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José Monteiro, 61 anos, está de direta. À uma da manhã de segunda-feira, o vice-presidente da ANTRAL já estava na estação de Campanhã a desejar boa viagem aos primeiros táxis do Porto. “Eles estão a contar connosco às 05h no Castelo do Queijo, mas nós começamos a ir mais cedo, faseadamente”, confidencia ao Observador. O objetivo é fugir a um potencial bloqueio da polícia, “que se prepara para nos desviar”, atira.
Entramos num dos quatro táxis que José Monteiro tem em seu nome às 04h40, ainda a luz do dia é uma miragem e o trânsito de sonho. Faltam quatro horas para começar a marcha lenta em Lisboa, na zona da Expo, que deveria passar pelo aeroporto, Marquês de Pombal e Baixa-Chiado, terminando em frente à Assembleia da República. Não foi nada assim, como já sabemos, mas já lá vamos.
A motivação do protesto nacional das associações de táxis é a mesma: de uma forma genérica, contra a legalização de plataformas como a Uber e a Cabify. No entanto, entre os milhares de motoristas que se concentram em Lisboa esta segunda-feira, uns fazem mais sacrifícios do que outros. Há quem viaje desde Vila Real ou Castelo Branco. Muitos vão do Algarve. Ao contrário do que aconteceu na grande manifestação de abril do setor, desta vez a ideia era gritar a uma só voz na capital, mesmo que para isso o aparato inicial seja fraco. Às 05h00, só há meia dúzia de viaturas no ponto de partida do Porto.
Lamentar o sono que sentimos a essa hora soaria ridículo perante um homem cujo telemóvel já recebe chamadas como se fosse hora de ponta. “Onde estão?”, vai perguntando aos colegas que estão, nesse momento, a fazer a A1. “Pensei que me ia dar uma coisa na sexta-feira, tive uma aceleração no coração com a reunião em Lisboa. Isto está-nos a pôr em stress constante”, admite José Monteiro. O stress é causado pela concorrência da Uber, que consideram desleal, pelas negociações com o Governo, que não estão a correr como desejariam, mas também porque o dia do protesto, apesar de muito bem planeado, é imprevisível. Nomeadamente em relação ao número de manifestantes que vão aderir.
Lados opostos
Antes das 05h já a rotunda do Castelo do Queijo está ocupada pela GNR, que quer saber o plano da viagem. “Que eles [polícia] vão esperá-los é certo“, diz um dos agentes, pouco importado com o que se vai passar em Lisboa. Ao lado está outro agente que, por acaso, já foi motorista de táxi. E enquanto se aguarda pela partida, vão-se trocando histórias desse passado comum, mas também do presente que, por vezes, coloca taxistas e autoridades em lados oposto.
– “Vocês estavam-nos a mandar circular nos Clérigos, mas ao lado estava um Uber!”, queixa-se um motorista.
–“Olhe, isto dá para todos. Hoje teve uma noite fraca. E ontem [sábado à noite], não faturou?”, pergunta-lhe o agente.
–“Pouquinho…”
Presente está também uma equipa de reportagem da SIC, com um ar tão ensonado quando o nosso, que veio recolher imagens da partida. Não há é muito para mostrar: os poucos motoristas presentes na rotunda do Castelo do Queijo distribuem bandeirinhas com a frase “Somos Táxi”e, às 05h30 em ponto, os 10 carros que apareceram fazem-se ao caminho, na expectativa de ver se a Brigada de Trânsito os irá escoltar até Lisboa — nas portagens de Vila Nova de Gaia deram meia volta e regressaram ao Porto.
“O propósito é manifestar o nosso descontentamento. Nós temos razão”, vai-nos explicando José Monteiro, entre chamadas. Pela frente temos 300 quilómetros para discutir o que leva as associações de táxis a organizar mais um protesto, perante a intenção do Governo de legislar a Uber sob regras diferentes das que regem o setor. “Não somos contra a tecnologia”, começa por dizer, dando o exemplo da aplicação mytaxi (que trabalha com o setor). “Há duas decisões do tribunal a mandar parar a Uber e o poder económico sobrepõe-se. A lei é só para os mais fracos?”, protesta o dirigente da Antral.
“Eu fiz um estudo. Quando a Uber é interpelada para passar recibo, eles passam um de animação turística. Há 11% de desempregados, muitos licenciados, que se oferecem para a Uber. E como não há vínculo laboral eles sabem que se têm de portar bem. Além disso, eles têm o poder discriminatório de selecionar a sua clientela. Se não tiver cartão de crédito? Acha que eles respondem a chamadas de bairros sociais?” Os motivos de queixa são muitos. Sobre os colegas que optam por não aderir à manifestação, José Monteiro suaviza a voz. “Pelo menos por respeito pela luta não deviam trabalhar. Já que eles próprios não lutam pelos seus direitos e interesses, deviam respeitar quem por sacrifício pessoal está nesta luta. Compreendo, mas lamento.”
A conduzir o táxi vai Isidro, um dos motoristas ao serviço do dirigente. Ao seu lado está Manuel, atento aos noticiários da rádio que mencionam a concentração. No protesto de abril, que também partiu do Castelo do Queijo e terminou em frente à Câmara Municipal do Porto, eram muitas as viaturas em marcha lenta, quase todas ocupadas apenas com o condutor. De acordo com Carlos Lima, vice-presidente da Federação Portuguesa do Táxi, que também segue num dos 10 carros, ao todo estarão em Lisboa 100 veículos. Pouco, se tivermos em conta que na Metropolitana do Porto operam 1560 viaturas. “Eu, por exemplo, não levo o meu porque não posso entrar em Lisboa”, diz Carlos Lima, devido aos muitos anos que já leva o carro.
