“Peitinhos de rola. Nem a mais, nem a menos.” João de Deus aprecia o peito da menina Julieta jogada na cama, depois de lhe arrancar o soutien. No plano anterior, a câmara passou pela parede nua até encontrar o busto de Beethoven e uma partitura aberta. Tinha-se declarado à menina Julieta, de bolso cheio de notas que encontrou no ursinho de outra inquilina da pensão da mãe de Julieta, mas esta recusou-o, vestida no seu traje da banda filarmónica onde toca clarinete. Em plano, como Deus, estava Beethoven, mais elevado, seguido de Julieta e, por fim, ajoelhado, o cabotino João. “Não me estrafegue, senhor!”, ouve-se a dada altura Julieta em voz off.
Nesta cena do primeiro filme da trilogia do alter-ego de João César Monteiro no grande ecrã, de seu nome João de Deus, intitulado “Recordações da Casa Amarela” e que foi Leão de Prata no Festival de Veneza em 1989, podemos ver o mesmo tipo de brilhantismo que se vê na poesia de Daniel Faria. O realizador morreu a 3 de fevereiro de 2003, quatro anos depois do poeta. Não podiam ser pessoas mais diferentes, um conhecido pela dose de depravação e ironia que o caracterizavam dentro e fora da tela, o outro monge e recluso. Se Daniel Faria tinha a capacidade única de nos seus poemas colocar o terreno e o divino no mesmo plano, César Monteiro tinha o condão de passar do escatológico ao sublime, do sublime ao escatológico, numa mesma cena. Luz e sombra eram parte do mesmo.
O olhar do lado de fora
Desde a sua morte, passámos por uma crise económica à escala global em 2008, uma troika a socorrer financeiramente o país, o recrudescimento das redes sociais, crises climáticas de chuva ou seca extremas, o absolutismo do politicamente correto, os movimentos #metoo, woke e a cultura de cancelamento, o crescimento da extrema-direita um pouco por todo o lado, uma pandemia mundial que fechou as pessoas em casa e, mais recentemente, uma guerra na Europa, com todas as consequências associadas, económicas, sociais e humanas. Perante este desvario em catadupa do novo milénio, a obra de César Monteiro não só é mais atual do que nunca como faz falta um cineasta que olhe para este mundo com os seus olhos acutilantes. Os olhos que veem de fora.
Já aquando da estreia em 1995 de “A Comédia de Deus”, o segundo filme da trilogia de João de Deus, Eduardo Lourenço lembrava que o nosso mundo “tão vertiginosamente racional e controlável, perdeu a antiga familiaridade com a loucura” e que, para acordá-lo, é preciso fazer de louco – “com determinação, humor e alegria. João César Monteiro pertence a esta raça de gente que incomoda”.
A atriz Ana Brandão entrou nos seus dois últimos filmes, “Branca de Neve” e “Vai e Vem”. “Ele disse uma vez que, se não existisse cinema, ficaríamos mais pobres. Acho que ficámos mais pobres sem o João. Imaginemos o que seria o João César vivo, agora”, confessa Ana Brandão. “Com esta extrema-direita a aparecer, com este pesadelo que são as redes sociais, os comentários. Todo este mundo que se está a viver agora, o que seria o João a viver isto e como é que seriam os filmes dele? Como é que ele iria reagir a isto?”
A vidinha
João César Monteiro era conhecido por gostar de se sentar debaixo do centenário cedro-do-buçaco, no jardim do Príncipe Real, em Lisboa. Morava umas ruas abaixo, na direção da praça das Flores. Era também conhecido por não gostar de estar rodeado de muitas pessoas – as rodagens não seriam propriamente o seu ambiente favorito, apenas o necessário –, e, diz-se, não gostava de atores. Era conhecido pelo seu lado despudorado e o seu desejo periclitante pela carne levava-o a convidar raparigas na rua para entrarem nos seus filmes. Como foi o caso do último, “Vai e Vem”, em que abordou a psicóloga e pintora Rita Pereira Marques enquanto ela esperava pelo autocarro 100.
