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O célebre duelo entre Evgeny Onegin e Vladimir Lensky, aguarela de Ilya Repin, 1899
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O célebre duelo entre Evgeny Onegin e Vladimir Lensky, aguarela de Ilya Repin, 1899

O célebre duelo entre Evgeny Onegin e Vladimir Lensky, aguarela de Ilya Repin, 1899

Honra: breve história de uma virtude “obsoleta”

Que significado tem hoje “compromisso de honra” e de que modo nos sentimos vinculados por um conceito reintroduzido por uma resolução do Conselho de Ministros? Viajamos por outros tempos e geografias.

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A pandemia de Covid-19 causou mudanças drásticas na forma como nos relacionamos, introduziu novo vocabulário, deu novo significado a vocabulário já existente e ressuscitou antigos medos que julgávamos definitivamente enterrados. A Resolução do Conselho de Ministros relativa à limitação de circulação entre concelhos no período entre 30 de outubro e 3 de novembro, reintroduziu um conceito caído em desuso: a honra.

Uma das (muitas) exceções previstas pela dita resolução contemplava as deslocações entre concelhos limítrofes (ou dentro da mesma área metropolitana) “para efeitos de atividades profissionais ou equiparadas”, que era autorizada desde que o próprio declarasse, sob “compromisso de honra”, que a deslocação tem esta motivação. Num mundo cada vez mais regido pelo pragmatismo e pela conveniência, “honra” é um termo que raramente aflora na conversa quotidiana e surge apenas associado a circunstâncias formais: na prestação de testemunho em tribunal (“juro pela minha honra que hei-de dizer toda a verdade e só a verdade…”), em tomadas de posse de governantes (“juro, por minha honra, desempenhar fielmente as funções em que fico investido…”), em debates parlamentares (“Senhor Presidente, solicito uma intervenção em defesa da honra da bancada”…) ou na recolha de apoios para campanhas eleitorais (“a composição da comissão de honra da candidatura suscitou polémica…”). A honra tem ainda papel central em contexto militar e, se bem que o texto do Juramento de Bandeira não a mencione, ela está claramente subentendida no compromisso que o militar assume com a pátria, “mesmo com o sacrifício da própria vida”.

Para tentar perceber o significado de um “compromisso de honra” para o cidadão comum português do século XXI, é instrutivo sondar outros tempos e outras geografias.

Itália, 279 a.C.

Em 280 a.C., respondendo ao pedido de auxílio da colónia grega de Taranto (no tacão da “bota” italiana) contra o apetite de expansão territorial de Roma, Pirro, rei do Épiro (correspondente ao que é hoje o sul da Albânia e a costa ocidental da Grécia), desembarcou com 25.000 homens na península itálica. Tirando partido dos seus dotes como estratega, dos seus 3000 cavaleiros de elite e dos 20 elefantes emprestados pelo “faraó” do Egipto, Pirro infligiu duas derrotas às legiões romanas – em Heraclea e Asculum –, embora com perdas muito pesadas na suas próprias fileiras (é daqui que vem a expressão “vitória pírrica”, para designar um triunfo com um custo tão elevado que acaba por revelar-se uma derrota), e chegou a marchar sobre a cidade de Roma.

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Pirro retratado como Marte, cópia romana do século I d.C. de uma estátua grega do século III a.C.

No rescaldo da Batalha de Heraclea, o Senado enviou Caio Fabrício Luscino (Gaius Fabricius Luscinus) para negociar a libertação de prisioneiros romanos com Pirro; este começou por tentar subornar o emissário romano, mas como este não cedeu, acabou por libertar os prisioneiros sem exigir resgate. Após a Batalha de Asculum, em 279 a.C., instalou-se um impasse entre os romanos e Pirro, e Nicias, o médico de Pirro, propôs a Fabrício envenenar Pirro, a troco de uma boa maquia. Embora Pirro fosse uma das mais sérias ameaças que Roma já tinha enfrentado o Senado recusou a proposta e Fabrício enviou uma mensagem a Pirro, advertindo-o contra uma eventual tentativa de envenenamento.

Lusitânia, 139 a.C.

Roma aliara-se a Cartago para derrotar Pirro, mas a partir de 264 a.C. as duas grandes potências do Mediterrâneo Ocidental engalfinharam-se em conflitos que iriam durar mais de um século. Na sequência na Segunda Guerra Púnica (218 a.C.-201 a.C.), que se saldou numa derrota cartaginesa, os romanos acabaram por apoderar-se de parte das possessões cartaginesas na costa mediterrânica da Península Ibérica, abrindo uma nova frente de expansão territorial.

A investida romana para o interior da península deparou-se, a partir de 194 a.C., com a oposição dos lusitanos, embora a chamada Guerra Lusitana só tenha tido início em 155 a.C. Após quatro anos de combates, alguns favoráveis aos romanos, outros aos lusitanos, estes enviaram uma embaixada ao pretor Sérvio Sulpício Galba (Servius Sulpicius Galba), que, desde 151 a.C., governava a província da Hispânia. Galba mostrou-se afável e compreensivo, admitindo mesmo que a rebelião dos lusitanos era consequência quase inevitável da posição desfavorável que lhes fora imposta pelo tratado de paz que tinham assinado com o seu antecessor no cargo. Dispôs-se a compensá-los, doando-lhes terras férteis em troca da promessa de lealdade – os lusitanos aceitaram e Galba dividiu os 30.000 candidatos às terras em três grupos, pediu-lhes que entregassem as armas, em sinal de boa vontade, e lançou os seus legionários de surpresa sobre eles, massacrando um terço e fazendo prisioneiros os restantes, que venderia depois como escravos. Entre os poucos que escaparam a esta cilada estava um guerreiro conhecido como Viriato.

Distribuição dos povos da Península Ibérica em 200 a.C.

Quando, em 149 a.C., o mandato de Galba terminou e ele regressou a Roma, foi acusado pelo tribuno Lúcio Escribónio Libão (Lucius Scribonius Libo) e por Catão o Velho (Marcus Porcius Cato) de ter tido um comportamento infame para com os lusitanos e de se ter apropriado de parte substancial dos saques. Todavia, graças à sua riqueza e à influência de que gozava entre a elite romana, Galba acabou por ser ilibado das acusações e cinco anos depois ascendeu mesmo ao cargo de cônsul.

Entretanto, na Ibéria, Viriato assumira a liderança da resistência lusitana aos romanos e obrigou estes a enviar para o território uma sucessão de generais à frente de forças cada vez mais poderosas. Viriato conseguiu infligir uma derrota inequívoca a Quinto Fábio Máximo Serviliano (Quintus Fabius Maximus Servilianus) e forçou-o a assinar um tratado de paz, mas o sucessor (em 140 d.C.) deste general na Ibéria (e seu irmão), Quinto Servílio Cepião (Quintus Servilius Caepio, não confundir com Cipião/Scipio), conseguiu convencer o Senado romano de que o tratado assinado com os lusitanos era desonroso para Roma. O senado anulou o tratado e a guerra contra os lusitanos recomeçou.

Após mais algumas refregas, em 139 a.C. Viriato tentou novamente negociar a paz e enviou como emissários junto de Cepião (ou ao seu lugar-tenente, Marco Popílio Lenas, segundo outra versão), três dos seus lugares-tenentes mais fiáveis, Audax, Ditalcus e Minurus (todos naturais da Turdetânia, no sul da Ibéria). Cepião (ou Lenas) subornou os três emissários para eliminarem Viriato, mas quando estes, depois de cometerem o assassinato, vieram reclamar o seu pagamento, ter-lhes-á respondido: “Roma não paga a traidores”.

A morte de Viriato, por José de Madrazo y Agudo, 1807

O comportamento traiçoeiro para com os lusitanos de Galba e Cepião pode espelhar apenas o carácter infame destes líderes, mas não é de descurar o facto de, na perspetiva romana, estas não serem relação entre iguais. O historiador Tito Lívio (c.59 a.C.-17 d.C.) deixá-lo-ia claro, ao referir-se-ia aos lusitanos como “latrones” (bandidos), ou seja, via-os, juntamente com os restantes povos “bárbaros”, como alguém que não comungava do sistema de valores de Roma. Nas relações com outros povos “civilizados”, os romanos sentiam-se (vagamente) obrigados a agir de forma ética, mas sentiam-se de mãos livres para lidar com “latrones”.

