Uma rapariga magra, de longos cabelos pretos, canta à guitarra e sem mácula no famoso “Club 47”, em Cambridge, Massachusetts, nos anos 60. A mesma rapariga, aborrecida e farta da escola, que, de um dia para o outro, passou de ser um “ser humano desajeitado para abraçar o papel de ‘Virgem Maria'”. A mesma mulher que, muitos anos mais tarde, já octogenária, nos surge em Paris, descalça, a dançar ao som de percussão de rua. Vinda de uma família Quaker, famosa aos 18 anos, voz maior da folk dos Estados Unidos da América, ativista de corpo inteiro: direitos civis, racismo, Vietname, a pobreza.
Tudo isto numa só mulher que, desde criança, sofreu na pele várias crises de ansiedade e ataques de pânico. E que, mesmo tendo todos os holofotes e palcos à sua frente, não deixou de se sentir, por vezes, pequena. É esta a personagem “inteira” que vamos conhecer em Joan Baez: I Am a Noise, documentário da secção Heart Beat, do DocLisboa, um dos filmes que abre o festival esta quinta-feira, 19 de outubro. Passa no Cinema Ideal pelas 22h00 e no dia 26 de está na Culturgest às 18h45. Falámos com Maeve O’Boyle e Miri Navasky, duas das realizadoras do filme, a par de Karen O’Connor.
Neste retrato íntimo, o ponto de partida é precisamente um adeus. Ou talvez não. Joan Baez despediu-se dos palcos após uma longa, feliz, perturbada e intensa carreira, numa tourné que serviu na perfeição a ambição das realizadoras em contar, o melhor possível, a verdadeira história da cantora. Só que depois da artista abrir o cofre do seu extenso leque de material biográfico — cassetes de vídeo, gravações áudio, fotografias e recortes — as autoras perceberam que o filme se cruzaria em três dimensões: o lado pessoal e escondido de Joan Baez, a sua carreira artística e o seu ativismo social.
[trailer oficial de “Joan Baez: I Am a Noise:]
Filmes em película, cartas ingénuas, repletas de dúvidas existenciais, entre mãe e filha, concertos a preto e branco e filmagens atuais, é possível conhecer alguém que, apesar da explosão mediática que teve na década de 60, nunca alcançou o protagonismo de outro nome da sua geração: Bob Dylan, com quem Joan Baez teve uma intensa e complexa relação emocional e criativa, alguém que a pasmou, pelo seu talento, mal o conheceu, ainda que, no seu humor suave e provocador, o tenha imitado em palco, num dos momentos mais divertidos a preto e branco deste filme.
Foram “crianças juntas” durante um tempo, ele precisava de uma figura maternal, ela precisava de exercer essa “maternidade”, no meio de um caos de escrita e de música a fervilhar. “Descobrimos as suas lutas desde infância, algo que não víamos nas suas aparições públicas. Abre-se de uma forma tão profunda sobre essas dificuldades. Algo que percebemos muito cedo foi a sua empatia, que a levou a ter consciência social e ser ativista, desde muito nova. Sentia muito as dores dos outros, a forma como cresceu, as suas viagens, as dificuldades que viu. E o facto de pertencer a uma minoria pela sua herança mexicana. Nunca me tinha passado isso pela cabeça”, confessa Miri Navasky.
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O que se vê e o que pode até surpreender o público mais distraído é o retrato íntimo que se faz de alguém que já desde muito novo tinha a consciência do que lhe estava a acontecer. Parece que estamos perante uma pessoa absolutamente normal, imperfeita, com uma voz do outro mundo. Que permanece sempre na dúvida de não saber se deveria continuar atrás da fama, num lado comercial que embatia de frente com a sua consciência social. As consequências de ficar famosa tão cedo, das invejas involuntárias de uma das suas irmãs, das relações amorosas com outras mulheres — como Kim, que lhe deu todo um novo ângulo sobre amor e sexo — esta é uma versão da artista que nos mostra como podemos estar, muitas vezes, num lugar de fragilidade, apesar da nossa voz ser seguida por milhares de pessoas. É, por isso, um documentário de um ser universal que ainda hoje tem vontade de continuar a criar. Novamente: as imagens de Joan Baez a dançar, descalça, em Paris, aos 80 anos, são de uma esperança sobre a vida difícil de descrever. “Ela está a criar neste momento. Queria deixar um legado honesto. É a pessoa mais criativa que conheço. Vive mesmo uma vida plena”, disse Maeve O’Boyle.
