John Nhial tinha acabado de chegar à adolescência quando foi capturado por um exército de guerrilheiros do Sudão e obrigado a tornar-se soldado. Passou semanas a fio a caminhar, e de tal forma escasseavam a comida e a água que nem todos os rapazes feitos prisioneiros resistiram. Outros quatro morreram durante a noite, atacados por animais selvagens. Os jovens soldados fizeram um treino militar que implicava “correr até dez quilómetros, ao calor, e escondermo-nos” antes de lhes darem armas e serem mandados para lutar contra “os Árabes”.
Nhial passou quatro anos a combater, a fugir de bombardeamentos aéreos e a disparar armas demasiado pesadas para carregar contra inimigos que às vezes se encontravam a menos de um quilómetro de distância. “Lembro-me de pensar, ‘Se matar aquele ali, estou a matar um ser humano igual a mim’, mas não temos alternativa”, disse. Um dia aconteceu o inevitável: Nhial (nome fictício) foi ferido, ao pisar uma mina terrestre numa patrulha matinal com outros dois soldados no Alto Nilo, rodeados de inimigos.
“Pisei-a e explodiu”, lembra. “Fui atirado para cima e cuspido para baixo – e depois pus-me a olhar à volta à procura do meu pé. Olhei para a minha perna e vi que faltava o pé. Quando percebi que o pé não estava lá fiquei chocado. Fiquei mesmo confuso. Se não estivesse com os outros dois tinha-me matado logo ali, porque pensei que a partir daquele momento já não servia para nada, por isso mais valia morrer.”
Os seus camaradas levaram-no ao colo até à base, onde não havia grandes recursos médicos. Passaram-se 25 dias até que Nhial fosse tratado devidamente, e durante esse intervalo de tempo ficou infetado com tétano num dos lados do corpo. Finalmente, puseram-no voo a caminho da fronteira com o Quénia, onde uma equipa médica da Cruz Vermelha lhe salvou a vida. Agora, passados dez anos, vive num campo de refugiados em Juba, e tem passado por outras adversidades no conflito que tomou a nova nação do Sudão do Sul.
Durante um surto de violência, foi capturado com outros nuer – o segundo grupo étnico mais numeroso do país – e levado para umas instalações militares. Só lhe pouparam a vida por o terem descartado como “inútil”, devido à sua incapacidade. Nhial faz parte da seleção de basquetebol em cadeira de rodas do seu país, embora tenha de recorrer à prótese na perna para se conseguir deslocar no campo enlameado, que não para de aumentar, e onde é preciso fazer grandes caminhadas para chegar aos serviços mais básicos. Às vezes é difícil ir aos treinos. Mas pelo menos Nhial tem as mãos livres para carregar água e comida, ao contrário do que acontece com as pessoas que têm de usar muletas.
Mary Lam (nome fictício), de 34 anos, que contraiu poliomielite na infância e que hoje em dia trabalha como gerente de um restaurante na capital, Juba, explicou como foi crescer a precisar de paus de bambu para se deslocar com uma perna em que não se podia apoiar. Levantava-se muito antes dos irmãos, já que demorava uma hora a chegar à escola, e eles conseguiam pôr-se lá muito mais rápido. “Não conseguia levar o meu caderno a menos que o atasse às costas, como uma criança pequena”, disse. Esta condição também lhe condicionava o uso dos braços. “Como precisava das duas mãos para me apoiar nos bambus, não podia ajudar em casa.”
