergue-se sobre o traseiro arrebitado como um grande chapéu de mau gosto. Os seus raros momentos de êxtase, quando se equilibra numa pata e semi-cerra os seus olhos circulares com a película das pálpebras, são terrivelmente repugnantes. Mas nada supera aquela paródia de um canto – uns sacões na laringe motivadas por uma coisa indescritivelmente cómica: um redondo e alvo ovo sarapintado”.

A única atenuante que Herbert poderia invocar, caso fosse acusado de difamar os galináceos, seria a frase que remata o poema: “A galinha faz lembrar alguns poetas”.

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A galinha, tão desconsiderada pela maioria dos escritores e artistas, mereceu um retrato penetrante, irónico e terno nesta gravura de Hokusai, destinada a um leque, c. 1830-44.

Mesmo considerando animais com porte mais digno e sem fazermos julgamentos tão implacáveis, é impossível ignorar esta regra cientificamente comprovada, que se aplica a todo o reino animal: as espécies (ou variedades) domesticadas têm cérebros mais pequenos (quando medidos como proporção da massa total do corpo) e são menos inteligentes do que as suas congéneres selvagens.

É fácil perceber porquê: os animais selvagens têm problemas para resolver a todas as horas de todos os dias – como arranjar comida? como detectar e evitar predadores? como descobrir ou construir abrigo? como encontrar um parceiro, como avaliar se possui património genético promissor e como copular com ele antes dos rivais? como defender as crias e salvá-las de apuros? – enquanto a esmagadora maioria dos animais domésticos leva uma vida monótona e letárgica em que as necessidades básicas estão asseguradas (ou vedadas, como acontece frequentemente com a reprodução) e toda a existência está subordinada aos interesses e decisões dos seus donos ou criadores.

Há pouca gente a dar pela disparidade de inteligências entre “domésticos” e “selvagens” porque convivemos pouco ou nada com animais selvagens e estes defendem apenas os seus próprios interesses, não costumam acatar ordens e fazer aquilo que nos convém, o que os humanos tendem a interpretar como falta de inteligência. Por outro lado, tendemos a sobrevalorizar a inteligência dos animais de estimação (“só lhe falta falar!”) apenas porque estes desenvolveram (por selecção e condicionamento) afinidade connosco e orientaram os seus recursos mentais para se conformarem aos caprichos humanos.

Este enviesamento tem a sua máxima expressão no cão, cuja invulgar apetência para agradar ao dono e prestar-lhe serviço é confundida com inteligência. Em contraste, o lobo, embora seja mais inteligente que o cão (o cão tem um cérebro com apenas 60-70% do volume do de um lobo de peso semelhante), resistirá a todos os esforços para treiná-lo a pastorear ovelhas ou a trazer os chinelos ao dono, pois nada na mente lupina o predispõe a colaborar com humanos (ou com qualquer outra espécie ou até com qualquer lobo que não seja da sua alcateia).

Wyoming-Wolf1 Embora nos testes de inteligência os cães fiquem muito atrás dos chimpanzés, há uma situação em que os cães têm melhor desempenho: numa experiência em que cabe aos animais adivinhar sob qual de vários copos invertidos se oculta uma gulodice, os cães são capazes de interpretar um gesto humano que indica o copo certo, pois estão “programados” para interagir com humanos, enquanto os chimpanzés terão dificuldade em perceber que uma criatura de outra espécie está empenhada em ajudá-los.

O cão só parece mais inteligente do que os outros animais na interesseira (ou sentimental) óptica humana e no ambiente controlado criado pelo homem; no mundo “lá fora” a inteligência do cão é insuficiente para competir com a do lobo, do coiote ou da raposa. Mas como o mundo é, cada vez mais, moldado pelos humanos, existem em Portugal cerca de dois milhões de cães, mas apenas 300 lobos-cinzentos (Canis lupus). Nos EUA (dados de 2012) os cães domésticos são 78 milhões, os lobos-cinzentos apenas 9.000. Raymond Coppinger & Lorna Coppinger, em Dogs: A New understanding of canine origin, behavior & evolution (2001, The University of Chicago Press), apresentam as seguintes estimativas para as populações mundiais de canídeos: lobos 400.000, coiotes 4 milhões, chacais 40 milhões, cães domésticos 400 milhões (com excepção do cão doméstico, representado apenas pelo Canis familiaris, as outras categorias agrupam várias espécies).

Do ponto de vista do lobo, o cão é um traidor e um sabujo, não muito inteligente nem muito apto à luta pela vida (dentes pequenos e fracos, mandíbulas pouco poderosas), que trocou a liberdade pela subserviência a um amo, mas os números provam que a estratégia do segundo é que teve sucesso.

A selecção artificial tem gerado raças de cães “abebézadas”, indefesas e o mais afastadas possível dos seus antepassados selvagens, de forma a corresponder ao instinto maternal dos donos.

A selecção artificial tem gerado raças de cães “abebézadas”, indefesas e o mais afastadas possível dos seus antepassados selvagens, de forma a corresponder ao instinto maternal dos donos.

Mas se associarmos a maior inteligência a maior sensibilidade (aos maus tratos, ao sofrimento), não deveriam os animais selvagens merecer tratamento perante a lei pelo menos idêntico aos dos animais de companhia?