Como é que surgiu este documentário e porque é que foi feito a três?
Miri Navasky: Trabalhei durante muito tempo com a Karen O’Connor. Neste caso, fomos três realizadoras. A Maeve foi a editora e coproduziu o último filme que fizemos. A Karen é uma grande amiga da Joan Baez, fez uma pequena entrevista sobre ela há 30 anos para a PBS. Sempre quis fazer algo mais. Entre outros projetos, começaram a filmar com a Joan, começou a pensar-se no fim da carreira dela mas não se percebia o que se queria fazer. A certa altura, a Joan decidiu fazer uma última tourné e pensámos: seria interessante mergulharmos nesta viagem. Temos feito filmes sociais, este seria diferente, gostámos do desafio de fazer uma biografia, de forma criativa. Quando percebemos que ela estava a ter dificuldades em fazer a digressão, percebemos que tínhamos aqui algo interessante. Quando a Joan decidiu que ia fazer, começámos a segui-la durante um ano, com os altos e baixos dessa tour. Depois o filme mudou. Este foi o ponto de partida.
Foi difícil convencê-la a entrar no filme?
MN: Foi mais fácil com essa relação, ela confiava na Karen. Mas, ainda assim, foi difícil. Não em relação ao convencê-la. Porque é preciso relembrar que ela tornou-se numa estrela logo aos 18 anos. Demorou tempo para que a Joan entrasse completamente no filme.
Maeve O’Boyle: Concordo completamente. A maneira como abordámos a tourné, onde quisemos segui-la, estar com ela dia-a-dia, ver como se preparava… É preciso habituarmo-nos a uma equipa de filmagens, que tenham acesso a tudo. Foi mais uma questão de ela habituar-se à nossa presença na estrada. A tour foi o ponto de partida, sim, filmámo-la na estrada, esse seria o fio condutor, depois fomos para a Califórnia, mudámo-nos as três [realizadoras de Joan Baez: I Am a Noise] e aí ela deu-nos as chaves para a sua história e arquivo. Mudou tudo, levou o filme por outro caminho. Abriu-o. Assim que abrimos o arquivo, percebemos que a Joan estava a ver, pela primeira vez, todo o material que tinha. Que o estava a testemunhar. Conseguimos captar esse momento em tempo real, o que foi muito mágico. E o material cobre todo o seu passado. Cassetes, cartas, os filmes do pai, os diários guardados pela mãe. Tivemos todo essa informação para processar. Esse foi o segundo fio condutor.
Descobriram outra pessoa?
MN: Descobri, sim. Só a conhecia através dos meus pais, da música que saía do vinil em casa quando estava a crescer. Mergulhámos na sua vida, estivemos com ela, com a sua humanidade e humor, assim que abrimos o arquivo. Lemos toda a sua vida, desde a infância, acho que a Joan, aí, começou a abrir-se. Das suas lutas desde infância, algo que não víamos nas suas aparições públicas. Abre-se de uma forma tão profunda sobre essas dificuldades. Algo que percebemos muito cedo foi a a sua empatia, que a levou a ter consciência social e a ser ativista desde que era mesmo muito nova. Sentia muito as dores dos outros, a forma como cresceu, as suas viagens, as dificuldades que viu. E o facto de pertencer a uma minoria pela sua herança mexicana. Nunca me tinha passado isso pela cabeça, tendo em conta o que conhecia da Joan.
MO: As lutas interiores da Joan tinham um traço de universalidade. A sua herança, a forma como se sentia inferior, como isso a levou até à luta dos direitos civis nos Estados Unidos da América. E também o trauma psicológico que atravessa o filme, de que todos temos os nossos problemas, quaisquer que sejam. Vemos uma mulher que alcançou tanto e continuou a ter esses problemas, é inspirador. Ainda por cima, partilhar essa sua versão com o mundo, é muito honesto.
Pensam que as pessoas esqueceram a Joan Baez?
MN: Não sei bem a resposta a essa pergunta. Sei que há uma geração de miúdos que não a conhece, espero que o filme mude essa perceção, mas não sei se vai conseguir. A Joan é uma daquelas pessoas intemporais. Ajudou a mudar o mundo para melhor, continua a falar sobre o que acredita: alterações climáticas, política, etc. Espero que o documentário ajude o seu legado. Disse que queria deixar um legado honesto, a três dimensões. Fala sobre os problemas de ansiedade, de envelhecer, o que quer que seja, e continua a ser inteira.