“Nessa altura, tinha menos 23 anos em cima, não sabia que o João César era uma pessoa tão complicada e que havia muitas histórias. Não sabia de nada, era muito ingénua”, conta Ana Brandão. “E acho graça porque penso que, se agora tivesse que estar com ele, iria estar muito mais ‘ai, ai, ai, o que é que ele vai fazer ou dizer’. Muita gente tinha medo dele.” Nas rodagens, os assistentes eram quem mais sofria, nunca sabiam o que é que ele ia fazer.
Foi esta persona, burlesca, doentia e irónica que acabou por fazer o melhor retrato de um Portugal pequenino. Nasceu filho único a 2 de fevereiro de 1939 na Figueira da Foz no seio de uma família burguesa, republicana e anti-salazarista. Em adolescente, foi para Lisboa estudar no Colégio Moderno e assim terminar os estudos liceais. Foi expulso — dizem as más línguas que por conta de uma doença venérea.
A santíssima trindade substituiu-a pelo anti-herói, pelo subversivo e pelo contraditório. Encontrava beleza tanto na putrefação como na luz, extraía fina ironia dos provérbios populares. Conheceu o povo melhor do que ninguém. Farto de estar em Portugal, decidiu exilar-se em Paris e, quando regressou, entrou em contacto com aqueles que viriam a formar o chamado Cinema Novo português, como Fernando Lopes ou Alberto Seixas Santos. Em 1962, foi assistente de realização de Perdigão Queiroga em “O Milionário”. Seis anos depois, fez a sua primeira curta-metragem – fez várias ao longo da vida – sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, um exercício belíssimo de depuração da poesia, tornada movimento. Seguiu-se outra curta, “Quem Espera por Sapatos de Defunto”, com o jovem Luís Miguel Cintra, “Fragmentos de um Filme-Esmola” e “Que Farei Eu com Esta Espada?”.
A seguir à fase experimental, segue-se a fase pós-revolução, fascinada com lendas e contos medievais. São desta altura o belíssimo “Veredas e Silvestre”. Igualmente aquático, mas de uma luminosidade diferente, mais ofuscante, César Monteiro realizou “À Flor do Mar”, de 1986. Conta a história de uma italiana a viver em Tavira que encontra um homem ferido na orla do mar, no dia em que um dirigente palestiniano é assassinado no Algarve.
Branca de Neve
Do último filme de João César Monteiro, “Vai e Vem”, o crítico de cinema e diretor da Cinemateca João Bénard da Costa (1935-2009) disse que o alter-ego João Vuvu já não tinha a autoridade de João de Deus, já não era implacável. É um João em carne e osso que se despede, é um João cinema que fica. Filmou “Vai e Vem” já muito doente, com cancro de pulmão.
“Eu tinha muito mais cenas, que não foram sequer filmadas. Ele teve que escolher, já não tinha força para fazer tudo. Ele sabia que estava muito doente e que se calhar não ia resistir”, explica Ana Brandão, que fazia de Eva Sigar. “Por isso, não o achei tão instável, tão irascível, irritadiço. Ele estava muito sereno. Parecia que se estava a despedir, de alguma forma.” E conta o episódio em que César Monteiro perguntou se tinha sobrado película do dia de rodagem. “’Ainda temos quanto tempo de película?’ A equipa respondeu-lhe quanto tempo tinham e ele diz uma coisa maravilhosa: ‘então ainda dá para nós brincarmos um bocadinho, porque o documentário que eu vou ver no Arté é só à uma da manhã’.”
Mas o filme que fez e faz verdadeiramente jus a João César Monteiro, tanto pela polémica que causou como pela genialidade enquanto criação, foi “Branca de Neve”, de 2000. Baseado numa versão da Branca de Neve escrita pelo poeta e escritor suíço Robert Walser, que acabou os dias num manicómio muito por falta de meios de subsistência (lembremo-nos que fim aguarda João de Deus em “Recordações da Casa Amarela” e da famosa cena em diálogo com Luís Miguel Cintra no hospício Miguel Bombarda), o filme começa com a imagem icónica de Walser encontrado morto soterrado na neve no dia de Natal, em 1956, devido a um ataque cardíaco. O resto da história é contada a negro, com interlúdios de recortes de céu. Filme financiado com dinheiros públicos, a polémica estalou na altura.