O amor aos animais tem um preço

Reflectindo uma tendência generalizada de crescimento, a percentagem de lares portugueses com animais subiu de 45 para 54% entre 2011 e 2015, num período de crise económica e de diminuição de rendimento das “famílias”. A espécie mais representada nos lares portugueses é o cão – 2 milhões – seguido do gato – 1.4 milhões, embora as várias espécies de aves de companhia somadas ultrapassem os cães, com 2.1 milhões (as estimativas são de um estudo da GfK).

Nos EUA, dados de 2011 indicam que 75% dos lares possuíam animais de estimação, perfazendo um total de 218 milhões de animais (não contando com uma quantidade difícil de estimar de peixes de aquário), onde se contam 70 milhões de cães e 80 milhões de gatos (eventuais discrepâncias entre estimativas resultam de se referirem a anos diferentes e de diferentes métodos de contabilização). Um estudo da Associação Americana de Fabricantes de Produtos para Animais de Estimação (APPMA, na sigla inglesa), relativo a 2005-2006, apurou uma despesa média anual de 1571 dólares por cão e 919 dólares por gato, com as despesas de saúde a somarem 685 dólares por cão e 516 por gato e as despesas com rações a somarem 241 dólares por cão e 185 dólares por gato. Cada cão representou ainda uma despesa média anual de 123 dólares em vitaminas e 45 dólares em brinquedos. E enquanto a despesa com restaurantes caiu em 2007-2009, o período mais negro da crise económica nos EUA, a despesa com rações para animais de companhia não foi abalada.

As estimativas da APPMA para as despesas totais com animais de estimação nos EUA subiram de 43.000 milhões de dólares em 2008 para 60.000 milhões de dólares (um terço do PIB português) em 2015. O crescimento, dizem os especialistas do sector, deve-se menos a um aumento no custo médio dos produtos e serviços básicos do que à revolução operada no sector do luxo, com chefs a conceber menus saudáveis para cães, multiplicação de hotéis caninos e felinos de cinco estrelas (o preço das suítes Barkfellers, em Indianapolis, começa nos 50 dólares por noite, o que não as impede de registar 90% de ocupação) e proliferação de gadgets electrónicos cada vez mais sofisticados destinados a animais de estimação. Se não sabe onde investir as suas poupanças no cenário de imprevisibilidade que a economia hoje apresenta, as acções de fabricantes de produtos para animais de companhia parecem ser uma das apostas mais seguras.

Room service para VIPs (Very Important Pets) no hotel Sutton Place, em Vancouver.

Room service para VIPs (Very Important Pets) no hotel Sutton Place, em Vancouver.

Percorreu-se um longo caminho desde o tempo em que o anúncio de uma marca de comida para cães ainda precisava de enviar uma mensagem reprovadora a quem alimentava os seus animais com restos de comida (“Restos? Nunca! Dou-lhes sempre [inserir marca comercial]”).

O mercado das rações para animais tem vindo a crescer não só em quantidade como em qualidade: um estudo da PetFlow, uma marca de alimentos, produtos sanitários, acessórios e brinquedos para animais de estimação, revelou que há cada vez mais afinidades entre a alimentação para cães e gatos e a alimentação humana: nos EUA, 33% das vendas de comida de cão e 21% das vendas de comida de gato têm um nível de qualidade que as habilitaria para consumo humano e cumprem requisitos que usualmente associamos aos mais exigentes e hipocondríacos consumidores de duas patas: baixo teor glicémico, isenção de glúten e de organismos geneticamente modificados.

[à medida que os negócios em torno dos animais de estimação crescem e se diversificam, abrem-se novas oportunidades de carreira]

O maior risco para a saúde dos animais de estimação já não vem da eventual inadequação de uma alimentação baseada em restos, mas do excesso de mimos que os donos lhes prodigalizam: em 2014, o Huffington Post publicou uma lista de 12 alimentos humanos que não sabia que podiam matar o seu cão que sugere que há cada vez mais gente a tratar os seus cães como nababos, pois ao lado de alimentos correntes como leite, bacon, cebola ou caroços de maçã, são listados luxos como abacate, queijo, chocolate e nozes de macadâmia. A expressão “sustentar um burro a pão-de-ló” foi esvaziada de sentido num tempo em que há quem envenene inadvertidamente o seu próprio cão com uma overdose de nozes de macadâmia (que custam, nas nossas paragens, 30-40 euros/Kg).

O mais irónico nisto é que é provável que o Canis familiaris tenha nascido a comer restos. De acordo com a tese do acima mencionado Dogs: A New understanding of canine origin, behavior & evolution, livro bem mais sério e iluminador do que a literatura canina que costuma enxamear as livrarias, os cães evoluíram a partir dos lobos que começaram a seguir as tribos de caçadores humanos e a alimentar-se nas suas lixeiras, o que implicou uma selecção natural dos animais menos ariscos ao contacto com humanos.

E o mais paradoxal em tudo isto é que há no mundo centenas de milhões de pessoas que subsistem com menos de dois dólares por dia e que não se importariam de ferrar o dente em comida de cão, mesmo não sendo da classe gourmet.

[sugestões de acepipes para quebrar a monotonia da dieta do seu cão]

Quando os nossos amigos comem outros animais “sencientes”

É um triste mas iniludível facto da vida: há bichos que comem outros bichos, apesar de alguns apaixonados defensores dos animais tentarem ignorá-lo, nomeadamente evitando ver documentários sobre o mundo natural que mostrem o lado cruento e implacável dos bichinhos.