Histórias como estas, de vidas destruídas pelo conflito ou pela doença, são demasiado comuns nos países em vias de desenvolvimento. Viver sem um braço ou uma perna é difícil em qualquer parte do mundo, mas para aqueles que se encontram nas zonas mais pobres do planeta, onde existem muito menos apoios e as infraestruturas são frágeis, é especialmente duro. Algumas destas pessoas foram vítimas de conflitos, outras nasceram com malformações congénitas. Nos dias que correm, muitas sofreram acidentes nas estradas, sendo que a quantidade de sinistrados não para de subir nos países mais pobres, à medida que desce nos mais ricos. A cada minuto, vinte pessoas ficam gravemente feridas em acidentes nas estradas. No Quénia, metade dos doentes nas alas cirúrgicas dos hospitais foram vítimas de ferimentos na estrada.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que existam mais cerca de 30 milhões de pessoas como Nhial e Lam, a precisar de próteses de membros, ortóteses ou outros dispositivos de mobilidade. Estes dispositivos podem ser simples de fazer e baratos. Como me disse um ortoprotésico com muitos anos de carreira, esta especialidade é das áreas mais gratificantes da medicina, porque os doentes surgem de forma quase imediata. “Um doente chega-nos de muletas que não o deixam fazer nada, dois dias depois já está a andar com uma perna nova e passado outros dois dias vai-se embora, com a vida transformada.”
No entanto, mais de oito em cada dez das pessoas que deles precisam não têm acesso a dispositivos de mobilidade. Os dispositivos implicam muito trabalho e perícia, e a OMS diz que faltam 40 mil profissionais de ortoprotesia nos países mais pobres. Para além disso, há que ter em conta o custo e a duração do processo para os doentes, que podem ter de fazer grandes distâncias para receber tratamento, que chega a demorar cinco dias – para avaliar necessidades, produzir uma prótese e adaptá-la ao membro residual. O resultado é que objetos pouco glamorosos como ortóteses e membros artificiais são dos dispositivos mais necessários para melhorar a vida de muitas pessoas. Como em muitos outros casos, a tecnologia pode vir a ajudar – desta feita, através da impressão em 3D.
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A evolução está a acontecer aos poucos, mas a impressão em 3D – também conhecida como fabricação digital – tem vindo a revolucionar alguns aspetos da medicina desde a viragem do século, tal como tem marcado a diferença noutras indústrias, dos carros à roupa. Talvez não seja grande surpresa, tendo em conta que a vantagem chave do processo é permitir a criação rápida e a baixos custos de produtos à medida. Afinal de contas, poucos produtos comerciais precisam de se adaptar a uma maior variedade de formas e tamanhos do que os dispositivos médicos feitos para seres humanos.
Os peritos desta área já desenvolveram pele impressa em 3D para vítimas de queimaduras, próteses para a via aérea de bebés, reconstruções parciais do rosto para doentes de cancro ou implantes ortopédicos para idosos. Até ao momento, esta indústria em rápido desenvolvimento fabricou mais de 60 milhões de aparelhos auditivos e moldes para o ouvido, e produz diariamente milhares de coroas dentárias e pontes a partir de digitalizações de dentes, substituindo gradualmente os métodos tradicionais de modelo de cera que vigoravam há vários séculos. As cirurgias de maxilar e de substituição de joelhos também já são feitas de forma rotineira recorrendo a guias cirúrgicas impressos nestas máquinas.
Assim, não admira que esta tecnologia tenha começado a gerar interesse no campo das próteses – mesmo que às vezes tal tenha acontecido por mero acaso. Ivan Owen é um artista americano que gosta de criar “aparelhos estranhos, excêntricos” para serem usados em espetáculos de marionetas e em filmes de terror. Em 2011 criou uma mão de metal simples para uma convenção de steampunk [um estilo baseado num género de ficção científica, também chamado “Tecnologia a Vapor”, em que se combinam elementos históricos com tecnologia anacrónica], cujos dedos pontiagudos eram puxados por laços a partir dos seus próprios dedos. Publicou um vídeo que – como acontece tantas vezes no nosso mundo interligado – foi visto por um carpinteiro na África do Sul que tinha acabado de ficar sem quatro dedos num acidente de trabalho com uma serra circular. Começaram os dois a trocar ideias para um protótipo de prótese de mão, e os seus planos rapidamente chamaram a atenção da mãe de um rapaz de cinco anos chamado Liam, que nascera sem dedos na mão direita.
