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Ouvimo-la em estúdio a aclarar a voz, à procura do ambiente certo para cantar, o tom mais perfeito para interpretar as palavras. Ouvimo-la conversar com o guitarrista Fontes Rocha, em busca do ambiente sonoro adequado para soltar aquela portentosa, seguríssima voz — e ouvimo-lo dizer-lhe: “Você tem de estar segura no ritmo, só, e não fazer caso da guitarra, não faça caso da guitarra”.
Ouvimo-la ensaiar em casa, fados com som ambiente (talvez se oiça o barulho de uma colher a bater numa xícara, acredita-se) e conversas à mistura, com o compositor Alain Oulman e com os músicos: Fontes Rocha, sim, mas não só. Ouvimo-la, e isto é que é o mais importante, em pleno auge vocal, a interpretar brilhantemente, como ainda não ouvíramos, um repertório então novo e que em alguns casos só seria desvendado em disco bem mais tarde (noutros casos, não o seria de todo).
Quem ouvimos é Amália Rodrigues — e onde agora a ouvimos e a continuamos a descobrir é no novo disco duplo Amália 1970 Ensaios, que a editora Valentim de Carvalho publica na próxima sexta-feira, 11 de dezembro, e que a mostra a cantar fados como quem os constrói, de detalhe em detalhe, de versão em versão.
[A capa do disco que chegará às lojas físicas e plataformas de streaming na próxima sexta-feira, 11 de dezembro:]
Em 1970 e 1971, em estúdio no primeiro dos dois discos e em sua casa nas gravações do segundo, o que ouvimos pela primeira vez é Amália a começar a vestir e despir fados novos, ensaiando-os e procurando para eles versões definitivas, em gravações até hoje inéditas. Somos transportados para o início do processo laborioso, ainda que entusiástico, de uma fadista maior e dos seus parceiros instrumentistas em busca do tom certo para composições de Alain Oulman, apurando gravação a gravação fados que seriam incluídos no último álbum da fadista com o cúmplice Oulman, Cantigas numa Língua Antiga — que seria lançado só vários anos mais tarde, já em 1977.
A edição foi coordenada por Frederico Santiago, conhecedor profundo da obra de Amália Rodrigues, que a tem estudado, que tem desvendado o que Amália deixara por revelar e a tem procurado compreender ao longo dos últimos anos — anos recentes em que o responsável pelo tratamento e edição da obra integral da fadista coordenou, por exemplo, as edições Amália em Itália ou Amália em Paris. Ao Observador, Frederico Santiago resume o contributo que considera que a edição traz: “Acho que é um documento único que nos permite ver a criação [de Amália] quase como se estivéssemos lá”, em estúdio e na casa da fadista.
Como se fez o disco: do encontro das bobines ao restauro
A história deste novo disco começou quando Frederico Santiago encontrou as gravações que compõem o segundo dos dois discos que perfazem Amália 1970 Ensaios.
As gravações do primeiro disco, registadas no Estúdio da Valentim de Carvalho de Paços de Arcos a 7 de outubro de 1970 (faixa 1 e faixas 4 a 14) e algures em 1971 (faixas 2, 3 e 15 a 20), Frederico Santiago já as conhecia: “Já sabia da existência delas há algum tempo”, conta ao Observador. As do segundo álbum, porém, só as ficou a conhecer há perto de um ano: “Encontrei uma bobine com gravações feitas em casa da Amália, não profissionais como são as de estúdio”.
Na sua sala, a fadista ensaiava com músicos e compositores o repertório que depois chegaria a estúdio e a disco. Alguns ensaios ficaram registados e foi o caso das sessões que surgem no segundo CD de Amália 1970 Ensaios, sessões que decorreram em diferentes períodos temporais. Há gravações “entre 1968 e 1970” em que Alain Oulman canta e toca ao piano, na sala de Amália, algumas composições que fizera para a fadista: “As Facas”, “Fui à Fonte Lavar os Cabelos”, “Alfama”, “Tirai os Olhos de Mim” e “Eu Não Tinha”. E há gravações, essas sim com Amália a cantar — acompanhada em sua casa por Joel Pina na viola-baixo, Pedro Leal na viola, Fontes Rocha e Carlos Gonçalves nas guitarras e Alain Oulman ao piano — que remontam aos anos de 1970 e 1971.