Muitos amigos dos animais têm vindo a apelar a que todos adoptemos uma dieta vegetariana, que, para lá dos supostos benefícios para a saúde, tem a vantagem de não envolver animalicídio e de ser menos lesiva para o planeta, por implicar menor uso do solo e de água e menores emissões de gases de feito de estufa (as vacas são grandes emissoras de metano). Porém, quando apontam reprovadoramente para a pegada de carbono de quem tem uma dieta que inclui carne, preferem não mencionar a pegada de carbono dos amigos de quatro patas. Os cálculos divulgados pela revista Salon em 2014 são elucidativos: a Victoria University, de Wellington, Nova Zelândia, estimou que, em média, um cão de companhia tem uma pegada de carbono equivalente ao de dois SUVs e o Stockholm Environment Institute, de York, no Reino Unido, obteve estimativa similar. Boa parte desta pegada advém da carne que constitui a base da sua alimentação: são 160 Kg por ano, para um cão de tamanho médio, a que se somam as emissões de CO2 associadas ao processamento da carne e à embalagem e distribuição das rações. É um estranho mundo este, em que a pegada de carbono do típico galgo afegão é superior à do típico afegão.

Os donos de felinos carregam um peso mais leve na consciência ambiental: a alimentação de um gato médio ao longo de um ano equivale, em emissões de carbono, ao uso médio de um automóvel utilitário durante o mesmo período de tempo.

Mas há ainda outro aspecto inquietante associado à alimentação de cães e gatos domésticos: é que esta implica a morte de porcos, ovelhas e vacas, que são tão inteligentes e sensíveis à dor como eles. A coerência não exigiria que os defensores dos animais alimentassem os seus cães e gatos com tofu e bife de soja?

[reportagem (com imagens eventualmente chocantes) sobre a criação de coelhos para a indústria de rações para cães e gatos]

Mas nem tudo o que os cães e gatos comem provém das rações fornecidas pelos donos: os que vivem em zonas rurais e de subúrbio e a quem os donos dão alguma liberdade (ou os que são abandonados ou se perdem e se tornam errantes), dão largas aos seus instintos predatórios adormecidos e tratam de matar, mutilar e molestar aves, répteis e pequenos mamíferos. Foi estimado que nos EUA, os 85 milhões de gatos domésticos matem, por ano, de 1.4 a 3.7 mil milhões de aves e 6.9 a 20.7 mil milhões de pequenos mamíferos e répteis (o que daria 98 a 287 vítimas por gato, uma estimativa que só fará sentido em gatos “rurais”). As estimativas para a Grã-Bretanha são mais modestas: talvez por serem mais bem alimentados ou por passarem mais tempo fechados em apartamentos ou porque já não sobra muita vida selvagem na muito urbanizada Grã-Bretanha, os 8 milhões de gatos britânicos, causam apenas 200 milhões de vítimas por ano (25 por gato).

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O efeito nefasto de cães e gatos domésticos sobre os animais selvagens de pequena e média dimensão é mais pronunciado nas ilhas remotas, onde a fauna nativa não incluía predadores. Assim, na Nova Zelândia o gato doméstico é (juntamente com outras espécies introduzidas pelo homem, como o cão, o arminho e o furão) uma das maiores ameaças ao kiwi, a ave que é símbolo nacional do país. Devido à predação pelas espécies introduzidas pelo homem, só 5% dos kiwis juvenis chegam à idade adulta, o que explica que das cinco espécies de kiwi existentes, uma esteja em perigo crítico, outra esteja ameaçada e duas sejam consideradas vulneráveis. Num episódio registado na década de 1980, um único pastor alemão matou um total de 500 kiwis.

Os amigos dos animais são dos que mais invocam a necessidade de preservar a biodiversidade, mas a proliferação maciça de cães e gatos domésticos (com a ajuda de ratos e coelhos) é uma das grandes ameaças à biodiversidade em muitos ecossistemas do planeta.

Quando o protegido se torna renegado

Ou porque são abandonados ou porque se perdem, há cães e gatos que regressam a um estádio semi-selvagem. Alguns conseguem sobreviver e gerar descendência, que, por não ter sido habituada ao convívio com humanos, se torna ainda um pouco mais selvagem. para prover ao seu sustento, os cães “renegados” recorrem às lixeiras, aos animais selvagens e aos animais domésticos. Estes últimos são vítimas preferenciais, uma vez que são mais lerdos e entorpecidos e menos capazes de defender-se do que os seus congéneres selvagens. Na predação de animais domésticos, o cão “renegado” tem uma vantagem assinalável sobre o lobo, a raposa e outros predadores: tendo convivido com humanos não “entranhou” o receio a estes que é típico dos verdadeiros animais selvagens, pelo que são mais “descarados”, aventurando-se por áreas com forte presença humana e podendo causar estragos bem mais sérios do que os predadores selvagens. Na verdade, muitos ataques a ovinos e aves de capoeira que são atribuídos a lobos, coiotes ou raposas são, na verdade, obra de “renegados”. Alguns dos ataques de cães “renegados” a ovinos têm por objectivo não a satisfação da fome mas a “diversão”, o que se traduz num número de vítimas desproporcionalmente elevado – os cenários de mutilações em massa são típicos dos ataques de cães. A maioria das vítimas não morre nestes ataques “por diversão”, mas acaba por sucumbir às infecções ou tem de ser abatida. E há ainda que contar com as ovelhas que, embora não sendo feridas, acabam por sucumbir ao stress da perseguição e do pânico e com as ovelhas prenhas que abortam.