Esta atitude não é exclusiva de Roma nem da Antiguidade Clássica: ainda hoje há “gente de bem” que se guia por preceitos éticos quando lida com quem considera ser seu igual, mas que não hesita em mentir ou em defraudar aqueles que considera serem seus inferiores. A honra de um indivíduo decorre do julgamento feito pela comunidade em que se insere e se revê e, portanto, há quem não sinta a necessidade de parecer honrado aos olhos daqueles que despreza.

Tunísia, 46 a.C.

Nenhuma figura da história de Roma encarnou com maior perfeição os ideais de honradez e integridade moral do que Catão (Marcus Porcius Cato), que viveu entre 95 a.C. e 46 a.C. e recebeu o cognome de “O Jovem”, para se distinguir do seu bisavô homónimo, que ficou conhecido como Catão, o Velho (234-149 a.C.).

Embora proviesse de uma família abastada, Catão, o Jovem, seguia os princípios da filosofia estoica e levava, como seu célebre bisavô, uma vida frugal e desprovida de ostentação. Quando lhe foi confiado o comando de uma legião na Macedónia fez questão de viver como os seus soldados, partilhando as suas privações e labores. Quando desempenhou funções públicas fê-lo com rigor, competência, zelo e probidade, abriu investigações aos seus antecessores por desvio de fundos e outras irregularidades e conquistou fama de incorruptível. Quando Júlio César, aliado a Pompeu e Marco Licínio Crasso, começou a ganhar poder, a manobrar o Senado e atentar aprovar leis que favoreciam os seus aliados e “clientes”, Catão moveu-lhe oposição sistemática e tenaz.

Porém, as suas tentativas para coarctar o poder de Júlio César acabaram por fracassar: em 49 a.C., César, vindo da Gália, cruzou o Rubicão com as suas tropas (uma infracção grave às leis da República) e assumiu o controlo da Península Itálica, colocando em fuga o Senado (ou, pelo menos, a parte do Senado que não o apoiava). Catão e os seus aliados tentaram resistir, primeiro na Sicília e depois em Utica, na costa do que é hoje a Tunísia. As tropas “republicanas”, comandadas por Metelo Cipião (Quintus Metelius Scipio) eram superiores em número e tinham sido reforçadas com 60 elefantes de combate fornecidos por aliados locais, mas a experiência dos curtidos legionários veteranos de Júlio César e os dotes de estratega deste acabaram por levar a melhor na Batalha de Thapsus (na costa tunisina), em 46 a.C.

Death of Cato the Younger also known as Uticensis

A morte de Catão, o Jovem, por Pierre-Narcisse Guérin, 1797

De Agostini via Getty Images

César encaminhou-se, então, para a cidade de Utica, onde Catão ficara a comandar a guarnição. Catão providenciou meios de fuga aos senadores que o desejassem, mas não se juntou a eles: mesmo que César lhe concedesse perdão, não desejaria viver numa Roma governada por um ditador, pelo que se suicidou antes da chegada de César.

A sua morte não foi rápida, por uma mão aleijada o ter impedido de vibrar o golpe de punhal com precisão – quando, alertados pelo ruído da queda de um móvel, o seu filho, os amigos e o médico acorreram e tentaram salvá-lo, Catão recusou e voltou a golpear-se, desta vez de forma fatal.

O poeta Juvenal (Decimus Junius Juvenalis) escreveu que “A maior infâmia é preferir a vida à honra e, para salvar a vida, abrir mão das razões de viver”. Catão não podia conhecer estas palavras de Juvenal, já que este viveu entre 55 e 130 d.C., mas certamente que as subscreveria.

Itália, 43 a.C.

“Pela nossa natureza, anelamos pela honra e uma vez que tenhamos captado um vislumbre do seu resplendor, não há nada que não estejamos dispostos a suportar e a sofrer de forma a alcançá-la e mantê-la” – quem escreveu estas palavras foi Cícero (Marcus Tulis Cicerus), homem de Estado e de letras e brilhante orador que viveu entre 106 e 43 a.C. Cícero foi contemporâneo de Catão, o Jovem, pelo que também assistiu ao declínio das virtudes republicanas e viu crescer a corrupção, a sede de poder e a deriva autocrática.

Cícero foi um ardente defensor dos valores da República Romana, ganhando grande notoriedade pública ao desmantelar uma conspiração de Lúcio Sérgio Catilina para derrubar a República. Quando, em 60 d.C., Júlio César o convidou para juntar-se ao triunvirato que estabelecera com Pompeu (Gnaeus Pompeius Magnus) e Marco Licínio Crasso, Cícero recusou, pois intuiu que este grupo pretendia, mais tarde ou mais cedo, subverter os princípios que regiam a República.

A sua suspeição estava correta, pois não tardou que o triunvirato promovesse a eleição como tribuno de Públio Clódio Pulcro (Publius Clodius Pulcher), que desencadeou uma perseguição implacável contra Cícero, forçando-o ao exílio. Em 57 a.C., o Senado anulou o decreto de exílio e Cícero regressou a Roma; após alguns anos dedicados à escrita, em 51 a.C. aceitou o cargo de governador da Cilícia, na Ásia Menor (hoje na Turquia), regressando em 49 a.C. a Roma, onde a parceria entre César e Pompeu degenerara em feroz rivalidade.

Cícero (discursando de pé, à esquerda) denuncia Catilina (isolado, à direita) no Senado, por Cesare Maccari, 1889

Constatando o pendor autocrático de César e crendo que Pompeu seria um defensor das virtudes republicanas, tomou – sem grande convicção – o partido do segundo na guerra civil que se iniciou nesse mesmo ano, embora depressa concluísse que Pompeu estava longe de ser quem ele pensara. Após derrotar Pompeu, Júlio César perdoou Cícero e este regressou a Roma, onde fez o que pode para limitar a pulsão ditatorial do novo senhor de Roma. O assassinato de César em 44 a.C. desencadeou nova crise política, com Cícero a representar a legalidade do Senado e Marco António a arvorar-se em herdeiro espiritual de César. Cícero tentou que o Senado declarasse Marco António como “inimigo do Estado”, mas Marco António estabeleceu uma astuta rede de alianças que lhe permitiram formar um Segundo Triunvirato, com Octaviano e Lépido, e conseguiu inverter a situação: agora os proscritos eram Cícero e os seus aliados.

Em 43 a.C., quando Cícero se preparava para tomar um navio para o exílio na Macedónia, a sua liteira foi intercetada pelas tropas de Marco António. Sabendo o que o esperava, Cícero disse ao comandante dos soldados: “Nada há de condigno naquilo que vais fazer, mas, ao menos, fá-lo condignamente”. E esticou a cabeça para fora da liteira, descobrindo o pescoço. A cabeça de Cícero foi levada a Marco António e a sua esposa, Fúlvia, puxou-lhe a língua para fora e trespassou-a repetidamente com o seu alfinete de cabelo, numa tentativa para exorcizar um inimigo cuja arma mais terrível sempre tinha sido a oratória.

“A vingança de Fúlvia”, por Francisco Maura y Montaner, 1888

Em 27 a.C., poucos anos volvidos sobre a morte de Cícero, o Senado concedeu poderes excecionais e o título de “Augusto” a Octaviano, convertendo este, para todos os efeitos, no primeiro imperador. Apesar de o hipócrita Octaviano Augusto sempre ter simulado que era apenas “o primeiro cidadão” (princeps civitatum) da República Romana, esta chegara inequivocamente ao fim.

França, 778

No imaginário ocidental, o conceito de honra está fortemente associado à cavalaria medieval. Esta nunca teve um código de conduta no sentido formal do termo, mas vários textos contribuíram para definir as regras que os cavaleiros deveriam seguir: o poema anónimo Ordene de chevalerie (c.1220), o Libre del ordre de cavaylerie, uma das primeiras obras do influente pensador maiorquino Ramon Llull (c.1232-1315), e o Livre de Chevalerie (c.1350), de Geoffroi de Charny (c.1300-1356). Este último sabia certamente do que falava, pois foi um dos mais destemidos cavaleiros do seu tempo (“le plus preudomme et le plus vaillant de tous les autres”), tendo perecido em combate na Batalha de Poitiers. Precedendo estas obras, temos a Chanson de Roland, que, embora aluda à Batalha de Roncevaux, que teve lugar em 778, terá sido redigida por volta de 1040, e El cantar de mio Cid, redigido entre 1140 e 1207 – ambos se contam entre os mais antigos poemas épicos nas respetivas línguas e é provável que retomem histórias e peripécias cantadas pelos trovadores.