Como é que este registo caseiro sobreviveu às décadas e surge hoje em disco? Primeiro foi preciso localizá-lo: “Quem o guardou foi a Estrela Carvas, amiga da Amália e sua colaboradora [então secretária], que tinha feito uma cópia para ela”. Depois foi preciso trabalhar o som: se no caso das gravações do primeiro disco, em estúdio, a qualidade sonora já era boa, nas gravações caseiras a qualidade era inferior, pelo que Frederico Santiago recorreu a Pedro Félix e ao Arquivo Nacional do Som (ANS) — um organismo criado em 2019, tutelado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e pelo Ministério da Cultura.
O organismo tem como propósito a criação de uma “infraestrutura arquivística para documentos sonoros” e “mapear, garantir que ficam preservados e em segurança” documentos sonoros históricos, cumprindo também “o processo de digitalização” desses documentos e garantindo o “acesso em formato digital”, “respondendo sempre a direitos de autor, à privacidade e à proteção de dados”, explicou ao Observador Pedro Félix, coordenador do ANS e responsável pelo restauro de som destas gravações.
Para a colaboração do Arquivo Nacional do Som com este disco da Valentim de Carvalho, contribuíram o “apoio articulado” do Ministério da Cultura às celebrações do nascimento de Amália Rodrigues, assinalado em 2020, e a “vontade da editora de publicar os discos”. Foi então assinado um protocolo para que o Arquivo Nacional de Som assegurasse o restauro destas gravações de som de Amália, de modo a que o disco pudesse ser editado.
Assegurar a qualidade de som das gravações em estúdio, que compõem o primeiro dos dois discos, não foi uma tarefa hercúlea, assume o próprio responsável pelo restauro: “As gravações em estúdio estão muito boas. Obviamente não são gravações definitivas e isso nota-se, vê-se que são gravações intermédias ou experimentais, mas o sinal é muito bom”.
Mais preocupações levantou a qualidade de som das gravações caseiras, assume Pedro Félix: “Foram feitas quase de certeza com um gravador doméstico — por muito bom que fosse… — e utilizando um microfone para captar o som de todas as pessoas presentes na sala”. Curto e grosso: “De facto, o som não era o ideal”. Felizmente, “o suporte estava muito bem preservado e deu-nos muita margem de manobra, permitiu-nos fazer o nosso trabalho. Não procurámos equalizar, beneficiar ou realçar determinados elementos de som. O que procurámos foi retirar coisas que a história do suporte provocou: pequenas distorções, pequenos ruídos possíveis de retirar, pancadas, descargas elétricas que ficaram inscritas no som. Enfim, coisas que dificultavam a perceção do evento [ensaio]”.
Há detalhes curiosos no som das gravações caseiras, nota Pedro Félix, a quem estas chegaram já “na versão digital”, formato no qual o restauro hoje é feito: “Percebe-se por exemplo quando a Amália se está a mexer na sala. Ou quando se aproxima do microfone, que já não seria dos topo de gama de estúdio, porque isso provoca uma distorção. Mas não apagámos, porque se o fizéssemos íamos alterar as características tímbricas da voz”. O que está neste segundo disco, acrescenta o coordenador do Arquivo Nacional do Som, “é um bom exemplo do que é um documento sonoro, aquilo que normalmente desaparece da história” e “é o melhor que conseguimos ter a seguir a estarmos ali, naquela sala, naquele momento”.
O objetivo assumido no restauro era o de “encontrar a voz da intérprete” naquele tempo. Pedro Félix teve nisso a ajuda preciosa de Frederico Santiago, que conhece as cambiantes da voz de Amália como ninguém: sabe até que ponto é possível ir sem adulterar o som da voz (e, consequentemente, de toda a envolvente, desde logo instrumental) que a fadista tinha naqueles anos de 1970 e 1971.
A visão dos dois encontrou-se num ponto: era importante que o som destas gravações não fosse ‘moderno’, hiper-produzido e não transformasse a voz e a música dos artistas daquele tempo em voz e música adaptada às técnicas modernas de produção e captação de som. “Há limites para o restauro, não se pode fazer determinadas coisas”, nota Pedro Félix, que se congratula por ter sido possível “produzir documentos facilmente audíveis sem comprometer as características dos próprios documentos”. Por documentos, leiam-se: os ensaios e takes gravados em casa de Amália.