Esta mãe queria uma versão pequena da mão que tinham concebido. Mas Owen apercebeu-se de que qualquer coisa que fizessem ia rapidamente deixar de servir à criança, pelo que começou a pensar em impressão 3D. “Se conseguíssemos conceber um desenho que fosse imprimível, então podíamos fazer com que o aparelho dele fosse acompanhando o crescimento do próprio Liam”, recordou. O artista convenceu então um fabricante destas impressoras a doar duas máquinas e desenvolveu aquela que se diz ser a primeira mão mecânica impressa em 3D. Marcando a diferença, em vez de patentear o trabalho, Owen publicou os planos como ficheiros em formato aberto, de modo a que qualquer pessoa possa ter acesso, permitindo assim que outros possam utilizar os planos e melhorá-los.
A iniciativa deu origem ao Enabling The Future, uma comunidade com sete mil membros em dezenas de países e acesso a duas mil impressoras 3D, que ajuda a criar braços e pernas artificiais para quem precisa.
A iniciativa deu origem ao Enabling The Future, uma comunidade com sete mil membros em dezenas de países e acesso a duas mil impressoras 3D, que ajuda a criar braços e pernas artificiais para quem precisa. Um estudante na Califórnia até imprimiu uma nova mão para um professor. A maior parte das vezes, estas próteses destinam-se a crianças, já que muitas não gostam do peso, do aspeto e da dificuldade de utilização das próteses modernas, que podem implicar pôr o braço numa manga de silicone e usar alças nas costas para segurar o dispositivo. Essas mãos apoiadas pelo corpo custam milhares de euros, mas têm de ser substituídas de dois em dois anos, à medida que a criança cresce. As versões impressas em 3D custam cerca de 50 euros, podem ser acabadas em qualquer cor e fazem lembrar brinquedos garridos. Por isso, apesar de serem menos sofisticadas, acabam por ser mais apelativas para as crianças.
Jorge Zuniga, investigador do departamento de Investigação em Biomecânica na Universidade do Nebraska, em Omaha, ouviu falar deste projeto no rádio do carro. Nem estava a ouvir com grande atenção, mas ao chegar a casa foi jogar baseball com o filho de quatro anos e apercebeu-se de como a capacidade agarrar um objeto era importante para o seu desenvolvimento. Passou o mês seguinte a construir um modelo de prótese que imitava a mão humana, com mil cuidados, só para ver o seu trabalho a ser desacreditado instantaneamente pelo filho. “Ele disse-me que as crianças preferiam ter uma mão que parecesse um robot.”
Partindo dessa conversa e dos planos disponíveis em formato aberto foi criada a Cyborg Beast, um projeto que foi apoiado pelo seu departamento na Universidade do Nebraska, para desenvolver mãos protéticas com um aspeto futurista, a baixo custo. “Tudo é possível com a impressão 3D”, disse Zuniga, que agora coordena uma equipa de sete pessoas. “Acreditamos que é uma solução que vai revolucionar o campo das próteses. Vai reduzir os custos em todo o mundo e fazer com que os engenheiros, os doentes e os médicos possam adaptar as próteses de mãos à sua medida. E podem ser de qualquer cor.”
Quando fiz notar, algo hesitante, a Zuniga, que o desenho dele fazia lembrar um brinquedo, ele ficou encantado. “Isso é ótimo – o nosso objetivo é que as crianças vejam isto como um brinquedo”, disse. “É um dispositivo de transição. Muitas crianças não gostam de próteses, por muito boas que sejam nos dias que correm, porque podem ter de ter um gancho no lugar da mão, e porque precisam de ajuda para pôr o arnês, e isso incomoda-as. Isto serve para as ajudar nesta travessia, para as ajudar a habituar-se à ideia, à medida que vão crescendo.”
“Acreditamos que é uma solução que vai revolucionar o campo das próteses. Vai reduzir os custos em todo o mundo e fazer com que os engenheiros, os doentes e os médicos possam adaptar as próteses de mãos à sua medida. E podem ser de qualquer cor.”