No passado dia 17 de Maio, conforme noticiou o Público, um homem que abatera um cão vadio que fazia parte de uma matilha que já lhe tinha comido várias galinhas foi condenado pelo Tribunal de Setúbal a pagar 700 euros de multa. A sentença exprimiu, todavia, consternação por um “vazio legal” impedir a aplicação de uma multa mais pesada, uma vez que a lei contra os maus tratos a animais de companhia não prevê a possibilidade de se matar um destes animais deliberadamente – assim, o autor do canicídio foi apenas condenado por “ter causado sofrimento ao animal” (e também pagou quase 2000 euros por possuir armas de fogo não licenciadas).

É um caso que levanta questões espinhosas: pode um cão sem dono e semi-selvagem ser classificado como “animal de companhia”? O que define o universo dos “animais de companhia” (e o estatuto especial de protecção que lhes é conferido) é a espécie a que pertencem ou o facto de terem dono? Se alguém matar uma cascavel de companhia extraviada que lhe apareceu no jardim deverá ser punido? Em que difere, do ponto de vista legal e do tratamento ético de animais “sencientes”, o abate de um cão vadio pilha-galinhas do abate de uma raposa pilha-galinhas? O que pode, dentro da lei, fazer um criador de ovelhas que vê o seu rebanho sistematicamente dizimado por cães? Tentar convencê-los, com bons modos, a trocar as ovelhas pelos menus nutritivos e saudáveis do Chef K9’s Doggy Bistro & Bakery?

Pensemos na lagosta

Em 2003, o escritor David Foster Wallace foi enviado em reportagem pela revista Gourmet ao Festival da Lagosta do Maine. Daqui resultaria “Consider the lobster”, que acabaria por tornar-se no seu ensaio mais célebre e dar título a uma colecção de textos publicada em 2005 (o artigo recebeu, em português, o título “Pensem na lagosta” e está incluído na compilação Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer, editada pela Quetzal).

Em cada Festival da Lagosta do Maine são consumidas em média nove toneladas de lagosta.

Em cada Festival da Lagosta do Maine são consumidas em média nove toneladas de lagosta.

A publicação inicial da reportagem causou alguma controvérsia, menos por levantar questões radicalmente inovadoras do ponto de vista ético ou por apresentar uma argumentação sólida, mas por os leitores de uma revista como a Gourmet não estarem habituados a ser confrontados com elas. “Na experiência de comprar e comer lagostas, acontece que não há forma honesta de evitar certas questões morais”, a mais óbvia das quais envolve o facto de as lagostas serem cozidas vivas. Mas mesmo que lhes seja dada uma morte mais misericordiosa antes da cozedura, acontece que “as lagostas não vêem nem ouvem grande coisa, mas […] têm um sentido táctil apuradíssimo” e sugere-se que “talvez até sejam mais vulneráveis à dor, visto não contarem com a analgesia inerente aos sistemas nervosos dos mamíferos”.

Quando o BE pretende dotar de “estatuto próprio” e “protecção jurídica” os “animais sencientes não-humanos”, “que possuem capacidade de perceber conscientemente o que os rodeia e de receber e reagir a estímulos de forma consciente” estará a pensar também na lagosta? Se sim, adivinham-se tempos difíceis para as marisqueiras.

Na verdade, a lagosta só chama a atenção pela forma particularmente cruenta como é cozinhada, mas nem sequer faz parte das espécies de invertebrados que se distinguem pela “complexidade cognitiva”. Os cefalópodes – polvos, lulas e chocos – demonstram invulgar destreza e capacidade de comunicação e recorrem a técnicas predatórias sofisticadas. Os polvos não só executam operações complexas para abrir recipientes de forma a alcançar a sua comida, como são capazes de aprender a fazê-lo ao verem um parceiro fazê-lo, uma proeza que não está ao alcance de todas as espécies de mamíferos.

[experiência que demonstra a capacidade de aprendizagem dos polvos]

Onde e com que critérios traçar a linha que separa os animais “sencientes” dos “não-sencientes”?

Muitas das linhas que traçamos são impostas por considerações que nada têm de científicas ou éticas: a maioria das pessoas não tem pruridos em abater um mosquito ou uma mosca, mas já vacilará se se tratar de um gafanhoto de boas dimensões.

Como Stephen Jay Gould explanou no seu artigo “Uma homenagem biológica a Mickey Mouse”, publicado originalmente na sua coluna na revista Natural History e incluído na compilação de 1980 O polegar do panda (publicado em Portugal pela Gradiva), o nosso afecto pelas diferentes espécies de animais é condicionado pelo seu grau de neotenia, ou seja, pela medida em que preservam, em adultos, as características morfológicas que associamos às fases juvenis de desenvolvimento dos mamíferos e dos humanos em particular: olhos grandes em relação ao tamanho da cabeça, cabeças grandes em relação ao tamanho do corpo, focinhos curtos, formas arredondadas. É por esta razão que os coelhos nos parecem mais simpáticos que os furões e são tão populares as raças de cães que retêm em adultos características morfológicas de cachorrinho: focinho achatado, olhos grandes, pernas curtas.