O que se nota ao olhar para estas imagens é a pureza da Joan, ou seja, a sua brutal honestidade enquanto pessoa famosa. E logo numa tenra idade. Não é muito habitual.
MN: Todos nós que fazemos este tipo de filmes tendemos a ir para lugares que não se veem necessariamente. Abrimos o mundo. Eu e a Karen, por exemplo, olhámos para pessoas com doenças mentais em prisões. Fizemos as três um documentário sobre crianças transgénero, também. Este foi diferente, com música, arte, foi mais complicado a nível cinematográfico, mas também semelhante porque entrámos num mundo que não é assim tão estranho.
MO: De facto, a relação entre a Joan e a Karen era e é especial. Foi uma conversa única entre estas duas mulheres. Falaram sobre as partes mais humilhantes da carreira dela com candura. Não vemos habitualmente estas lendas a falar desses momentos embaraçosos. Deu outra camada ao documentário, que revela a confiança e a profundidade da história que estávamos a contar.
Depois de fazerem este documentário, pensam que a Joan está em paz com o seu passado?
MO: Acho que sim. Sente genuinamente que esta é a melhor década da sua vida. Estivemos muitas vezes a mostrar o filme, todas as vezes saía a dançar. Quem está com ela sabe que está sempre a fazê-lo. Nota-se que embarcou nesta grande e profunda jornada e saiu a sentir-se inteira.
MN: A Joan tem os dois pés na terra. Consegue enfrentar tudo o que lhe aconteça. Está, de facto, em paz. E continua a criar, a pintar, a encontrar a criatividade em todo o lado. Lançou um livro de pintura recentemente, também de poesia, continua mesmo a criar.
MO: Foi importante levar o público para a Califórnia. Este filme não é suposto ser o fim, mas sim um novo capítulo. Sentimo-lo assim porque a Joan continua a estar ativa, voltou há pouco tempo da Ucrânia, por exemplo.
Falemos da sua intensa e complexa relação com Bob Dylan. O facto de a Joan não ter cultivado uma persona tão mediática como Dylan foi uma escolha premeditada para não se transformar numa versão feminina dele?
MN: O spin positivo foi que tudo foi escolha dela. A Joan viveu em conflito com a fama. Gostava e odiava. Tinha mesmo um problema com o lado comercial, talvez essa questão se tenha metido no seu caminho. Não sei se foi só uma escolha dela porque se não tivesse fama, também iria sentir-se mal. Não sei também responder bem a essa pergunta, na verdade.
MO: Ficou famosa muito nova. É difícil saber quem se é com 18 anos, nem sei se o sabem dez anos depois. Essa foi uma luta muito grande, as questões de identidade, de como a exploramos. O seu ativismo também teve um papel importantíssimo na sua relação com o lado comercial. O Dylan deu-lhe as músicas, mas a sua consciência social intrometeu-se na carreira.
MN: Era a voz certa no tempo certo. Aconteceu tudo muito rápido. Trabalhou muito mais a sua parte política.
MO: E também fez uma pausa na carreira, algo que mencionámos no documentário. Basta imaginar que estamos no início da carreira e parar com 22 anos. Se pensarmos nas Taylor Swift da vida, a Joan estava nesse ponto da carreira. Era gigante.
MN: A Joan escreveu isso mesmo nas cartas para a mãe: “Mãe, ainda me sinto a flutuar”.
“Sou só uma rapariga”, é outro dos desabafos, quando já estava a dar concertos pelos EUA.
MN: “Não cresço, não gosto disto”. Sim.
MO: Foi uma reflexão interior que fez. O problema de estar sempre a atuar, do que isso significava.
Bob Dylan é uma boa memória na sua vida?
MN: Acho que é uma muito boa memória agora. Sente-se feliz por partilhar uma parte da sua história com ele, para sempre. Disse-o repetidamente. Essa ligação vai lá estar. Não acho que esteja mais atormentada.
MO: A certa altura, descreve-nos a história em que fez um desenho dele, que se livrou de vários pensamentos negativos do passado. Foi a forma de se libertar, de se emancipar e colocar a relação noutro patamar. Está em paz com essa parte. Gosta de pensar no lado positivo entre os dois.
Qual foi a vossa principal preocupação? Contar uma boa história ou realizar um bom produto cinematográfico?
MO: Tínhamos mesmo muito material. Sabíamos que estava lá uma história honesta, mas era necessário entender como lidar com o que tínhamos. Foi intenso desde o início. Demorou meses para organizar as cartas, as cassetes, tudo.