Remata o antropólogo e especialista em etnomusicologia: “Não posso procurar um som que não é aquele que lá está. Muitas vezes há uma certa tendência da indústria fonográfica de fazer com que documentos históricos soem modernos. Isso nota-se muito nos ruídos, há uma tentativa muito grande de os atenuar. Mas se atenuo para além de determinado ponto estou a afetar as características de som do documento. Ou seja, estou a criar uma fantasia. Não queríamos um som moderno de uma coisa gravada nos anos 60 e 70. Há um trabalho de polimento que não pode retirar todos os pequenos ruídos e deixar só a voz, porque isso alteraria significativamente o som”.
É uma opção feliz, esta, até porque se as gravações em casa de Amália têm algum valor também — ou sobretudo — pela janela que abrem ao ouvinte para o ambiente de ensaio: os pequenos barulhos, as conversas, as vozes em fundo, tudo isso é o que transporta o ouvinte para aqueles dias e aqueles lugares.
Se o trabalho tivesse sido feito com o objetivo de apresentar só a música, sem sons de ambiente, não ouviríamos Amália dizer a Rui Valentim de Carvalho, seu então editor: “Ó Rui, grava!”. Não ouviríamos as gargalhadas da décima faixa do segundo disco (já lá vamos), ou Amália a dizer no início do ensaio de um tema “vá lá, com graça”. Talvez não a ouvíssemos pedir mais do que uma vez a Alain Oulman para cantar, desafiá-lo para cantarem os dois — “cantamos os dois, eu canto uma oitava abaixo” —, dizendo-lhe mesmo: “Alain, no seu tom”.
Não ouviríamos também os barulhos que nos lembram que sim, tudo isto aconteceu há 50 anos, que nada nestas gravações caseiras foi feito para ser editado assim, que tudo foi gravado quanto muito para servir de base a um trabalho permanente da fadista, sempre em busca dos melhores fados, sempre em busca da melhor interpretação, sempre à procura das melodias que mais lhe assentassem. Mas hoje, cem anos depois do nascimento de Amália Rodrigues, cinquenta anos depois de muitas destas gravações e já mais de 20 anos passados desde a morte, Amália é património nacional, público, de todos.
Há-de sustentar Frederico Santiago quando a conversa passar para os fados que se ouvem aqui e a Amália que aqui se descobre: se estas gravações póstumas servem para algo é para evidenciar o dom único da fadista aliado à capacidade de trabalho, ao talento dos parceiros e ao bom gosto do repertório escolhido. Amália 1970 Ensaios não é, defenderá o coordenador, uma edição vampiresca que tenha como objetivo espremer o que não deveria ser espremido — é sim um retrato da criação da fadista que só a engrandece.
Amália 1970 Ensaios é, muito simplesmente, Amália, Oulman e músicos a moldarem temas, a construírem laboriosa e entusiasticamente fados, avançando permanentemente na criação de repertório novo e de grande qualidade — aqui, cantado ainda com uma voz que se começaria a deteriorar uns anos depois.
Os fados ensaiados em casa e os fados testados e gravados em estúdio
O primeiro dos dois discos, referente às gravações em estúdio, desdobra-se em 20 temas e em ensaios no estúdio, sim, mas também àquilo que Frederico Santiago chamou “takes experimentais no estúdio”. O coordenador da edição explica o que significa isso: “No estúdio não se trata só de ensaios: temos também os takes experimentais, que é um produto acabado”. O que Frederico Santiago quer dizer com isto é que as gravações de ensaio coexistem com takes que poderiam ser definitivos, mas não foram — já não é o ensaio de determinado fado, é a gravação cuidada de determinado fado.
Sendo “mais ou menos da época do Com Que Voz“, o afamado disco que Amália editou em março de 1970, “o repertório [destes dois CDs] é bastante diferente — parte vem a ser editado mais tarde e já vem a encontrar a Amália com uma voz completamente diferente”, nota Frederico Santiago. Traduzindo: “Estamos perante coisas novas que o Alain [Oulman] fez para a Amália nesta altura, com fados inéditos”.
Nas gravações de estúdio, ouvimos ensaios e um take experimental de “Sete Estradas”, com palavras de Armindo Rodrigues (poeta opositor do Estado Novo, que foi por diversos preso) e que Amália acabaria por não editar; e quatro temas que incluiria vários anos mais tarde no disco Cantigas Numa Língua Antiga, de 1977, aqui em múltiplas versões. São eles “Meu Amor é Marinheiro”, “Rosa Vermelha”, “Alfama” e “Perdigão”.