Um pug, uma raça de cães com fortes traços neoténicos.

Um pug, uma raça de cães com fortes traços neoténicos.

…e não esqueçamos as couves

As discussões sobre direitos de seres vivos costumam confinar-se a animais, mas porque não abri-las ao mundo vegetal?

As plantas têm, aos nossos olhos, escassa capacidade para reagir a estímulos e nula vida interior, embora algumas pessoas creiam que falar com elas ajuda ao seu desenvolvimento. Em 1986, Carlos, príncipe de Gales admitiu numa entrevista que, nos seus afazeres de jardinagem, tinha o hábito de falar com as suas plantas e que estas lhe respondiam, e um ex-ministro português parece partilhar dessa convicção.

Não se trata de uma ideia nova, pois já em 1848, no livro Nanna oder das Seelenleben der Pflanzen (Nanna, ou a vida interior das plantas), o filósofo e psicólogo alemão Gustav Fechner defendera que as plantas eram capazes de experimentar emoções e que o seu crescimento poderia ser fomentado por um tratamento atento e carinhoso (a “jardinagem dos afectos” precedeu a “presidência dos afectos”). O físico e botânico Jagadish Chandra Bose (um pioneiro na área do rádio e das micro-ondas) conduziu experiências que testavam a reacção das plantas a estímulos e deu conta das suas conclusões numa sucessão de livros, como Plant response as a means of physiological investigation (1906), Researches on the irritability of plants (1913), Life movements in plants (1918-19) ou The nervous mechanism of plants (1926). Algumas das suas descobertas sobre fisiologia vegetal foram de indiscutível valor, mas a sua teoria de que “as plantas possuem um sistema nervoso sensível e uma vida emocional variada” e que “amor, ódio, alegria, medo, prazer, dor, excitação, estupor e inúmeras outras respostas a estímulos são tão universais nas plantas como nos animais” tem tido poucos aderentes na comunidade científica.

Jagadish Chandra Bose, pioneiro da botânica e da física, foto de 1897.

Jagadish Chandra Bose, pioneiro da botânica e da física, foto de 1897.

No entanto, George Bernard Shaw, que era um empenhado combatente da crueldade contra os animais e um vegetariano estrito (o que hoje classificaríamos como vegan), quando visitou o laboratório de Bose ficou muito perturbado quando o botânico lhe deu a ver as “convulsões” sofridas por uma couve quando era colocada em água a ferver.

Poucos vegetarianos se deixarão perturbar pelas convulsões das couves ao serem cozidas, até porque estas decorrem de reacções estritamente físicas dos tecidos ao calor, não sendo manifestação de “dor” ou de qualquer outra resposta do “sistema nervoso” da couve, mas não é preciso ter a alma sensível de Shaw para reconhecer que uma sequóia de 300 anos não é um dos organismos vivos mais admiráveis e mais digno de respeito e protecção. E um carnívoro malicioso até poderá perguntar: não valerá uma dessas sequóias mais do que uma lagosta? Ou até do que uma vaca? É verdade que algumas árvores excepcionais gozam de um estatuto de protecção outorgado pelos Estados, mas não faltam árvores de características similares que estão à mercê de uma moto-serra.

A suposta certeza da divisão do mundo vivo entre criaturas sencientes e não-sencientes esbate-se quando se pensa um pouco sobre o assunto. Estas questões sem resposta óbvia mostram que a discussão dos aspectos éticos do relacionamento entre homens e animais é de uma complexidade extraordinária, pouco condizente com as opiniões assertivas e maniqueístas (em que o papel de mau da fita cabe sempre ao homem e os animais são sempre vítimas inocentes) que dominam o debate e as medidas simplistas com que se pretende regulamentar esse relacionamento.

“General Sherman”, uma sequóia gigante (Sequoiadendron giganteum) no Sequoia National Park, na califórnia. As suas 1900 toneladas fazem dela o maior organismo vivo do planeta. Os seus 2200 anos de idade fazem também dela um dos mais antigos

“General Sherman”, uma sequóia gigante (Sequoiadendron giganteum) no Sequoia National Park, na califórnia. As suas 1900 toneladas fazem dela o maior organismo vivo do planeta. Os seus 2200 anos de idade fazem também dela um dos mais antigos

Onde começam os maus tratos?

Não é obrigatório ser vegetariano para entender que as lutas de galos, as lutas de cães e as touradas são espectáculos cruéis. A tourada tem vindo a perder terreno por todo o mundo e até no país com mais fortes tradições tauromáquicas, a Espanha, uma região – a Catalunha – tomou a iniciativa de a proibir, em 2010 (a proibição entrou em vigor em 2012). Persiste nalguns países, como Portugal, em versão “suave” (ou “hipócrita”), sem a morte do touro na arena, mas, à medida que a legislação contra a crueldade para com animais se difunde, será só uma questão de tempo até que também esta variante seja proscrita.