“Até já ajudámos uma criança que não tinha ombro. Criámos um dispositivo que pesava o mesmo do que o braço que lhe falta. O que significa que o rapaz não só ganhou um braço novo, o que melhorou a sua vida no quotidiano, como a prótese também ajudou a melhorar a postura e o equilíbrio, e como tal era muito melhor para a coluna dele. Mas obviamente a diferença entre um brinquedo e uma prótese de braço é que é preciso a ajuda de profissionais para usar devidamente os dispositivos, e para nos certificarmos de que estão bem adaptados.”
É extraordinário perceber que mesmo as pessoas que não têm uma impressora podem obter uma mão funcional de criança em menos de 24 horas, e mais ou menos pelo preço de um bilhete para o teatro. Zuniga diz que há pelo menos 500 Cyborg Beasts a ser utilizadas em todo o mundo, e que os planos já foram descarregados quase 50 mil vezes. Zuniga levou a Cyborg Beast até ao Chile, país onde nasceu e onde tem um laboratório pediátrico de impressão em 3D, e recentemente pediram-lhe os planos da Nigéria. “A minha preocupação, nesta fase, é que alguns dos materiais se possam derreter a temperaturas mais elevadas. Ainda não está a funcionar bem a esse nível, mas este tipo de prótese tem um enorme potencial para ser utilizado com materiais melhores nos países em vias de desenvolvimento. Ainda estamos no princípio da história destas próteses.”
Esta tecnologia tem também vindo a ser experimentada no meio da guerra cruel e esquecida que ensombra as montanhas na região de Nuba, no Sudão, onde um norte-americano extraordinário chamado Tom Catena tem vindo a trabalhar como único médico em permanência de mais de meio milhão de pessoas a partir do seu hospital, chamado Mother of Mercy. Animado pela sua fé, há quase dez anos que o médico tem resistido a bombardeamentos, falhas na eletricidade e escassez de água para fazer um pouco de tudo, de assistir a partos a amputar membros.
“É frustrante para nós ter de amputar um braço sabendo que não existe nenhuma solução”, disse-me Catena, via e-mail. “Há aqui pessoas a quem foram amputados braços – tanto acima como abaixo do cotovelo, como resultado da guerra, assim como da falta generalizada de acesso aos cuidados de saúde. Esta é uma sociedade agrícola, onde quase toda a gente pratica uma agricultura de subsistência. Quem fica sem um braço não consegue ser muito útil nesta sociedade. Essas pessoas tornam-se muito dependentes da família e têm dificuldades em casar-se (o que também é muito importante nesta sociedade).”
Mick Ebeling, produtor de cinema e filantropo norte-americano, ouviu falar deste trabalho e teve a ideia de usar impressão 3D para ajudar, ao saber que essa tecnologia estava a ser cada vez mais utilizada para criar próteses de mãos a baixo custo. Ao procurar informação sobre Catena, Ebeling leu a história de um dos seus doentes: Daniel Omar, um rapaz de 12 anos que se tinha abraçado a uma árvore para se abrigar durante um ataque aéreo. O rapaz conseguiu proteger a cara e o corpo quando explodiu uma bomba perto dele – mas ficou sem os dois braços.
Ebeling pôs-se a caminho com impressoras e, com a ajuda do pessoal do hospital, conseguiu aplicar próteses de braços a dez pessoas.
Ebeling pôs-se a caminho com impressoras e, com a ajuda do pessoal do hospital, conseguiu aplicar próteses de braços a dez pessoas. “Infelizmente, com o passar do tempo, todos os amputados foram deixando de usar as próteses, porque eram demasiado pesadas e maljeitosas”, disse Catena. O médico chegou à conclusão de que “o modelo 3D é bom, relativamente fácil de reproduzir e barato… embora não tenha funcionado imediatamente por aqui, talvez com alguns ajustes as impressoras 3D venham a ser uma grande ajuda para os indivíduos cujos braços foram amputados.”
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No entanto, apesar de todas as angústias e dificuldades associadas à ausência de um braço, o maior problema nos países com baixos rendimentos é quando a perda de um membro inferior leva à perda de mobilidade. As cadeiras de rodas são caras e podem ser difíceis de usar quando as estradas têm buracos, as ruas são enlameadas e não há passeios. Quando não têm próteses, as pessoas têm grandes dificuldades para ir buscar água, para cozinhar e, acima de tudo, para trabalhar. Isto obriga-as a regressar para junto das respetivas famílias e comunidades, agravando as situações de pobreza.