Dos quatro fados do primeiro disco, aquele de que se ouvem mais versões é “Rosa Vermelha”, com Fontes Rocha na guitarra, Oulman no piano e Amália na voz à procura de reinvenções, de versões cada vez melhores, de diferentes ambientes sonoros. Mas “Alfama” é outra das grandes pérolas: revelado mais de uma mão cheia de anos depois em disco, é um dos grandes fados de Amália e tem uma história curiosa que o livro que acompanha a edição detalha.
À data, a ideia de Oulman era compor um disco inteiro para Amália em conjunto com Ary dos Santos, com fados todos eles relativos aos bairros lisboetas. Aparentemente, o único que “ficou em condições” foi “Alfama”, porque Ary dos Santos fez “alguns, mas muito à pressa”. E também houve mudanças de versos: se na versão final se ouve a expressão a silêncio magoado, esta fora colocada em substituição de a manjerico e a cravo. Porquê? Palavra a Alain Oulman: “Estávamos a voltar para a horta, uma tendência que ele [Ary dos Santos] tinha quando não encontrava mais ideias”.
Alguns destes fados estão também no segundo disco, com gravações de ensaios caseiros que decorreram na famosa sala da casa de Amália na Rua de São Bento, em Lisboa, algures entre o final de 1970 e início de 1971. “Sete Estradas”, o tal que Amália nunca editaria em disco de estúdio, é um dos que não ouvimos só gravado no estúdio mas também em ensaio caseiro; “Perdigão”, “Rosa Vermelha” e “Alfama” são outros.
Há porém fados cantados em casa, mas não em estúdio. Um deles é “Nunca Ninguém Viu Ninguém”, uma composição de Oulamn feita sobre um poema de Cecília Meireles, aqui cantado sobretudo pelo compositor (a fadista só o trauteia) e que a Amália gravaria mais tarde mas nunca editaria. Outro é “Gondarém”, que aqui surge numa versão totalmente diferente da que seria editada em Cantigas Numa Língua Antiga (ao contrário do que acontece com as gravações caseiras de “Abril” e “Perdigão”): se no disco de 1977 tem drama e peso trágico com fartura, neste ensaio é alegre, com acompanhamento quase folclórico e palmas batidas a marcar o ritmo.
Ouve-se também, nestas sessões em casa de Amália, um tema mais ligeiro e cómico, “Com a Vossa Licença”, uma espécie de tango cantado por Alain Oulman no arranque (e depois também pela fadista) que destoa bastante dos restantes. Acabaria por nunca ser editado e Frederico Santiago tem uma tese sobre o porquê: ao contrário do que às vezes se julga, Amália tinha um poder grande de decisão em relação ao rumo da sua obra. “É sempre o gosto dela que impera. Não é por acaso que este ‘Com Vossa Licença’ ficou pelo caminho, de certeza que achou que aquele não era um texto para ela”.
Somam-se a isso Amália a cantar “Abril” e as gravações de ensaio de Oulman a cantar para a fadista “As Facas” (também incluído em Cantigas Numa Língua Antiga), “Fui à Fonte Lavar os Cabelos”, “Alfama”, “Tirai os Olhos de Mim” e “Eu Não Tinha” e temos o segundo disco ‘caseiro’ completo.
O que os ensaios mostram: a “co-composição”, o virtuosismo, o trabalho
No texto que acompanha a edição (cuidada) destes ensaios de Amália Rodrigues, Frederico Santiago deixa várias notas. Vinca, por exemplo, a importância de notar o trabalho musical de procura aqui evidenciado, por oposição apenas às ideias de inspiração e talento natural (válidas mas insuficientes para pintar todo o retrato). Destaca também um “virtuosismo vocal e artístico” notório nas sessões e uma “procura de caminhos emocionais de Amália” — o que chama de “procura de um ambiente para cada obra”.
A influência de Amália neste repertório e no modo de interpretar é tão clara, aliás, que leva a que em “Rosa Vermelha”, do qual “sobreviveram mais provas gravadas”, possa-se até falar em “co-composição entre Amália e Alain Oulman”, refere Frederico Santiago — desconstruindo, assim, a ideia de que os fados chegariam na sua versão final à fadista que não faria grandes comentários sobre as melodias e acompanhamentos, limitando-se a cantar.