A maioria dos espectáculos e desportos que envolvem animais são menos ostensivamente cruéis do que a tourada e nalguns os animais até podem dar a ideia de que participam por gosto, mas pouco a pouco aumentam as pressões em torno das corridas de galgos – o PAN tem vindo a movimentar-se contra um “entretenimento” que “vive à custa da exploração da alta performance destes animais, pela exigência dos violentos treinos a que são sujeitos, com choques eléctricos, administração de drogas estimulantes altamente prejudiciais para a sua saúde e um desgaste brutal”.

Segundo a PeTA, só no estado da Florida morre um galgo a cada três dias em acidentes ou em resultado dos esforços a que é sujeito nas corridas e treinos.

Segundo a PeTA, só no estado da Florida morre um galgo a cada três dias em acidentes ou em resultado dos esforços a que é sujeito nas corridas e treinos.

Algo de análogo poderá dizer-se das corridas de cavalos e das corridas de trenós puxados por cães e, já agora, das competições columbófilas, embora a empatia dos humanos por pombos esteja longe da que manifestam por cães e cavalos. Em última análise, todas as competições desportivas envolvendo animais – incluindo as corridas de caracóis – implicam uma componente de crueldade, sem que haja, em contrapartida, um motivo mais legítimo e menos fútil para a exercer do que o entretenimento dos humanos.

Os espectáculos de circo há muitos anos que estão sob fogo cerrado, não tanto pela crueldade do espectáculo em si, mas pela vida de extremo confinamento a que se condenam elefantes e grandes felinos. Mas como o conceito de “animal senciente” não parece conhecer limites, talvez o futuro dos circos de pulgas também esteja em risco.

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Porém, mesmo na pacatez do lar dos amigos dos animais se cometem actos que podem ser vistos como maus tratos. Esterilizar cães e gatos não é uma forma de mutilação permanente, algo explicitamente condenado pela lei já existente? Além disso, a esterilização costuma fazer – pelo menos nos cães – com que os animais se tornem moles, gordos e entorpecidos, o que dá muito jeito aos donos, que passam a ter menos canseiras, preocupações e despesas para controlar e dissipar a sua energia e ficam com uma espécie de peluche vivo, que passa os dias a dormitar e está sempre disponível para ser afagado.

Se fosse possível consultá-lo, talvez o cão preferisse levar uns pontapés de vez em quando do que perder definitivamente os testículos. Afinal de contas, ensina-nos a sociobiologia, toda a actividade desenvolvida pelos seres vivos visa, em última análise, a perpetuação dos seus genes e um cão, mesmo enclausurado numa marquise e tendo os seus breves momentos de liberdade restringidos por uma trela, ainda poderá acalentar uma ténue esperança de propagar o seu património genético – que se extingue irremediavelmente por ablação das gónadas. Ainda veremos surgir manifestos em prol da liberdade sexual dos animais de companhia?

Para que o seu cão castrado não se sinta humilhado pela visível ausência dos seus sinais externos de masculinidade, existem implantes que permitem disfarçar a sua ausência. Foram baptizados em inglês como “neuticles” e Buck (à esquerda) recebeu uns, em 1995, já mais meio milhão de animais recebeu implantes similares. Greg Miller (à direita), o dono de Buck e o inventor dos neuticles, foi, justamente, agraciado em 2005 com o Prémio Ig Nobel da Medicina.

Para que o seu cão castrado não se sinta humilhado pela visível ausência dos seus sinais externos de masculinidade, existem implantes que permitem disfarçar a sua ausência. Foram baptizados em inglês como “neuticles” e Buck (à esquerda) recebeu uns, em 1995, já mais meio milhão de animais recebeu implantes similares. Greg Miller (à direita), o dono de Buck e o inventor dos neuticles, foi, justamente, agraciado em 2005 com o Prémio Ig Nobel da Medicina.

Será mais provável que, à medida que os padrões de exigência no tratamento dos animais de companhia vão sendo elevados e se vá assistindo ao “despertar de mentes mais holísticas” (a expressão é de uma “fonte oficial do PAN”), o conceito de mau trato de vá dilatando. Virá um dia a ser passível de punição alimentar um cão com restos ou com ração que contenha glúten?

Estando os maus tratos físicos mais óbvios já contemplados na lei, os maus tratos psicológicos poderão ser o alvo seguinte do afã legislativo. E sendo uma das principais causas de sofrimento psicológico dos animais a que resulta da separação entre os animais e os seus amigos, é compreensível que o PAN pretenda que a interdição de entrada de animais de companhia em restaurantes, cafés e bares seja abolida e se deixe ao critério de cada estabelecimento comercial a sua admissão ou não (embora seja prudente desconfiar de um restaurante chinês que anuncie que “cães são bem-vindos”).

Mais uma vez, parece crucial definir o que é um “animal de companhia”, sob pena de surgirem situações imprevistas.

Loja de roupa em Varanasi, no estado de Uttar Pradesh.

Loja de roupa em Varanasi, no estado de Uttar Pradesh.

O nosso estilo de vida faz vítimas

Quem viva no campo e retire o seu sustento da terra, tem, todos os dias, que fazer escolhas que poderão ser desconfortáveis para as almas sensíveis e podem implicar “animalicídio”. Se não matar os caracóis não comerá couves, se não aplicar pesticida contra os escaravelhos da batata não comerá batatas, se não afugentar os tordos e os melros sobrarão poucos frutos, se não montar ratoeiras verá os ratos devorar a maior parte da colheita de milho, se não arranjar maneira de matar o furão que se infiltra no cercado das galinhas, acabará sem galinhas, se cria porcos vai ter de matá-los ou vendê-los a alguém que os irá matar. Estas pessoas são postas perante dilemas do tipo “ou eles ou eu” e resta-lhes escolher o “eu” ou mudar-se para uma cidade e tornar-se cake designer, professora de ioga ou qualquer outra profissão que não implique decisões que prejudicam directamente outros seres vivos.