Ana Brandão ia dobrar a voz da atriz belga que ia fazer de rainha. Houve um dia em que César Monteiro a convidou para ir assistir a uma gravação. “Fui lá e, nessa manhã, estavam os atores todos à espera para filmar e ele pura e simplesmente não filmou. Estava a conversar com o diretor de fotografia, os atores andavam de um lado para o outro. Percebi que havia uma grande confusão com o assistente, que estava sempre a dizer ‘João, temos que ir filmar’”, confirma Ana Brandão. “Há uma altura em que ele diz: ‘não quero fazer mais nada hoje, vamos almoçar’.”
No início, César Monteiro quis que Ana Brandão decorasse o texto que ia dobrar e depois fez saber que iria outra atriz fazer a dobragem. “Depois, ligaram-me a dizer que o João queria muito que fosse eu a ler”, diz. As filmagens decorriam no Jardim Botânico, em Lisboa. “Gravei o som no meio das árvores. É uma das memórias mais bonitas que tenho do João. Com ele, nunca sabíamos bem com o que é que podíamos contar. Comecei a gravar as deixas, ele pegou num pauzinho que estava lá no chão e dançava. Era como se fosse ele o maestro. Acho que nunca o vi tão feliz, super-leve, parecia um miúdo.”
À semelhança da escrita de Walser, este filme dá ênfase ao ato de narrar, mais do que ao conteúdo do que é narrado. Como chegou a referir o realizador João Mário Grilo, as imagens estão lá, mas a luz apagou-se. Quem melhor compreendeu a semiótica de Branca de Neve foi Manoel de Oliveira. Em entrevista a Diogo Lopes para a CineLuso, Oliveira elogiou o arrojo de César Monteiro em fazer um filme com as imagens – imaginadas – que as palavras suscitam. “São palavras traduzidas em pintura”, é o regresso da tradição oral no ato de contar uma história, em comunhão, no escuro, numa sala de cinema.
Quanto à célebre resposta de César Monteiro numa entrevista televisiva em que diz “o público que se f@#*da”, referir-se-ia a um momento diferente daquele que suscitou tanta indignação: referir-se-ia ao ato de criação, que tem de ser genuíno, sem seguir tendências ou gostos a reboque dos gostos do público, e não ao momento da receção, da apreciação da obra. Ou talvez não.
O crítico
A língua mordaz já existia quando era crítico de cinema, antes de se tornar realizador. Colaborou com a revista O Tempo e o Modo, com a Cinéfilo e com o Diário de Lisboa. Em 1972, escreveu sobre “O Passado e o Presente”, de Manoel de Oliveira: “que dizer, agora, de ‘O Passado e o Presente’, a não ser que, aos 62 anos, o mais jovem dos cineastas portugueses acaba de fazer o seu maior e mais inteligente filme, precisamente numa altura em que assistimos à triste e senil decadência dos velhos senhores do cinema (vide o Visconti ou o Bresson ou o Losey, por ex.)?” E logo se apressa a esclarecer, dirigindo-se ao próprio Manoel de Oliveira: “para simplificar, antipatizo consigo. Se quiser, é uma antipatia de classe, feroz e desdenhosa. Irremediável. Há ainda o seu inconcebível catolicismo de catequista que (diga-se) se traduz num humanismo bolorento e charlatão sempre que o senhor sacrifica o discurso cinematográfico a uma verborreia pseudo-literária para se dar ares de carpideira filosófica preocupada com os pecados do mundo.”
Ana Brandão encontrava-o muitas vezes na FNAC do Centro Comercial Colombo, na secção da música clássica. “Estava lá sempre. Era na altura em que ainda se fumava. Vias uma nuvem de fumo, um senhor baixinho, careca”, conta. “Ou então estaria a escrever, o João era um poeta. Podes colar as frases agora e aquilo faz tudo sentido.”
Os seus textos e argumentos, com anotações suas, estão reunidos em quatro volumes editados pela Letra Livre. Ana Brandão tem os três primeiros. “Lembro-me de uma das frases dele de um dos filmes, ‘Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço’, de 1970: ‘Este país, senhores, é um poço onde se cai, um cu de onde não se sai.’”