Também o ambiente político é referido: se quando Amália lança Cantigas Numa Língua Antiga em 1977, disco pejado de palavras como “liberdade” e de letras de poetas à esquerda, a opção foi vista como uma espécie de conversão tardia da fadista aos ideais democratas — uma espécie de aproveitamento político somente de adaptação à nova fase do país —, estes ensaios mostram que muitos desses temas já andavam a ser pensados, ensaios e testados por Amália no arranque dos anos 1970. Afinal nem o “cravo na boca” que se ouve em “Meu Amor é Marinheiro” nem o fado “Abril” tinham sido concebidos de raiz para reagir e aderir à revolução…
Para o coordenador da edição, um dos aspetos mais “inéditos” destas gravações é “a prova” revelada do “cuidado de co-criação” que havia entre Amália Rodrigues e Alain Oulman — mais uma sustentação da ideia de que Amália estava longe de ser uma intérprete acrítica dos fados de Oulman, deslocada das melodias, dos acompanhamentos e das palavras do seu repertório.
Outra coisa que Frederico Santiago nota na relação entre a data dos ensaios destes fados e a edição de muitos deles, apenas em 1977, é que “dificilmente Amália poderia editar este repertório na altura em Portugal”. No estrangeiro por exemplo já começava a cantar “Meu Amor é Marinheiro” — com letra de Manuel Alegre, autor que tinha cantado no disco Com Que Voz, modificando-lhe algumas estrofes para evitar a censura —, mas em Portugal alguns destes fados dificilmente passar os ensaios.
Depois há também a “euforia” e a “alegria” na interpretação deste repertório em casa e em estúdio, a “alegria que os criadores têm” e que nem sempre se associa a Amália, mais “associada ao fado triste”. “Eles têm noção do que estão a fazer. Ouve-se um guitarrista dizer: isto vai ser um número fantástico. Ouve-se a Amália a elogiar o acompanhamento. Há uma alegria aqui que é nova e que é muito cativante”, nota Frederico Santiago.
Para o coordenador da edição, estas gravações reforçam que Amália, “inteligente como era”, muitas vezes não queria “explicar o inexplicável”. É claro que “o génio também dá trabalho” e Amália “não se contentava, experimentava, tinha cuidado com o som, sabia muito mais do que o que queria que as pessoas soubessem. É uma coisa que nos pode irritar às vezes, o fazer-se de tonta, mas foi uma maneira de ser muito livre. Ela não tinha de explicar nada — sabia bem o que fazia como aqui se vê, dominava tudo no bom sentido, dominava os guitarristas e até o Alain. As pessoas nem suspeitam da exigência que ela tinha consigo própria — porque era tudo tão natural, parecia água a correr…“.
Apesar destas serem gravações que não foram feitas com o intuito inicial de serem editadas, “ninguém vai ouvir aqui uma Amália menor”, defende Frederico Santiago, que considera até que “do ponto de vista interpretativo” estas gravações mostram-na num pico de capacidade. “Nunca apanhei uma coisa que pudesse envergonhar seja quem for. Neste caso, o material era todo ótimo. Acredito que a Amália pudesse gostar que as pessoas tivessem curiosidade por ela. Está tão bem aqui que arrisco dizer que adoraria ouvir. Temos de nos lembrar também que às vezes há motivos exteriores [sociais e políticos] para determinado repertório não ter sido editado no momento em que era testado”.
Independentemente de como a fadista visse esta edição, porém, “quando um artista destes ganha a dimensão que a Amália ganhou deixa de ser só de si próprio e passa a ser um bocadinho de todos nós”, defende o coordenador desta edição. “Há um lado patrimonial nisto que é tão forte… e depois artisticamente é tão bom” que não editar seria um erro, remata.
Sobre o porquê de defender que este período era o “auge vocal” da fadista, diz o especialista amaliano: “Em nova fazia muitas voltinhas e coisas que a voz aguentava. Mais tarde, com a voz já gasta, apostou num canto mais trágico, mais pesado. Mas temos de ser objetivos: houve uma época em que ainda lhe faltava uma certa maturidade e há depois uma época mais tarde onde falta uma certa frescura. O final dos anos 60 e o início dos anos 70 foram o auge artístico: já tinha um total domínio dramático e emocional das coisas que cantava e tinha um esplendor vocal ainda inultrapassável”.
Quando gravou as versões finais de alguns destes fados mais tarde, para o disco Cantigas de uma Língua Antiga, “apesar da Amália ainda estar muito bem já se começa a sentir qualquer coisa na voz. E há toda uma desilusão que aconteceu no pós-25 de abril”, nota Frederico Santiago. Aí, considera o editor, o repertório de Amália ainda era esplêndido, mas a voz já começava a não ser a mesma. Aqui, alia-se o repertório ao portentoso aparelho vocal num momento raro.
Amália morreu há 20 anos. Porque é que a voz dela era especial?