São estes os problemas que a Exceed, uma organização de caridade britânica fundada por diplomatas e investigadores universitários, tenta combater há quase trinta anos. A pedido do governo do Camboja, trabalham para ajudar milhares de sobreviventes de minas terrestres. A organização funciona em cinco países asiáticos, a formar profissionais em escolas de próteses e ortóteses. No Camboja há ainda cerca de nove mil sobreviventes que precisam de membros artificiais, embora nos dias que correm haja mais deficiências causadas por acidentes de trânsito, sendo que as crianças também precisam de ortóteses devido a doenças como espinha bífida, paralisia cerebral e poliomielite, todas muito comuns.
“Quando usamos uma prótese, somos incapacitados durante uns dez minutos de manhã enquanto tomamos um duche, mas depois pomos a perna e vamos trabalhar. Sem prótese não podemos usar as mãos, porque estão sempre a ser precisas para agarrar nas muletas, e nem dá para levar coisas para a mesa”, disse Carson Harte, um especialista em próteses e diretor executivo da Exceed. “Sem prótese não há expectativas. A única coisa a fazer é voltar para casa, na esperança de que a família possa ajudar.”
O que impede o acesso a estes aparelhos não é realmente uma questão de dinheiro, uma vez que as formas mais simples são baratas e os modelos chineses estão a evoluir muito rapidamente. Os componentes chegam a custar apenas 35 euros. O grande impedimento é a escassez de técnicos competentes para adaptar as próteses a cada paciente. Nas Filipinas, estima-se que haja dois milhões de pessoas a precisar de próteses ou ortóteses. Mas só há nove especialistas formados, cada um dos quais tem a capacidade de ver, no máximo, 400 doentes por ano, tendo em conta o processo moroso de criar e adaptar um membro à medida, embora haja mais profissionais inscritos num novo curso de quatro anos.
Tradicionalmente, um técnico ortoprotésico envolvia um coto com ligaduras de gesso para fazer um molde em negativo e deixava-o secar, e depois enchia esse molde com mais gesso, que tinha de endurecer. É a partir desse gesso que se fabrica um encaixe que, depois de mais algumas correções, se ajusta ao osso do coto. Tudo isto tem de ser feito com imenso cuidado para evitar os nervos e as áreas sensíveis que não toleram bem a pressão. O técnico tem de perceber a patologia de cada coto, que muda de pessoa para pessoa. Trata-se de um processo complicado que pode levar uma semana, sobretudo tendo em conta o treino de postura para os novos doentes, que demora três dias. E é também um trabalho que implica criar um certo caos, ao misturar e moldar o gesso, e um técnico de próteses que visite uma área rural tem de acartar embalagens de 20 quilos de gesso. Mas com um scanner 3D pode criar-se uma imagem digital e enviá-la por e-mail em meia hora, sem confusão.
A Exceed começou um período experimental de sete meses de utilização de aparelhos feitos em impressoras 3D no Camboja, em colaboração com a Nia Technologies, uma organização local inovadora sem fins lucrativos. “Esta tecnologia tem o potencial de aumentar a produtividade de cada técnico”, disse Harte. “Não se trata de imprimir pernas, nem a impressão substitui as capacidades de um profissional bem treinado, mas é uma técnica que tem o potencial de ajudar a desenvolver uma maneira melhor, mais rápida, e mais fácil de repetir, de dar conta de uma das partes do processo. Não há atalhos mágicos, mas esta pode vir a ser uma mudança progressiva muito importante.”
Até agora, a chave do sucesso tem estado no cruzamento de experiências e vocações: pôr engenheiros e técnicos de ortoprotesia a trabalhar juntos. Os engenheiros partem de princípios que nem sempre são verdadeiros, e os técnicos nem sempre têm noção daquilo que os engenheiros podem fazer. Juntos temos conseguido evoluir mais em poucos meses do que tínhamos conseguido em vários anos, e temos resolvido problemas concretos em tempo real, colaborando.”