MN: Centenas e centenas de cartas. Tínhamos uma spreadsheet onde anotámos tudo: cada artefacto, cada elemento. Todos os áudios, por exemplo, para fazer um arco desses áudios, desde a infância, passando pela família, etc. Fizemos o mesmo com as cartas e as entrevistas que deu e que conseguimos encontrar.
MO: Todo o tipo de material desde os seus cinco anos, que atravessaram toda a sua vida.
Tudo vindo dela?
MO: Sim, sim. E quando examinamos essa informação encontra-se também aí um arco narrativo. Muitos diários entre ela e a mãe, outras cassetes de várias décadas. Essa foi só uma parte. Depois tínhamos o desafio da tourné, com a sua própria narrativa. Para mim, esse foi um grande desafio criativo, de como filmar, de fazer um projeto bonito. Foi uma curva de aprendizagem. Partes diferentes do filme trouxeram diferentes desafios.
Esse foi o maior desafio, o de “cortar” e selecionar a informação?
MN: Não acho. O mais difícil foi “cortar” a vida dela. O que deixar fora, o que escolher. Um dos maiores desafios foi a parte psicológica, que atravessava a vida toda da Joan, mantendo um certo equilíbrio de diferentes elementos. Estávamos a falar de identidade, a história familiar, de envelhecer. Decidimos fazer o documentário a partir da voz dela sem que o público se cansasse. Ter a perspetiva da irmã Mimi e também dos pais, por exemplo.
Quanto tempo estiveram em pré-produção?
MN: Oh meu deus, anos! Estivemos dentro e fora do projeto. Durante a pesquisa começámos a produção. Editávamos, tínhamos acesso à Joan, filmávamos. Não era um filme com um planeamento típico. Tudo se juntou, para o bem e mal. Passámos pela pandemia de Covid-19, o que atrasou um pouco o projeto.
Quando começaram?
MN: Foi em 2017. Por acaso, começamos até a gravar antes.
MO: O storytelling foi um grande desafio, de facto.
Gostavam de ter feito uma série em vez de um filme?
MO: Surgiu em conversas, sim. No entanto, queríamos fazer um filme, um único objeto.
Depois de terem acesso à vida da Joan, que momentos guardam que foram verdadeiramente surpreendentes?
MN: Quando descobrimos o material que estava guardado. Quando a Joan acordou em dar-nos esse material, deixou-nos mergulhar neste universo interno de uma estrela. Ler as cartas foi muito íntimo. Houve, ainda assim, muitos momentos diferentes. A família dela escrevia e anotava tudo. O pai gostava de tecnologia, chegou a fazer podcasts, porque gravava tudo. Eram cartas em formato áudio que, foi como voltar a estar com a Joan dos 18 anos. Queria começar um movimento de paz, queria que a sua visão sobre os EUA tivesse seguidores. Para mim, esse momento foi surpreendente. Sinto que não estou a responder à pergunta…
Quando entramos na vida das pessoas é algo quase inexplicável. É difícil de colocar em discurso.
MN: Fiquei obcecada com as cassetes, devo dizer. Principalmente as do início dos anos 60, a Joan está a sonhar alto. Queria ser o Gandhi, e, depois, vê-se que se tornou na pessoa que de facto ambicionava. Foi muito comovente.
MO: A Joan era uma rapariga a tentar descobrir que mulher queria ser. A tentar personagens diferentes. Respirava criatividade, mas também se senti uma certa escuridão. Por isso é que animámos algumas partes, ao nível da mente da Joan. O trabalho dela era tão rico que quase sentimos que não era preciso explicá-lo. Muito revelador.
O que vos disse a Joan sobre este documentário?
MO: Estávamos nervosas, mas ficou contente. Não teve o “corte final”, confiou em nós. Certo, Miri?
MN: Sim, foi emocional para ela. Ver a mãe morrer outra vez, os áudios do pai, foi devastador. Não ouvia a sua voz há anos, a sua tristeza. Vê-la com o filho Gabe foi um momento grande, ao olhar para os arrependimentos como mãe. Tem andado connosco a mostrar o filme e todas as vezes sente-o de uma forma diferente. É um objeto em movimento. Faz senti-la triste, feliz, em paz.
MO: Sim, é o tal legado honesto. De contar toda a sua história da vida.
Ainda assim, isto não é um adeus.
MO: Não, de todo. Por isso é que voltamos à Califórnia. Ela está a criar neste momento. É a pessoa mais criativa que conheço. Vive mesmo uma vida plena.