A marcha do mundo tem vindo a fazer com que as pessoas que trabalham na agricultura e pecuária representem uma fracção cada vez menor da população, sendo mesmo residual (da ordem dos 3-5%) nos países desenvolvidos. Por outro lado, a vida nas zonas urbanas do mundo moderno, onde vive a esmagadora maioria da população, está organizada de forma que poucas pessoas se verão numa situação em que sejam confrontadas com a decisão de matar, ferir ou prejudicar seriamente um animal. A divisão de tarefas assegura que haverá sempre uma engrenagem anónima e invisível que se ocupa do abate nos matadouros ou pelo extermínio das pragas e outro trabalho “sujo” e moralmente inquietante. Para um número crescente de urbanitas (onde se insere a esmagadora maioria dos amigos dos animais), a comida-nossa-de-cada-dia materializa-se nas prateleiras do supermercado, convenientemente embalada, desossada, asseptizada e isenta de decisões moralmente desconfortáveis – ao longo do processo produtivo, já alguém as tomou pelo consumidor final.

[Unser täglich Brot (O pão nosso de cada dia) é um perturbador documentário de 2005 do realizador austríaco Nikolaus Geyrhalter que mostra, de uma perspectiva realista e fria e sem uma palavra de comentário ou depoimento, como são produzidos os nossos alimentos]

https://www.youtube.com/watch?v=5wVXZKLlKQs

Porém, além dos “animalicídios” cometidos para benefício da nossa alimentação, que, embora perpetrados longe dos nossos olhos e ouvidos, levam muitos a tornarem-se vegetarianos, há outros que são exercidos de forma ainda mais remota e indirecta, e que resultam das muitas e complexas acções necessárias a sustentar o “trem de vida” moderno: a construção de vias de comunicação e urbanizações, que bloqueiam migrações e fragmentam habitats; a extracção dos minérios necessários ao fabrico dos nossos automóveis e os nossos smartphones, que gera paisagens lunares e cursos de água ácidos; a substituição da vegetação natural por terrenos agrícolas e florestas mono-específicas. E se ninguém tirará prazer de ver uma ave marinha coberta de crude, poucos serão os que pensam nas mortes de animais implícitas na produção de energia, mesmo quando provêm de fontes renováveis – haverá sempre salmões cuja migração será bloqueada pelas barragens e aves que colidem com os aerogeradores.

Birds, Fisheries, Fishing nets, Gannets, KWCI (GPI), Oceans (campaign title),

Cada rolo de papel higiénico, cada viagem de automóvel, cada salada de alface, cada hora de ar condicionado, cada televisor, cada garrafa de cerveja, cada peça de roupa, tem implícito um custo em vidas: há animais que são expulsos dos seus habitats, privados das suas fontes de alimentação e dos seus abrigos, dos seus períodos de repouso, perturbados na sua capacidade de orientação, obrigados a fazer longos desvios para encontrar água e alimento. Neste mundo globalizado, cada ser humano – pelo menos os afortunados que vivem no mundo desenvolvido – tem necessidades enormes e constantes de bens e serviços a cujo fornecimento estão associados danos em ecossistemas das pampas da Argentina à Grande Barreira de Coral. E isto acontece mesmo quando o cidadão em questão tem genuína consciência ambiental e social, e prefere lojas de “comércio justo”, separa o lixo, verifica se o papel usado para produzir o livro que pretende comprar provém de uma empresa que aplica técnicas de gestão florestal sustentáveis e se assegura de que o peixe que adquire foi capturado através de artes de pesca que não causam a morte de golfinhos.

Entre os 7.000 milhões de habitantes do planeta, poucos participam directamente neste animalicídio maciço, mas ele é cometido todos os dias, nos bastidores, para que possamos disfrutar dos confortos e mordomias da civilização e não é o facto de pouco sabermos sobre as engrenagens que movem a economia mundial que nos isenta de culpa.

Deveremos então prescindir da civilização e regressar a um estilo de vida despojado e edénico?

O péssimo cadastro do Bom Selvagem

O regresso a uma vida simples e harmoniosa, de comunhão com a natureza, enfrenta sérios obstáculos. A ideia de que existiu um tempo em que o homem vivia perfeitamente integrado no mundo natural, sem dele retirar mais do que necessitava e quase sem deixar pegada ecológica é uma fantasia amável. O Homo sapiens sempre foi um predador extremamente eficaz e, muito antes de ter construído cidades e forjado utensílios em metal, já semeava a destruição pelo mundo.

Embora à distância de milhares de anos seja difícil provar relações causa-efeito, há coincidências impossíveis de ignorar. Os restantes animais depressa perceberam que o macaco pelado era um inimigo implacável e aprenderam a temê-lo e evitá-lo, pelo que, na África, Europa e Ásia os comportamentos dos predadores humanos e das suas presas evoluíram em conjunto e foi possível atingir um equilíbrio na relação de predação.