A Nia também está a experimentar a sua tecnologia 3D PrintAbility na Tanzânia e no Uganda, onde há apenas doze técnicos especialistas em próteses ao serviço de uma população de cerca de 40 milhões de pessoas – no momento da escrita, as seis clínicas em funcionamento tinham ficado sem materiais. Os médicos que trabalham nesses países acabam por tratar muitas crianças que perderam membros ao queimar-se em fogueiras usadas para cozinhar, e com outras que precisam de ortóteses depois de sofrer paralisia pós-injeção, na sequência de injeções mal dadas que lhes causaram danos nos nervos.
Na Tanzânia e no Uganda, onde há apenas doze técnicos especialistas em próteses ao serviço de uma população de cerca de 40 milhões de pessoas
No Uganda, a equipa da PrintAbility está a trabalhar no hospital CoRSU, em Kisubi, um centro de reabilitação especializado no tratamento de crianças com deficiências físicas. O técnico ortopédico Moses Kaweesa diz que esta tecnologia lhe pareceu mais leve e mais rápida de usar, bem como mais fácil para as pessoas que vivem em zonas rurais remotas. “Antes demorávamos cinco dias a fabricar um membro para alguém, e isso implicava muitas horas de espera para o doente. Agora não chega a levar dois dias, e os doentes passam muito menos tempo no hospital. Também há um menor desperdício de materiais, e num país como nosso esta redução de custos pode ser muito importante.”
A primeira pessoa a testar um aparelho de mobilidade impresso em 3D foi uma menina de quatro anos que até essa altura só se conseguia movimentar arrastando-se pelo chão, e que tinha de ser levada ao colo para todo o lado pela família. “Ela nasceu sem o pé direito”, recordou o irmão mais velho. “Era muito difícil brincar com as outras crianças. Ficava muito sozinha. Mas quando lhe deram uma perna ela pôde começar a correr com os outros miúdos, e a brincar com eles.”
Matt Ratto, diretor de ciência da Nia e coordenador de desenvolvimento deste projeto, confessou que só quando viu aquela criança com ar sério, de vestido vermelho, a começar a andar, é que percebeu que a tecnologia que tinha criado funcionava mesmo. Mas, tal como Harte, aconselha alguma prudência. “Estamos rodeados por uma tal euforia em torno da impressão 3D que se ouvem afirmações estapafúrdias, mesmo ridículas”, comentou. “Temos de ter calma. Muitas destas tecnologias vão falhar, não por motivos de engenharia, mas porque não foram pensadas para o mundo em desenvolvimento. Estas novas tecnologias não resistem a tudo.
“Muito do que fazemos é inovação social. As pessoas acham que estamos a ameaçar substituir os técnicos de ortoprotesia, o que é problemático, porque pode fazer com que sejam mais reticentes a acolher esta nova tecnologia, tal como acontece nos países em vias de desenvolvimento. Estamos a tentar fazer a ponte entre o Norte e o Sul, mas temos de trabalhar com as pessoas no terreno para as formar. Os técnicos é que são os peritos – e têm o maior interesse em fazer tudo o que estiver ao seu alcance para fazer com que estas crianças possam andar.”
O objetivo de Ratto é utilizar a tecnologia da Nia para aplicar dispositivos de mobilidade impressos em 3D a oito mil pessoas ao longo dos próximos cinco anos, em cerca de vinte locais em países pobres. “A minha esperança é que, se fizermos isto bem, o crescimento possa vir a ser exponencial. Se conseguirmos reduzir o atrito e encontrar a melhor forma de ajudar os médicos, creio que vamos assistir a uma curva de crescimento tipo taco de hóquei no gráfico. Mas não podemos dar passos em falso, não podemos ir demasiado rápido nem exagerar o potencial desta solução.”