A Batalha de Roncevaux, por Gustave Doré (1832-1883)

A Chanson de Roland tem por enquadramento o reinado de Carlos Magno (Carlos I, rei dos francos) e narra a traição cometida por Ganelon (cunhado de Carlos) contra o cavaleiro Roland (de quem tinha ciúmes, por o rei o favorecer), levando a que a retaguarda do exército franco, comandada por Roland, fosse alvo de uma emboscada no desfiladeiro de Roncevaux (Roncesvalles, em espanhol), nos Pirenéus, em que pereceu boa parte do exército franco e o próprio Roland. Roland teve existência real (era governador da Marca da Bretanha) e Roncevaux foi efetivamente o palco de uma batalha em 778, mas parte do poema, tal como o de outros relatos da batalha, é ficcional – por exemplo, atribui a emboscada aos “sarracenos”, quando hoje se afigura mais provável que tenha sido obra dos bascos, como represália por Carlos Magno ter ordenado a destruição das muralhas de Pamplona.

Porém, o que importa em termos de repercussão na cultura e mentalidade medievais, é que a Chanson de Roland, com a narrativa de Roland lutando até ao seu último alento contra inimigos muito superiores em número, converteu aquele no paradigma do comportamento do cavaleiro medieval.

Morte de Roland, iluminura por Jean Fouquet, inserida nas Grandes chroniques de France, c.1455-60

O código de conduta cavalheiresca que pode ser extraído da Chanson de Roland inclui estas regras:

  • Temer a Deus e defender a sua Igreja
  • Servir o seu senhor com coragem e fidelidade
  • Proteger os fracos e indefesos
  • Socorrer viúvas e órfãos
  • Refrear o impulso para cometer ofensas em vão
  • Viver pela honra e para a glória
  • Desdenhar recompensas pecuniárias
  • Lutar pelo bem comum
  • Obedecer aos que ocupam posições de autoridade
  • Zelar pela honra dos camaradas de armas
  • Evitar atos injustos, maldosos ou traiçoeiros
  • Perseverar na fé
  • Dizer a verdade em todas as circunstâncias
  • Levar a bom termo todos os empreendimentos
  • Respeitar a honra das damas
  • Nunca recusar um desafio lançado por outro cavaleiro
  • Nunca voltar costas a um inimigo

Cena da Chanson de Roland esculpida na fachada da Catedral de Saint-Pierre, em Angoulême

Em La chevalerie (1884), o medievalista Léon Gautier, estudioso das canções de gesta e autor de uma edição crítica Chanson de Roland, reformulou estes preceitos nos “10 mandamentos da cavalaria”:

  • Crerás em tudo o que a Igreja ensina e seguirás as suas instruções
  • Defenderás a Igreja
  • Respeitarás todos os fracos e serás seu defensor
  • Amarás o país em que nasceste [um mandamento anacrónico, com escasso sentido na Europa medieval mas inevitável no contexto do sobreaquecido nacionalismo francês do final do século XIX]
  • Nunca vacilarás perante o inimigo
  • Guerrearás o infiel sem repouso nem misericórdia
  • Cumprirás escrupulosamente os deveres feudais, desde que não sejam contrários às leis de Deus
  • Nunca mentirás e honrarás a palavra dada
  • Serás generoso com todos
  • Serás, sempre e em todas as circunstâncias, o campeão da Justiça e do Bem contra a Injustiça e o Mal

Portugal, 1127

Lutava Afonso Henriques para afirmar o Condado Portucalense como um território independente de Leão e Castela, onde reinava o seu primo Afonso VII, quando, em 1127, este assediou o castelo de Guimarães e só levantou o cerco quando Afonso Henriques, por intermédio do seu aio Egas Moniz (Egas Moniz IV de Ribadouro), acedeu submeter-se à sua autoridade. Porém, não tardou que Afonso Henriques retomasse os seus ímpetos independentistas e invadisse os territórios galegos do primo e Egas Moniz, ao ver que a sua palavra fora posta em causa, apresentou-se na corte de Afonso VII, em Toledo, com a mulher e os filhos, todos eles descalços, com uma corda ao pescoço e vestidos de branco, para que o rei deles fizesse o que lhe aprouvesse. Afonso VII terá ficado comovido com esta demonstração de tão apurado sentido de honra e deixou que Egas Moniz e os seus partissem em paz.

Egas Moniz e a família perante Afonso VII, por Roque Gameiro, 1917

Curiosamente, este famoso episódio da história de Portugal, que atesta nobreza de carácter e compromisso com a palavra dada, é uma fabricação tardia, possivelmente da autoria de João Soares Coelho (fl. 1235-1278), trovador na corte de Afonso III de Portugal.

Itália, 1503

Em 1494, a invasão da Península Itálica por tropas francesas, a pretexto de uma disputa entre o Ducado de Milão e o reino de Nápoles, deu início a um período de emaranhados conflitos, envolvendo várias cidades-estado italianas e potências estrangeiras, que só teria termo em 1559.

Numa das muitas escaramuças deste conturbado período, no final de 1502, um grupo de cavaleiros franceses foi feito prisioneiro pelos espanhóis, que lutavam ao lado dos italianos, e levado para a cidade de Barletta, no litoral adriático, onde estava aquartelada uma força espanhola. Sendo os cativos de alto coturno, as condições de detenção eram assaz benignas e num banquete que juntou prisioneiros e captores, o cavaleiro francês Charles de Torgues (conhecido como Guy de la Motte), a quem o vinho excitara o ardor, pôs em causa o valor dos italianos. O comandante espanhol tentou defender a honra dos italianos que lutavam sob as suas ordens, mas não conseguiu evitar que se gerasse acesa altercação entre franceses e italianos, que foi decidido dirimir através de um torneio, a travar numa planície vizinha, opondo 13 cavaleiros de cada lado. O recontro foi favorável aos italianos (que, note-se, cavalgaram sob a bandeira espanhola) e os franceses foram, como tinha sido acordado, forçados a pagar um resgate e a entregar as suas armas e cavalos.

Cartaz comemorativo do IV centenário do Torneio de Barletta, 1903

O torneio de Barletta (“Disfida di Barletta”) teve consequências militares insignificantes – um cavaleiro francês morreu e outros ficaram feridos – mas a notícia da vitória italiana correu a península e serviu para elevar a vacilante moral de um povo teve de conviver com tropas estrangeiras no seu território durante séculos a fio. Volvidos mais de cinco séculos sobre este irrelevante episódio, a Disfida di Barletta seria ainda recuperada por Mussolini com o intuito de acicatar o sentimento nacionalista italiano.

Japão, 1582

O Japão medieval foi constantemente dilacerado por lutas entre senhores feudais, que atingiram o clímax no período Sengoku (“período dos estados beligerantes”), que se estendeu de 1467 a 1615. A partir da década de 1560, Oda Nobunaga (1534-1582), líder do clã Oda, foi derrotando os seus adversários, através de uma combinação de tácticas militares inovadoras e da eliminação implacável de quem quer que se lhe opusesse, e, no início da década de 1580, parecia bem encaminhado para alcançar a unificação do Japão.

Em 1582, as ambições de Oda estenderam-se ao território do daimyō Uesugi Kagekatsu (1556-1623) e quando este tentou responder às investidas dos generais de Oda foi derrotado na Batalha de Tenjinyama. As tropas de Oda avançaram pelos domínios dos Uesugi e cercaram as praças-fortes de Matsukura e Uozu – nesta última, quando a situação dos sitiados se tornou desesperada, os últimos 13 samurai que a defendiam decidiram que preferiam morrer a passar pela desonra da rendição ou da captura e cometeram seppuku (suicídio ritual). Mas para que o seu gesto não fosse esquecido, cada um deles teve o cuidado de escrever o nome numa placa de madeira e de fixá-la numa orelha, que perfuraram para o efeito. E foi assim, esventrados e devidamente “etiquetados”, que os soldados de Oda os encontraram quando, a 3 de Junho, entraram no castelo de Uozu.