Mas quando o Homo sapiens chegou a territórios virgens, como a América, a Austrália, Nova Zelândia ou Madagáscar, onde os animais desconheciam a letalidade do recém-chegado, registaram-se sempre extinções maciças e abruptas (numa escala de tempo geológica) de mamíferos e aves de grande porte.

Percentagem de sobrevivência de espécies de grandes mamíferos ao longo do tempo. As setas a negro indicam a chegada do Homo sapiens ao território. A escala temporal é logarítmica.

Percentagem de sobrevivência de espécies de grandes mamíferos ao longo do tempo. As setas a negro indicam a chegada do Homo sapiens ao território. A escala temporal é logarítmica.

Em Guns, germs and steel (editado em Portugal pela Temas & Debates como Armas, germes e aço), Jared Diamond lembra que a fauna da Austrália/Nova Guiné não possui hoje animais que ultrapassem os 50 Kg de peso, mas em tempos houve “cangurus gigantes, marsupiais chamados diprotodontes semelhantes a rinocerontes e com o tamanho de uma vaca e um ‘leopardo’ marsupial […] e uma ave semelhante a uma avestruz e incapaz de voar com 200 Kg de peso, bem como um lagarto de uma tonelada”.

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Reconstituição de um Diprotodon, um wombat de duas toneladas e meia.

As mudanças climáticas poderão ter contribuído para as extinções de há 40.000 anos na Austrália/Nova Guiné, mas, como Diamond faz notar, os animais de grandes dimensões extinguiram-se em todo o tipo de habitats, não apenas nos instáveis ambientes de savana, mas também nos desertos e nas florestas tropicais, sub-tropicais e temperadas. E, em todos os habitats, as extinções ocorreram pouco depois da chegada do Homo sapiens.

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Para quê perder tempo a correr atrás de galinhas-do-mato quando um Genyornis newtoni de 200 Kg pode alimentar toda a tribo?

E quando, há 12.000 anos, o macaco pelado atravessou o Estreito de Bering e se difundiu pelo continente americano, mamutes, mastodontes, tigres dentes-de-sabre, os equivalentes americanos de leões, leopardos-chita, cavalos e camelos e espécies gigantes de castores, tapires, armadilhos e preguiças, habitando nos mais diversos habitats, do Alaska à Terra do Fogo, desapareceram quase em simultâneo (na escala de tempo geológica).

Em Madagáscar, onde o Homo sapiens só chegou há apenas 2000-2500 anos a “limpeza” foi mais completa: não sobrou nenhuma espécie com mais de 10 kg e a maior parte dos mamíferos que sobreviveram têm hábitos nocturnos, sendo, por isso, mais difíceis de caçar.

Claro que nem todas as espécies se extinguiram porque foram caçadas e comidas – umas extinguiram-se porque ficaram sem presas, outras devido à modificação do habitat (nomeadamente através de queimadas), outras pela predação de ovos que comprometeu a renovação da espécie. Seja como for, o efeito do Homo sapiens sobre as restantes espécies é devastador e começou a fazer-se sentir muito antes de ter inventado a máquina a vapor e o glifosato, numa época em que havia apenas algumas centenas de milhares de homens em todo o planeta e em que as suas armas mais sofisticadas eram umas mocas e umas varas de madeira com umas pontas de pedra na ponta..

Será que a única solução para o bem-estar das outras espécies é a saída de cena do Homo sapiens?

Uma ninhada de equívocos

As estatísticas costumam dar conta do aumento do número de lares com animais de estimação mas têm dificuldade em registar o fenómeno do aumento de casos de pessoas, geralmente solitárias e do sexo feminino, que acumulam animais de companhia, a ponto de alguns apartamentos parecerem uma pequena Arca de Noé. Aparentemente, estes animais falham em providenciar “companhia”, já que a pessoa persiste em adicionar sempre mais um elemento à “família” e só é travada pelo exorbitar das despesas com alimentação e veterinário ou pelas reclamações dos vizinhos ou, em casos extremos, pela intervenção das autoridades sanitárias. Este impulso para multiplicar os animais de companhia manifesta-se geralmente em pessoas com dificuldades em desenvolver relações humanas satisfatórias e duradouras e que buscam um sucedâneo para estas no vínculo com animais. A relação com animais é menos exigente e mais simples e previsível do que o com pessoas, mas é incapaz de colmatar a lacuna emocional original, pelo que a pessoa sente sempre necessidade de acolher mais um bicho.

A relação equívoca entre o amor assolapado pelos animais e a dificuldade em amar pessoas é apenas uma das nuvens que toldam o debate em torno dos direitos dos animais. Há quem confunda a meritória intenção de “descoisificar os animais” com a sua equiparação ao estatuto de “pessoa”. Há quem misture os dados sobre a inteligência e sensibilidade animais reveladas pela “evolução científica” com uma visão “disneyficada”, antropomórfica e sentimental do mundo natural. Há forças políticas que tomam o debate pelos direitos dos animais por mais uma competição no domínio das “causas fracturantes” e da “correcção política”, uma corrida em que, à medida que as pretensões mais razoáveis vão sendo alcançadas, tende a enveredar por exigências descabeladas. E há quem, embalado numa vertigem auto-recriminatória, após repudiar a história e cultura ocidentais, agora se sinta invadido pela vergonha de fazer parte da espécie humana.