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Se há pessoa que partilha a confiança de Ratto nesta tecnologia, é Claudine Humure, uma estudante de 24 anos com grandes ambições que nasceu no Ruanda e que conheci na Universidade de Wheaton em Norton, no Massachussetts, numa manhã gelada de novembro. Humure perdeu os dois pais no genocídio e aos doze anos, altura em que vivia num orfanato, começou a ter dores insuportáveis na perna direita que vieram a revelar ser sinal de um cancro nos ossos. “Pensei que ia morrer quando os médicos me disseram, porque era essa a ideia que tinha do cancro. Pensei que tinha chegado a minha hora”, recorda. “E depois disseram-me que iam ter de me amputar a perna no dia seguinte. Chorei tanto. Senti muito ódio pelos médicos que me deram as notícias, estava tudo a acontecer tão depressa.”
Depois da operação, Humure apanhou um avião para Boston, com o apoio de uma organização não governamental dos EUA, para fazer tratamentos, incluindo quimioterapia e cirurgia para preparar a perna para uma prótese. Passou quase um ano a recuperar antes de voltar para o Ruanda com a uma perna artificial. Mas quando a perna artificial se estragou, teve imensas dificuldades em encontrar uma nova e apercebeu-se dos problemas dos produtos que estavam disponíveis nos países mais pobres. “Já tinha visto o que era possível fazer. Uma prótese boa adapta-se bem e é confortável. É possível fazer tudo com a prótese, uma pessoa sente-se normal.”
Esta jovem afável está de volta aos EUA, a estudar biologia e gestão numa universidade de renome. Escreveu o trabalho final do liceu sobre o desenho de membros artificiais e trabalhou como voluntária no Centro de Reabilitação Hospitalar Spaulding, em Boston, onde esteve com algumas das vítimas que ficaram feridas no bombardeamento da maratona, em 2013. “Aquelas pessoas ainda não se tinham habituado à ideia de que lhes faltava um membro, foi muito traumático. Estavam em pânico, foi tudo muito repentino. Espero ter sido uma influência positiva, uma inspiração para não perderem a esperança.”
Mais importante ainda, Humure ganhou uma bolsa de investigação em biomecânica no Laboratório de Media do MIT. Foi aí que conheceu Hugh Herr, uma figura de proa na investigação sobre próteses. Herr ficou sem as duas pernas ao fazer escalada, quando ficou preso durante três noites no meio de um nevão, e depois desenhou pés artificiais com ponta de titânio para poder voltar às montanhas de que tanto gosta. Foi também no MIT que Humure se deparou pela primeira vez com a impressão 3D. “Foi um momento revolucionário”, disse. “Abri os olhos. Vi toda esta investigação de ponta, sabendo das próteses péssimas que existiam no Ruanda. Olhei para a minha própria perna artificial e comecei e pensar.”
Agora tem o projeto de abrir clínicas especializadas, primeiro no Ruanda, e depois noutros países africanos. E está a desenvolver um encaixe para que os membros artificiais possam ser usados por pessoas cujas pernas tenham sido amputadas acima do joelho, pensado para os países pobres. “Estou a desenhar um encaixe mais leve, mais fácil de usar e mais barato de fabricar. Mas o que torna o desenho especial é que o próprio utilizador pode adaptá-lo para o tornar mais confortável. Nos países em vias de desenvolvimento, as pessoas simplesmente não têm tempo para ir regularmente ao hospital.”
Humure acredita que estes desenvolvimentos podem mudar a vida de milhões de pessoas como ela. “É possível ter uma deficiência física e, mesmo assim, ter sucesso. Sei que tenho tido muita sorte, sob muitos pontos de vista, porque conheci as pessoas certas, mas sou optimista e é esta a atitude que quero promover junto dos outros amputados e pessoas que têm deficiências físicas, especialmente os muitos milhões que vivem em países em vias de desenvolvimento. Uma boa prótese não se limita a ajudar-nos com a mobilidade. Dá-nos confiança e o poder de mudar a nossa vida. Acima de tudo, esquecemo-nos de que somos amputados.”
Texto: Ian Birrell
Editor: Louisa Saunders
Fact checker: Francine Almash
Tradução: Francisca Cortesão