Oda Nobunaga, numa estampa de Utagawa Kuniyoshi, 1830

Por esta altura, Uesugi parecia estar irremediavelmente encurralado e chegou a enviar uma carta a um seu aliado dando conta da sua situação desesperada e da determinação em perecer na luta desigual que se avizinhava. Acabou por ser “salvo pelo gongo” quando, 18 dias depois, Oda foi assassinado em Kyōto por um dos seus generais. Uesugi conseguiu estabelecer boas relações como o sucessor de Oda, Toyotomi Hideyoshi, acabando por tornar-se seu aliado. Hideyoshi concluiu o trabalho de unificação que Oda iniciara e Uesugi tratou de recompensar os filhos dos seus fiéis samurai que tinham cometido seppuku no cerco de Uozu.

Em nenhuma outra circunstância o conceito de honra foi entendido de forma tão radical como entre os samurai do Japão feudal, que tinham como lema “Antes a morte que a desgraça”. Os samurai regiam a sua conduta pelo Bushidō – a via (dō) do guerreiro (bushi) – um código ético surgido no período Kamakura (1185-1392) e que implicava “não só espírito marcial e destreza com armas mas também uma absoluta lealdade ao seu senhor, um forte sentido de honra, entrega ao dever e a coragem para, se necessário, sacrificar a vida em combate ou numa cerimónia ritual” (in Kōdansha Encyclopedia of Japan). O Bushidō é um equivalente japonês do código de cavalaria da Europa medieval e nasceu da confluência do budismo Zen com o Confucionismo, que privilegiava uma ordem social assente no cumprimento de regras éticas estritas, ao nível da família e do Estado.

Encenação de cerimónia de seppuku, 1897. O homem de pé com uma espada é o kaishakunin; os dois homens do lado direito têm a missão de confirmar que o condenado se suicidou de acordo com os preceitos

Quando um samurai falhava na sua missão ou cometia um acto desonroso, o Bushidō Shoshinshu (“Código do Guerreiro”) determinava que o seu senhor podia ordenar-lhe que cometesse seppuku, um suicídio ritual em que o samurai rasgava o seu ventre (que, no Japão, era visto como lugar do corpo que albergava a alma) com uma espada curta (tantō). O seppuku (literalmente “rasgar o ventre”) é sinónimo de harakiri (termo mais corrente no Ocidente) e era uma forma de suicídio particularmente dolorosa, podendo a agonia arrastar-se durante horas. Daí que o ritual previsse a possibilidade de o suicida contar com a assistência de um kaishakunin (geralmente um amigo ou homem de confiança), que, após o samurai ter golpeado o seu ventre, o decapitava com um golpe com a espada longa (katana), de forma a abreviar-lhe o sofrimento. O seppuku era visto como uma honra concedida pelo senhor e contrastava com a condenação à simples decapitação, que era vista como desonrosa.

O seppuku era não só infligido aos subordinados de um senhor como aos seus inimigos derrotados – neste caso o seppuku do líder vencido funcionava como uma forma de “ajuste de contas” e permitia que, a partir daí, fosse restabelecida a paz entre os clãs ou fações em confronto.

Esperava-se que os samurai que perdessem o seu senhor também cometessem seppuku – os que escolhiam não o fazer eram considerados rōnin, expressão que significa literalmente “homem das ondas”, numa alusão à condição “errante” ou “vagabunda” a que ficava remetidos. Desnecessário será dizer que os rōnin eram visto com desprezo pela sociedade.

Espanha, 1605

A popularidade da poesia épica inspirada na Chanson de Roland e em obras similares entrou em declínio em França na segunda metade do século XIV, mas sobreviveu em Espanha, num registo mais popular, não só em verso como sob a forma de romances e peças de teatro. Porém, no tempo de Miguel de Cervantes (1547-1616), os romances de cavalaria estavam já francamente fora de moda – e é do desfasamento entre a realidade da Espanha seiscentista e as fantasias de Alonso Quijano, cujo espírito ficou sobreaquecido pela leitura obsessiva daquele tipo de literatura e imagina que o mundo ainda tem lugar para cavaleiros errantes que salvam donzelas e órfãos e batalham gigantes, monstros e exércitos sarracenos, que o romance Don Quixote (1605-15) retira o seu delicioso humor.

Alonso Quijano rodeado pelas suas fantasias: ilustração inicial da edição francesa de Don Quixote (1863), ilustrada por Gustave Doré

Quijano/Quixote assimilou integralmente os códigos da cavalaria e não lhe falta destemor e tenacidade, mas estes valores já não se adequam ao mundo em que vive. Este desencontro resulta não só da alteração da realidade material como da evolução das mentalidades. Na verdade, o mundo medieval também não era como os romances de cavalaria o pintavam, mas isso não impedia os leitores medievais de achar plausíveis as suas narrativas; ora, o Renascimento trouxe, como observa José Ortega y Gasset no ensaio Meditaciones del Quijote (1914), um mundo mais racional e iluminado, “uma nova ordem das coisas [em que] as aventuras são impossíveis”. Quixote está, pois, condenado a ir de equívoco em equívoco, de fiasco em fiasco.

Japão, 1703

Kira Yoshinaka (1641-1703) era “mestre de cerimónias” do castelo de Edo (a futura Tóquio), que era a residência do shōgun e, portanto, a sede do poder efetivo no Japão do período Tokugawa (o imperador, que residia em Kyōto, era apenas uma figura decorativa). O daimyō Asano Naganori (1675-1701) deveria receber de Kira instruções sobre o protocolo de uma receção ao imperador, mas os dois homens desentenderam-se, Kira insultou Asano e este, ferido na sua honra, tentou matar Kira. Falhou e não só foi condenado pelo shōgun a cometer seppuku, como a sua casa senhorial foi abolida e os seus samurai foram reduzidos à condição de rōnin; embora tivesse sido ele o ofensor, Yoshinaka escapou sem punição.

A tentativa de assassinato a Kira Yoshinaka por Asano Naganori. Estampa de Utagawa Kuniteru, meados do século XIX

Entre os 300 samurai que tinham servido Asano, 46, liderados por Ōishi Yoshio (1659-1703), que tinha sido o braço-direito de Asano, juraram vingar o seu senhor. Para não levantar suspeitas, durante quase dois anos Ōishi assumiu ostensivamente uma vida errática e dissoluta, dissipando dinheiro nas casas de geisha de Edo, o que causou alguma perplexidade, pois tinha sido visto como um fiel servidor do seu senhor – e esperar-se-ia que também tivesse cometido seppuku. Entretanto, os restantes rōnin tinham arranjado empregos humildes como comerciantes e artesãos e tinham-se insinuado na casa de Kira, de forma a familiarizarem-se com ela e com os procedimentos dos seus habitantes e guardas. Em Janeiro de 1703, após um planeamento meticuloso, Ōishi e os restantes 46 rōnin assaltaram a casa de Kira, subjugaram os guardas e arrastaram Kira para fora do esconderijo onde se refugiara; Ōishi deu a Kira a oportunidade de morrer com honra, através do seppuku, mas o “mestre de cerimónias”, aterrado, limitava-se a tremer, pelo que Ōishi acabou por decapitá-lo.

Assalto dos 47 rōnin à casa de Kira Yoshinaka. Estampa de Katsushika Hokusai

A vingança contra Kira ia contra as regras vigentes e, como seria de esperar, os 47 rōnin receberam ordem para cometer seppuku, o que aceitaram de bom grado, pois já tinham lavado a honra do seu senhor e a sua. Este episódio teve forte repercussão no imaginário japonês e a história dos 47 rōnin – cujos nomes ficaram todos registados – tem sido assunto de incontáveis estampas, peças de teatro, livros, filmes, manga e anime (de formas que existem hoje muitas versões da narrativa) e Ōishi ficou imortalizado como paradigma da ética samurai.