Contas feitas
Mas o motivo mais forte para irem tão poucos veículos e todos cheios, ou quase cheios, é económico. Para fazer parte da marcha lenta e exigir o que crê ser os seus direitos, um taxista do Porto tem de pagar 50 euros em portagens. “650 quilómetros equivalem a 65 euros de combustível“, estima Isidro, sem contar com o “pára arranca” do protesto. A isto soma-se o dia de trabalho perdido: 54€, no caso deste profissional. Ao todo, um manifestante do Porto perde 169 euros, se não tiver a sorte de dividir as despesas da viagem com algum colega. Não fosse por isso, cada motorista levaria o seu carro. E aqueles 10 seriam quase 40.
“O meu pai fundou a empresa de táxis em Ermesinde, em 1935. É uma vida dura, sei do que falo”, sublinha José Monteiro, adepto das energias alternativas para os táxis. Sobre a falta de apoio da opinião pública, muito por causa de relatos de enganos nos trajetos e nos tarifários, começa por lembrar que o tarifário está visível para o passageiro mas que “muita gente não sabe que em carros de mais de quatro lugares a tarifa é superior 25%”, e que o motorista deve perguntar às pessoas qual o trajeto que prefere. Insistimos. E os turistas que chegam ao aeroporto e que não conhecem qualquer trajeto? “É uma verdade indiscutível que há colegas que vão dar a volta à cidade. Onde há dinheiro e onde há o homem…”
No entanto, atribui a culpa à falta de fiscalização ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), porque “foi esse decreto de lei que decretou os deveres dos motoristas”. Quem infringisse essa legislação poderia ser alvo de um processo de contraordenação por parte do IMT. “Na altura, três infrações podiam dar apreensão da carteira. Agora, foi criada a lei 6, em que quatro infrações podem gerar apreensão da carteira profissional. Mas até há pouco tempo o IMT não tinha o registo cadastral, por isso não havia apreensões e havia um sentimento de impunidade”, reconhece, para logo acrescentar: “Estes homens têm leis. E os motoristas da Uber, a que leis se sujeitam?”
Voltemos a olhar para a frente, para o caminho. José Monteiro garantiu às autoridades que não haveria surpresas, como bloqueios na autoestrada. Para evitar surpresas das autoridades, desistiram da ideia de se encontrarem com os colegas de Vila Real, Coimbra e Leiria em Fátima, para seguirem todos juntos. “Mas podia ser um erro brutal, a polícia podia-nos barrar a entrada na autoestrada“, justifica José Monteiro. Assim, os carros que não vão de Lisboa não tiveram de dar o percurso à polícia porque não vão em manifestação. Essa, só em Lisboa. No entanto, foi precisamente em Lisboa que aconteceram as surpresas.
“Os primeiros a chegar à Expo foram os do Porto!”, exclama o dirigente da Antral. Na breve paragem na estação de serviço de Aveiras, José Monteiro pode finalmente deixar algum stress para trás. Ao telefone, dizem-lhe que já estão quatro filas de carros estacionados na Expo, e que os seus companheiros foram dos primeiros a chegar.
À chegada
Antes da marcha lenta oficial, a marcha lenta do trânsito à entrada de Lisboa. Vários táxis vindos do Norte, entre os quais o do vice presidente da Antral, José Monteiro, e do vice presidente da Federação Portuguesa do Táxi, Carlos Lima, estão atrasados para a partida da Expo, que começou pelas 09:00, com 30 minutos de atraso. Até lá, ouvimos o noticiário da Antena 1, onde alguém afirma que o aparecimento da Uber levou a grandes melhorias no serviço de táxi. “Obrigou a uma reflexão profunda”, reconhece José Monteiro.
Taxistas atiram-se contra alegado carro da Uber. O carro ficou todo amolgado e com os vidros partidos. pic.twitter.com/xgFD7X6S2O
— sara_coelho (@sara_coelho) October 10, 2016
Juntamo-nos finalmente aos milhares de carros em marcha às 09h30. José Monteiro muda de carro para ir junto dos dirigentes que vão na frente do pelotão. Manuel segue a pé, para esticar as pernas. Isidro continua a conduzir o seu táxi, mas não anda mais do que um quilómetro. Em Moscavide, quem vai na cauda da fila fica no mesmo sítio durante uma hora porque quem já tinha chegado ao aeroporto entrou em confrontos com motoristas da Uber e com a polícia.
Ao contrário do que tinha sido anunciado, e contra aquilo que a maioria dos manifestantes pensava, a luta não seguiu para a Baixa, nem para a Assembleia. Ficou no aeroporto. Bom para o trânsito na cidade, mau para as partidas e chegadas dos passageiros de avião. “O que faltou da última vez foi ir ao aeroporto, só assim é que se consegue alguma coisa“, dizia Isidro, antes de a paragem acontecer.
Falhou também a expectativa que José Monteiro tinha partilhado connosco no início da viagem: “Espero que seja uma manifestação com capacidade para mobilizar o setor. Não queremos violência.” Pouco depois, um carro da Uber que entrava no aeroporto foi pontapeado e vandalizado, com o motorista a conseguir seguir caminho graças à forte presença policial. Violência houve. Respostas favoráveis do Governo, não. E o protesto que deveria ter terminado em frente à Assembleia da República mantém-se inabalável, com as associações a prometerem que, enquanto as respostas não chegarem, ninguém se vai embora. Mas a unidade especial de polícia aguarda, atenta.