No entanto, Ōishi não escapou a um reparo: alguns eruditos sugeriram que os longos meses despendidos na preparação do assassinato de Kira revelam calculismo pela parte de Ōishi. No verdadeiro espírito samurai o mais importante não era que a vingança fosse coroada de sucesso, era que fosse tentada – na estrita ótica dos códigos de honra, teria sido preferível que os 47 rōnin tivessem tentado matar Kira imediatamente após a morte do seu amo, mesmo que tivessem fracassado. A honra não olha à eficácia dos atos – o que conta é a intenção e a inequívoca manifestação de desprezo pela própria vida.

EUA, 1804

Alexander Hamilton (c.1755-1804) foi um dos “Pais Fundadores” dos EUA e o primeiro a ocupar o cargo de Secretário do Tesouro deste país, mas foi também jurista, comandante militar, economista, banqueiro e fundador do jornal New York Post. Muitas das principais instituições dos EUA, ainda hoje em funcionamento, foram concebidas por Hamilton e 51 dos 81 artigos que formam The Federalist Papers – o principal corpo interpretativo da Constituição dos EUA – são de sua autoria.

Esta vida densamente preenchida foi abruptamente interrompida a 11 de Julho de 1804, por uma bala disparada por Aaron Burr, outro eminente político americano. Burr tinha concorrido contra Thomas Jefferson nas eleições presidenciais de 1800, cujo resultado fora um empate no colégio eleitoral – a Câmara dos Representantes decidiu atribuir a presidência a Jefferson e a vice-presidência a Burr, mas o relacionamento entre os dois foi sempre pautado pela desconfiança e pela frieza. Em 1804, consciente de que Jefferson não o aceitaria como seu vice-presidente num eventual segundo mandato, Burr concorreu a governador do estado de Nova Iorque e foi derrotado por Morgan Lewis, que era apoiado por Hamilton. Durante um jantar com amigos e correligionários seus, Hamilton terá feito comentários depreciativos sobre Burr, que foram reproduzidos numa carta particular escrita por um dos presentes, que acabou por fazer o seu caminho até às páginas de um jornal. A carta afirmava que Hamilton declarara que Burr era “um homem perigoso, a quem não deveria ser confiadas as rédeas de um governo” e insinuava que esta nem seria a mais grave das considerações de Hamilton sobre o carácter de Burr.

Duelo entre Alexander Hamilton e Aaron Burr, numa ilustração de autor anónimo, publicada em 1902, a partir de uma pintura de J. Mund

A única frase de Hamilton efetivamente reproduzida na carta nem sequer era muito ofensiva, mas Burr, talvez agastado por ter sido derrotado nas eleições para governador por um político praticamente desconhecido, escreveu uma carta a Hamilton, exigindo um pedido de desculpas e, perante a recusa de Hamilton, desafiou-o para um duelo. Este teve lugar em New Jersey, nas margens do Rio Hudson e resultou num ferimento fatal em Hamilton – apesar da imediata intervenção de um cirurgião, faleceu no dia seguinte.

Rússia, 1837

No célebre romance em verso Evgeny Onegin (1825-32), Aleksandr Pushkin colocou as personagens Evgeny Onegin e Vladimir Lensky a travar um duelo. As razões para este eram assaz fúteis: o dandy Onegin e o poeta Lensky eram amigos e Onegin, irritado por ter sido arrastado por Lensky para uma festa da aristocracia rural que lhe afigurou insuportavelmente rústica e sensaborona, decidiu provocar o amigo, fazendo olhinhos e dançando com a rapariga que Lensky cortejava, até que estes, exasperado, o desafiou para um duelo (em que Lensky, mais habituado a manejar a pena do que a pistola, sucumbe).

Pushkin sabia do que falava, pois durante a vida disputou 29 duelos, muitos deles com figuras proeminentes da sociedade russa, isto apesar de os duelos terem sido proibidos em 1715 por Pedro o Grande, que ficara alarmado com o facto de perder mais oficiais no campo de honra (assim eram designados os locais onde os duelos se disputavam) do que no campo de batalha. Apesar de poder ser punida com o enforcamento de ambos os participantes, a prática prosseguiu, sobretudo no meio militar, e com tal frequência que até emergiu um código (não escrito) para a regulamentar.

O duelo entre Aleksandr Pushkin e Georges d’Anthès, por Adrian Volkov, 1869

Pushkin casara-se em 1831 com Natalia Goncharova, uma beldade moscovita de 17 anos, de quem teve quatro filhos. Em 1835 Natalia travou conhecimento com Georges-Charles d’Anthès (1812-1895), um jovem e galante tenente francês de boas famílias que prestava serviço no Regimento de Guarda a Cavalo da czarina, em São Petersburgo. Pushkin até começou por simpatizar com o tenente francês, mas, no final de 1836, quando a corte de d’Anthès a Natalia se tornou óbvia e lhe veio parar às mãos um panfleto anónimo que lhe atribuía o título de “Vice-Grão Mestre e Historiógrafo da Ordem dos Cornudos”, o poeta russo desafiou o galanteador para um duelo. A intervenção de amigos comuns conseguiu que o duelo fosse adiado e, depois, cancelado e D’Anthès, cujos avanços tinham sido firmemente rejeitados por Natalia, decidiu subitamente casar-se com a irmã desta, Ekaterina, o que poderia ser interpretado como uma forma de deixar claro à opinião pública que os rumores sobre a sua paixão por Natalia eram, afinal, infundados – todavia, continuou a comportar-se de forma provocadora de cada vez que se cruzava em público com Natalia. Pushkin perdeu a paciência e voltou a desafiar d’Anthès para um duelo, que teve lugar a 27 de Janeiro de 1837. Pushkin foi atingido por uma bala no abdómen, que lhe causaria a morte dois dias depois, enquanto uma das balas disparadas por Pushkin atingiu D’Anthès superficialmente num braço e outra ricocheteou num botão do uniforme. Do seu leito de morte, Pushkin escreveu uma carta a D’Anthès perdoando-lhe os agravos.

D’Anthès foi preso, julgado e condenado pela morte de Pushkin, mas foi indultado pelo czar e devolvido à França, onde, durante o Segundo Império, fez carreira política e ascendeu ao cargo de senador.

França, 1871

O Segundo Império Francês chegou ao fim com a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71: após a captura do imperador Napoleão III pelos prussianos na decisiva Batalha de Sedan, a 1 de Setembro de 1870, a luta foi prosseguida por um provisório Governo da Defesa Nacional, criado em Paris três dias depois, mas as forças francesas voltaram a sofrer sucessivas derrotas. A 19 de Setembro, Paris foi cercada pelos prussianos, comandados pelo general von Blumenthal, quer, inicialmente, se mostrou relutante em bombardear a cidade, por “razões morais”, apesar da pressão do chanceler Otto von Bismarck, que pretendia obter uma rendição rápida. Ainda que esfomeados, os franceses sitiados continuaram a resistir ao cerco e em Janeiro de 1871 Bismarck conseguiu vencer as objecções morais de von Blumenthal e do Estado-Maior prussiano e a cidade foi bombardeada durante 23 noites consecutivas. A 25 de Janeiro, Bismarck ordenou que os poderosos canhões de cerco da Krupp se juntassem ao bombardeamento e a França capitulou dois dias depois. Os estragos infligidos pela artilharia prussiana excederam qualquer destruição sofrida por Paris na sua história.

St. Cloud, um subúrbio de Paris, 1871: estragos causados pelos bombardeamentos

A Guerra Franco-Prussiana teve como pretexto oficial a candidatura de um príncipe prussiano ao trono espanhol, que Napoleão III considerou inaceitável e o levou a declarar guerra, mas na realidade esta candidatura foi mais uma provocação deliberada, que fazia parte de um plano arquitectado por Bismarck: a guerra declarada por França iria, esperava, despertar entre os povos germânicos um sentimento nacionalista que conduzisse à unificação da Alemanha sob a forma de um estado federal dominado pela Prússia – o que, efectivamente, aconteceu. Foi assim que, a 18 de Janeiro de 1871, foi proclamado formalmente o Império Alemão, cerimónia que teve lugar no Salão dos Espelhos do Palácio de Versailles, uma afronta desnecessária, que ficaria indelevelmente impressa na memória dos franceses.

O Tratado de Frankfurt, assinado a 10 de Maio de 1871, redesenhou as fronteira entre a República Francesa e o Império Alemão, entregando ao segundo a Alsácia e a Lorena, estipulou o pagamento pela França de uma indemnização de guerra de 5000 milhões de francos e obrigou a França a reconhecer formalmente Guilherme I como Imperador Alemão.

A França, habituada a ser a potência n.º 1 da Europa continental, vira-se, num curto período, confrontada com uma sucessão de humilhações às mãos da até há pouco insignificante Prússia: múltiplas derrotas no campo de batalha, Paris em ruínas, paradas militares prussianas na capital, Napoleão III remetido para o cativeiro em Kassel (e, depois, para o exílio na Grã-Bretanha), perda de vastos territórios, ricos e produtivos, em favor da Alemanha. O desejo de vingança por estes enxovalhos iria dominar obsessivamente o pensamento e o discurso dos políticos e da imprensa francesa durante os 43 anos seguintes e envenenar as relações franco-germânicas e a geopolítica europeia – e desembocaria na I Guerra Mundial.

Proclamação do Império Alemão, em Versailles, em 1871, por Anton von Werner, 1885

O filósofo britânico Bertrand Russell, que se recusou a lutar na I Guerra Mundial, que assumiu publicamente posições pacifistas, defendeu objectores de consciência e que acabou por passar seis meses na prisão devido a estas atitudes, classificou o conflito como uma “guerra de vaidade” e num texto de 1915 defendeu assim a sua posição: “Os homens desejam a sensação de triunfo e temem a sensação de humilhação que decorre de cederem à exigências de outra nação. Em vez de renunciar ao triunfo e suportar a humilhação, estão dispostos a infligir ao mundo as calamidades que hoje sofremos […] A vontade de infligir e suportar tais males é universalmente louvada e é considerada exaltante, digna de uma grande nação e respeitosa das tradições ancestrais. O mais pequeno sinal de razoabilidade é atribuído ao medo e é recebido com vergonha por uns e com irrisão pelos outros”.

“Esperança” (1872), de Pierre Puvis de Chavannes, é uma alegoria ao renascimento da França após a humilhação sofrida na Guerra Fraco-Prussiana

O sentido de honra é sem dúvida louvável, mas quando é levado ao extremo e se mescla com orgulho, intransigência e nacionalismo pode converter-se em causa de conflito. Por esta razão, os vencedores de guerras – e de eleições – deveriam ser magnânimos para com os derrotados e ter o cuidado de nunca lhes causar humilhações tão pesadas que façam neles brotar um sentimento de vingança. O Império Alemão não teve essa preocupação quando triunfou sobre a França em 1871 e a França também não a teve quando, com os seus aliados, triunfou sobre o Império Alemão em 1918 – e assim, plantou as sementes para o revanchismo germânico, que Hitler tratou de adubar e que, por sua vez, desabrochou na II Guerra Mundial. No final desta, havia também entre os Aliados quem pretendesse punir duramente a Alemanha – esvaziando-a de indústria e convertendo-a numa inerme nação agrícola – mas, felizmente, acabou por ser tomado um caminho mais moderado, que permitiu que a Alemanha fosse reintegrada no “concerto das nações” e que a Europa conhecesse o mais longo período de paz na sua história (exceção feita à Guerra dos Balcãs, que pode ser classificada como uma guerra civil).

Grã-Bretanha, 1908

No rescaldo da Segunda Guerra dos Boers, o tenente-general britânico Robert Baden-Powell escreveu Aids to Scouting (1899), um manual destinado ao adestramento de rapazes em funções paramilitares, como batedores e mensageiros. A popularidade que este granjeou entre organizações de juventude “civis”, levou a que Baden-Powell publicasse em 1908 uma versão mais abrangente e elaborada, Scouting for boys (Escotismo para rapazes), que, além de recomendações práticas de sobrevivência na natureza, estabelecia um código de conduta que colhia influências nas práticas do exército britânico, nas leis da cavalaria medieval, no Bushidō e ainda no código de honra dos índios norte-americanos, tal como explanado no livro The birch bark roll of the Woodcraft Indians (1906), de Ernest Thompson Seton (os Woodcraft Indians, fundados em 1901 por Seton, foram uma das primeiras organizações juvenis do mundo).

Ilustração de Norman Rockwell para a revista Boys Life, Fevereiro de 1953

Este código moral, a que Baden-Powell deu o nome de “lei escoteira”, constituiu o fundamento do Escotismo, que visa proporcionar aos jovens um pleno desenvolvimento físico e espiritual e fazer deles cidadãos íntegros e responsáveis. Na versão original, compunha-se de nove artigos (que entretanto foram sofrendo ajustes na forma mas não no espírito); o primeiro deles é “A honra de um escoteiro é digna de confiança: Se um escoteiro diz ‘palavra de escoteiro’ esta deve ser interpretada como se fosse o mais solene dos votos. […] Se um escoteiro atraiçoar a sua honra, por dizer uma mentira ou não cumprir uma ordem quando se comprometeu a fazê-lo, deixará de ser escoteiro e deverá entregar o seu distintivo, não lhe sendo permitido que volte a usá-lo”. Os restantes “mandamentos” exortam à lealdade, à ajuda do próximo, à não discriminação de nacionalidades, raças e credos, ao respeito pela natureza, à cortesia, à obediência aos pais e à hierarquia e à atitude positiva perante perigos e contrariedades.

Alemanha, 1936

A Juventude Hitleriana (Hitler-Jugend) pode ser vista como a perversão nazi do escotismo: partilhava com este as atividades de grupo ar livre (desporto, campismo, montanhismo) e a ênfase na honra, mas converteu os conceitos da obediência e da fidelidade em fanatismo e adicionou o racismo, o nacionalismo e a idolatria do líder. A Juventude Hitleriana nasceu formalmente em 1926 (embora os seus antecedentes remontassem a 1922), mas foi pouco relevante até 1933, ano da subida dos nazis ao poder e da consequente extinção, restrição ou absorção das restantes organizações de jovens. A sua preponderância tornou-se absoluta em 1936, ano em que as restantes organizações de jovens foram proibidas (os Escoteiros tinham já sido suprimidos em 1935).

Nesse mesmo ano de 1936, a Juventude Hitleriana adotou o lema “sangue e honra” (“Blut und Ehre”), que tinha sido difundido por Alfred Rosenberg (1893-1946), um dos principais ideólogos nazis e o responsável pela política cultural do III Reich. Rosenberg abordara o tema do “sangue e honra” no livro O mito do século XX (1930) e deu o título Sangue e Honra às quatro compilações de ensaios, discursos e artigos de sua lavra que publicou entre 1936 e 1941. O “sangue e honra” de Rosenberg associava as usuais obsessões nazis sobre raça e “pureza de sangue” a uma inevitável superioridade moral dos arianos. “No meio da desintegração de um mundo efeminado”, iria vingar a “ideia alemã” de “autoridade, energia, abnegação, disciplina, proteção do carácter racial e reconhecimento da eterna polaridade entre sexos. A ideia de honra – honra nacional – não deixa lugar ao amor dos cristãos, à humanidade dos maçons ou à filosofia dos romanos […] O sangue nórdico é o mistério que suplantou e subjugou todos os velhos sacramentos” (O mito do século XX).

Página de rosto de Sangue e honra: Uma luta pelo renascimento alemão (Blut und Ehre: Ein Kampf für deutsche Wiedergeburt), volume publicado em 1936 e coligindo discursos e ensaios de Alfred Rosenberg

Os rapazes dos 14 aos 18 anos que se filiaram na Juventude Hitleriana – que, em 1940, chegaram a ser oito milhões – certamente que não tinham paciência para ler as inflamadas e lunáticas arengas de Rosenberg, mas, a partir de 1936, todos tinham gravado na fivela do cinto do seu uniforme o seu lema. E todos absorveram, de uma forma ou de outra, a mixórdia de sobranceria, racismo e crueldade que a ideia de “sangue e honra” comportava – e foi assim que a esmagadora maioria destes jovens acabou a prestar serviço nas forças armadas alemãs, que, durante a II Guerra Mundial derramaram muito sangue e cometeram incontáveis atos desonrosos.

Japão, 1937

A abertura (forçada) do Japão ao mundo exterior iniciada em 1853 levou rapidamente ao fim do shogunato Tokugawa e em 1868 iniciava-se a Era Meiji, marcada pela devolução do poder ao imperador, pela abolição ou restrição dos privilégios dos senhores feudais, pela reorganização administrativa do território, pela modernização e pela abertura a ideias e práticas ocidentais. Não menos importante foi a reforma militar, que retirou privilégios aos samurai (que eram, no início da Restauração Meiji, cerca de 1.9 milhões), nomeadamente o direito exclusivo ao porte de arma, e os forçou à prestação de serviço militar numas forças armadas organizadas em moldes ocidentais e me que tinham de partilhar as fileiras com gente do povo.

Após a vários episódios em que alguns samurai opuseram resistência armada à onda de reformas impostas pelo governo imperial, o último estertor da velha ordem teve lugar em 1877, com a Rebelião Satsuma, liderada por Saigō Takamori, que se saldou no esmagamento dos revoltosos e no suicídio ritual do seu líder.

A classe dos samurai acabou, na prática, por ser dissolvida e os seus membros integraram-se nas forças armadas e no funcionalismo público. Quanto ao Bushidō, o código de conduta dos samurai, foi diluído e adaptado pelo governo e pela instituição militar para os seus propósitos, o que foi visto por alguns como uma corrupção daquela veneranda tradição espiritual.

A Batalha de Shiroyama, derradeiro ato da Rebelião Satsuma, numa estampa de 1880. Takamori surge no canto superior direito, envergando uniforme negro e vermelho

Na viragem dos séculos XIX/XX, o Bushidō foi recuperado, apropriado e distorcido pelo emergente movimento nacionalista e militarista, que ganhou ímpeto com as vitórias nos conflitos com a China (1895) e a Rússia (1905). No período entre a I e a II Guerra Mundiais, o Bushidō passou a ser usado para instilar nos japoneses a disposição combativa e a vontade de superação que, esperava-se, iria permitir amplas conquistas territoriais e a criação da hipocritamente designada Esfera de Prosperidade da Grande Ásia Oriental (em que os japoneses seriam amos e os outros povos asiáticos seus servos).

As ambições expansionistas japonesas concretizaram-se com a invasão da Manchúria, em 1931, e a Segunda Guerra Sino-Japonesa, iniciada em 1937.

A tomada de Nanjing (ou Nanquim), então a capital chinesa, a 13 de Dezembro de 1937, foi acompanhada por uma onda de extrema violência pela parte das tropas japonesas, que se estendeu durante seis semanas e terá causado 200.000 mortos (muitos deles civis). As atrocidades incluíram violações em massa e em série, decapitações, uso de chineses como “alvo” para exercícios de uso da baioneta, enterramentos em vida… Nas margens do rio Yangtze os japoneses arrebanharam milhares de chineses, militares e civis, e metralharam-nos e regaram-nos com gasolina. É difícil perceber como os ideais de honra do Bushidō podem ser compatíveis com as atrocidades cometidas em Nanjing e, a bem dizer, por toda a China.

Japão, 1941

A 7 de Dezembro de 1941, o Japão lançou um ataque surpresa sobre a principal base naval americana, em Pearl Harbor (ver Pearl Harbor: O Dia da Infâmia foi há 75 anos), enquanto operações similares eram desencadeadas contra outros alvos americanos e britânicos no Pacífico e Sudeste Asiático, sem que estas nações estivessem em guerra com o Japão – num acto de inqualificável sonsice, a declaração de guerra deveria ter sido entregue pela embaixada japonesa em Washington meia hora antes de as bombas e torpedos começarem a cair em Pearl Harbor, mas um atraso na descodificação pelos serviços da embaixada levou a que fosse entregue já com o ataque em curso.

Imagem de propaganda japonesa celebrando como heróis os nove oficiais e marinheiros japoneses que tripulavam os mini-submarinos que participaram no ataque a Pearl Harbor e nele pereceram

Tal como as atrocidades cometidas na China, o traiçoeiro ataque de 1941 está nos antípodas do que deveria ser o comportamento de um samurai de outras eras. Na verdade, o espírito do Bushidō fora, ao longo de décadas, completamente pervertido pelos militaristas, acabando por descartar as componentes de integridade, honra, sentido de justiça e respeito pelo inimigo e ficar reduzido a crueldade gratuita, ausência de empatia, obstinação e fanatismo.

Finlândia, 2005

Em 2005, um aluno da Universidade do Porto que frequentava a Universidade de Helsínquia no âmbito do programa de intercâmbio Erasmus, foi expulso por cabular num exame (tinha apontamentos ocultos dentro de um dicionário). A Universidade de Helsínquia decidiu também deixar de aceitar alunos de intercâmbio provenientes da Universidade do Porto. Já a Universidade do Porto não tomou qualquer medida disciplinar contra o aluno em causa. Nem seria de esperar outra atitude: se as universidades portuguesas expulsassem os alunos que cabulam, copiam ou plagiam esvaziar-se-iam num ápice.

Um estudo do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra levado a cabo entre 2008 e 2015 e divulgado em 2016 e que questionou 7300 estudantes de uma centena de estabelecimentos de ensino superior, revelou que 52% admitiram já ter copiado por colegas e 40% admitiram ter usado cábulas. Uma vez que, mesmo sob anonimato, as pessoas tendem a dar respostas que os mostrem a uma luz favorável, é de crer que as percentagens de fraude académica sejam superiores. A confirmá-lo está o facto de, quando os estudantes são inquiridos sobre a perceção da fraude cometida pelos outros estudantes, os valores apurados serem ainda mais expressivos.

Uma vez que, mesmo sob anonimato, as pessoas tendem a dar respostas que os mostrem a uma luz favorável, é de crer que as percentagens de fraude académica sejam superiores

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A cultura da fraude está profundamente entranhada nas universidades portuguesas: é vista como natural pelos estudantes, conta com a complacência dos docentes e beneficia da inoperância ou falta de interesse das instituições na sua punição. O coordenador do estudo do CES defendeu que “mais do que agravar as penas, é [importante] as instituições levarem até às últimas consequências os processos de fraude”. Ora, não só não é previsível que a atitude das instituições se altere – os estabelecimentos de ensino superior competem cada vez mais ferozmente por atrair estudantes, portanto teriam muito a perder se ganhassem fama de ser rigorosos na punição da fraude –, como a Internet abriu novas possibilidades de trapaça: ao “copianço” e à cábula tradicionais, juntou-se o plágio de trabalhos “pescados” na Internet e a encomenda de trabalhos a terceiros (não faltam websites especializados neste florescente comércio). O “ensino à distância” imposto pela pandemia de covid-19 veio abrir ainda mais oportunidades para criativas falcatruas.

Vale a pena realçar duas outras conclusões do estudo do CES. A primeira é previsível: o nível de fraude na universidade portuguesa é superior à que se observa no Norte da Europa e é similar à da América Latina. Já seria menos expectável que a prevalência da fraude fosse maior entre os estudantes de famílias de rendimentos elevados, mas é compreensível se considerarmos que a pertença aos escalões superiores da sociedade pode reforçar o sentimento de impunidade.

Seria uma tremenda ingenuidade considerar que a fraude generalizada entre os estudantes universitários resulta de um colapso temporário dos valores morais entre os 18 e os 23 anos de idade. Na verdade, ela é a continuação de uma mundividência e de uma prática que vêm do ensino básico e secundário e não há razão para crer que se alterem uma vez concluída a frequência do ensino superior. O coordenador do estudo do CES sugeriu que a inação generalizada dos docentes perante a fraude resulta, em parte, da “desconfiança e descrença nos processos administrativos [de punição]”, mas também não deve excluir-se que a indulgência dos docentes perante a fraude resulte de eles mesmos a terem praticado e não a encararem como um ato reprovável. Pode mesmo perguntar-se se alguém que cometeu sistematicamente fraude enquanto estudante não será tentado a falsificar resultados e a plagiar estudos quando se torna investigador.

Reino Unido, 2020

No início de setembro de 2020 o governo do Reino Unido deu a entender que não fazia tenção de respeitar o Acordo de Saída da União Europeia que apresentara a 29 de janeiro de 2020 e que a UE ratificara no dia seguinte (ver Brexit: Governo britânico admite que nova legislação viola direito internacional), pondo termo a três anos de árduas negociações. O Reino Unido, em tempos um respeitado membro da comunidade internacional, assumia assim a posição de um “rogue state”, que se reserva o direito de não honrar os compromissos internacionais sempre que isso for contrário aos seus interesses. Não é de surpreender que Jonathan Jones, o chefe do departamento jurídico do Governo britânico, se tivesse demitido de imediato e que os especialistas do país em política externa avisassem que este precedente poderia fazer com que, no futuro, mais ninguém estivesse disponível para celebrar acordos com o Reino Unido.

[O mito de que o Reino Unido pagava todas as semanas à UE 350 milhões de libras foi um dos argumentos mais esgrimidos em favor do “Leave” – embora fosse uma flagrante falsidade e tivesse sido desmontada repetidas vezes]

O facto de o Reino Unido parecer estar disposto a abandonar não apenas a UE (o que é perfeitamente legítimo) mas também o círculo das nações honradas poderá parecer chocante e inesperada, mas é apenas mais um ato numa farsa que teve início em 2015 e tem sido marcada pela politiquice rasteira e pela progressiva dissolução dos valores morais. Tudo começou quando, em 2015, o primeiro-ministro David Cameron acenou com a promessa de um referendo à permanência na UE como isco para estancar a deserção do sector anti-europeísta do eleitorado do Partido Conservador para o UKIP. A jogada não teve o desfecho esperado: Cameron venceu as eleições, convocou o referendo e, contrariando as suas expectativas e as sondagens, em Junho de 2016 os britânicos votaram para sair da UE, em parte devido a uma campanha pelo “Leave” que propalou boatos tenebrosos sobre a UE e fez promessas sobre quão fabulosa seria a vida quando o Reino Unido retomasse as rédeas do seu destino (“taking back control”) e que teve como principais protagonistas o histriónico Boris Johnson, um conservador anti-europeísta de longa data (desde o tempo em que era jornalista e inventava regularmente histórias sobre a ineficácia, bizarria e corrupção da burocracia europeia), e Nigel Farage, do UKIP, e que recorreu a operações maciças de desinformação através das redes (ditas) sociais, financiadas e orquestradas por países interessados no enfraquecimento da UE.

Para a derrota do “Remain” contribuiu também o comportamento dúbio do líder trabalhista Jeremy Corbyn, um cripto-marxista que, sendo anti-europeísta por convicção mas não tendo coragem para contrariar a posição pró-Europa do seu partido, optou pela sonsice e pelo “nim”.

Theresa May

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Mal foram divulgados os resultados do referendo, Cameron, em vez de enfrentar o imbróglio que tinha criado, demitiu-se do cargo de primeiro ministro e da liderança dos Conservadores, dando início a uma refrega pela sua sucessão. Boris Johnson parecia partir de uma posição favorável para tomar o seu lugar, mas ele e os outros “galos” acabaram por anular-se mutuamente, e, em Julho de 2016, a liderança dos Conservadores e a chefia do governo caíram, inesperadamente, nas mãos de uma criatura anódina: Theresa May. May tinha pugnado pela permanência na UE, mas, inexplicavelmente, passou a consagrar toda a sua energia e todos os seus (modestos) recursos intelectuais à efetivação do Brexit, como se tivesse descoberto que era esta a missão da sua vida.

Mas, embora May tivesse proclamado, em tom assertivo e petulante, que “Brexit means Brexit” (um pérola lapalissiana), toda a gente, na UE, no Reino Unido, no Partido Conservador e no seu próprio gabinete, parecia ter ideias diferentes sobre o que significava realmente o Brexit. O nó era impossível de desatar – como o matreiro Cameron percebera logo – e May esfalfou-se em diligências vãs: o que conseguia acordar com a UE era rejeitado pelo parlamento britânico e o que parecia agradar ao parlamento britânico era inaceitável para a UE (também não ajudava que o parlamento britânico estivesse dividido e parecesse querer uma coisa e o seu contrário). Enquanto May andava numa roda-viva entre Bruxelas e Londres, era metralhada diariamente por Johnson, que dava a entender que ela não possuía as capacidades de liderança necessárias para obter um acordo de saída, e por Corbyn, ainda que nunca se percebesse exactamente o que Corbyn faria de diferente ou o que realmente queria (para lá de poder). Após o Parlamento britânico ter rejeitado por três vezes as propostas de acordo por ela submetidas, May demitiu-se, em Março de 2019 (despedindo-se com um discurso auto-comiserativo que confirmou que não percebera nada do que lhe acontecera desde Julho de 2016), e Johnson pôde, finalmente, ascender ao cargo com que sonhava desde criança, ou não fosse Winston Churchill o seu ídolo.

Prime Minister Boris Johnson Meets With His New Cabinet

Boris Johnson preside à primeira reunião do seu governo, a 25 de julho de 2019

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Johnson envolveu-se numa série de peripécias e atritos com Corbyn e com os deputados do seu próprio partido, convocou umas eleições para Dezembro de 2019, que venceu folgadamente (ou melhor, que Corbyn perdeu estrondosamente, graças à sua permanente indefinição e dissimulação) e lhe devolveram o controlo absoluto do partido e do Parlamento e em Janeiro de 2020 conseguiu que o Acordo de Saída fosse aprovado e que o Reino Unido deixasse formalmente a UE e entrasse num período de transição que deveria terminar a 31 de Dezembro de 2020.

Johnson lograra, aparentemente, desatar o nó górdio com que May lutara em vão e que tinha no estatuto da Irlanda do Norte um dos seus pontos cruciais, mas em Setembro, percebeu-se que o acordo de Johnson não era melhor ou mais exequível do que os acordos propostos por May e que a sua aprovação fora possível apenas porque Johnson nunca tivera a intenção de o cumprir.

Os actos e palavras de Boris Johnson sugerem que faz parte daquele conjunto de narcisistas patológicos que se imaginam tão geniais e tão superiores a todos os que o rodeiam (provavelmente só reconhecerá um igual em Churchill, mas este está morto), que julgam estar acima da moral. A honra é um conceito que resulta da opinião que os outros têm sobre nós e quando cremos que somos o supra-sumo e os outros são uns pobres coitados, a sua opinião deixa de ter valor para nós, o conceito de honra evapora-se e sentimos que não há nada de errado em mentirmos e faltarmos à palavra dada. No meio de tudo isto, a saída ou a permanência do Reino Unido na UE parece ser um assunto de importância secundária, face ao declínio moral da classe política britânica que o processo do Brexit tem vindo a expor.

Os líderes britânicos de hoje não podiam estar mais distantes, no plano moral, dos galhardos cavaleiros celebrados na mitologia arturiana. Ilustração por N.C. Wyeth para o livro The boy’s King Arthur:

Portugal, 2020

Os que creem que a instituição militar é o último reduto de valores como a honra e a probidade numa sociedade estritamente materialista e cínica terão certamente ficado abalados pelas notícias sobre a Operação Zeus e o subsequente julgamento, concluído no final de Setembro passado e que resultou na condenação de 23 militares por corrupção (Operação Zeus: Major-general e coronel condenados a penas de prisão por corrupção).

A Operação Zeus desmantelou um esquema de sobrefacturação nas messes da Força Aérea e no Hospital das Forças Armadas que funcionava pelo menos desde 2011: os fornecedores entregavam apenas uma parte dos produtos especificados nas facturas e a diferença entre o valor facturado e o valor real era repartido entre as empresas e os militares que alinharam no esquema. A descoberta desta moscambilha só foi possível por um dos oficiais que foi aliciado a integrá-la ter agido como “agente encoberto”. Apesar das provas recolhidas por este e pelos investigadores, só dois dos militares acusados confessaram o crime – um aspecto realçado no acórdão, que foi particularmente duro para com os dois oficiais de patente mais elevada por “não se terem colocado do lado da verdade” e terem revelado “sobranceria” e “falta de auto-censura”. Do lado dos empresários, houve um que admitiu o funcionamento do esquema de sobrefacturação mas não viu nele nada de errado, por ser o procedimento usual há muitos anos, o que sugere que o embuste revelado pela Operação Zeus é apenas a ponta de um iceberg.

Face a este panorama, é possível que o “compromisso de honra” não signifique muito para o cidadão médio dos nossos dias – e é provável que seja menos digno de confiança do que a “palavra de escoteiro”.

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