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Esta segunda-feira, o Instituto Nacional de Emergência Médica atendeu apenas 2510 chamadas telefónicas. É o número mais baixo dos últimos 10 anos. Isto num dia em que o INEM se deparou com duas greves, que afetaram significativamente a capacidade de resposta dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU). Segundo os dados mais recentes do Portal da Transparência do SNS, que o Observador consultou esta terça-feira, os CODU não atendiam tão poucas chamadas desde o dia 27 de fevereiro de 2014, quando receberam 2480 chamadas. A título de exemplo, e para se perceber a quebra registada esta segunda-feira, na última semana de outubro tinham sido recebidas nos CODU uma média de 3751 chamadas por dia.
“São números que refletem o cenário que tivemos ontem [segunda-feira]. Não necessariamente pela nossa greve às horas extra — até porque já tivemos períodos mais longos de greve ao trabalho extraordinário —, mas sobretudo porque se conjugou com uma greve da função pública. Para além disso, o departamento de recursos humanos do INEM não decretou serviços mínimos”, explica ao Observador o presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, Rui Lázaro.
O tempo passa e vai-se agudizando, sem solução à vista, a crise no INEM. À falta de técnicos para atender as chamadas (um problema crónico, que se agrava com a incapacidade de atração de trabalhadores) juntou-se agora uma greve às horas extraordinárias que está a afetar, ainda mais, o socorro às populações. Esta segunda-feira, o cenário piorou: a greve da administração pública teve uma elevada adesão entre os técnicos de emergência pré-hospitalar, o que acabou por reduzir a um terço o número de trabalhadores (já em si deficitário) nos CODU. O resultado foi a acumulação de dezenas de chamadas em espera, com algumas a demorarem mais de 30 minutos para serem atendidas — um tempo demasiado longo, quando em causa estão situações emergentes, suscetíveis de provocar a morte em pouco tempo.
Ao Observador, o sindicato que representa estes profissionais diz que tem conhecimento de mais mortes causadas pela demora excessiva no atendimento das chamadas do 112 (para além das duas mortes denunciadas nos últimos dias e que já levaram o Ministério da Saúde a pedir uma auditoria ao presidente do INEM). A ministra da Saúde — que tinha atirado uma resposta às reivindicações dos técnicos para 2025 — já admite negociar.
Aqui ficam seis perguntas e respostas para entender a crise no INEM.
Que greves estão a afetar o INEM e o que as motivou?
Desde a passada quarta-feira, dia 31, que os técnicos de emergência pré-hospitalar estão em greve às horas extraordinárias. Na base do protesto estão duas exigências centrais: a revisão da carreira e a melhoria das condições salariais. Neste momento, o salário base é de 920 euros. “É uma greve sem termo, que só terminará quando nos forem apresentadas soluções, que têm que passar pela valorização da carreira técnica de emergência pré-hospitalar e também pela valorização do seu índice remuneratório”, avisou, na semana passada, o presidente do Sindicato Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, Rui Lázaro.
O sindicato que representa os técnicos de emergência aponta o dedo ao Ministério da Saúde, que acusa de não ter priorizado estes profissionais e de adiar a discussão sobre a carreira para 2025. Sem um compromisso da tutela, os técnicos estão a recusar-se a fazer mais trabalho extraordinário.
Esta segunda-feira, tudo se agravou porque, a esta paralisação, somou-se uma outra, convocada pela Federação Nacional de Sindicatos Independentes da Administração Pública e de Entidades com Fins Públicos, a Fesinap, e que teve uma grande adesão entre os trabalhadores.
Que consequências estão a resultar das greves?
As greves que afetam o INEM estão a afetar não só os CODU, ou seja, o atendimento de chamadas, mas também a capacidade operacional das próprias ambulâncias de emergência. Desde quarta-feira da semana passada, quando se iniciou a greve às horas extras, a situação — que já se caracterizava por um défice crónico de técnicos — agravou-se ainda mais. As quatro centrais de atendimento do país — isto é, os quatro CODU em Lisboa, Porto, Coimbra e Faro — funcionam com um quadro de técnicos abaixo dos mínimos, o que se reflete no aumento do número de chamadas em espera.
“O número total de pessoas a atender as chamadas do 112 aproximou-se de um terço do que deveria ser um turno normal”, adiantou à Lusa o vice-presidente do sindicato, Rui Cruz, dando o exemplo do CODU de Lisboa, o maior do país, que “tinha apenas quatro pessoas a atender as chamadas, quando devia ter 18”.
Se, em junho, o sindicato que representa estes profissionais, denunciava que chegaram a registar-se cerca de 50 chamadas em lista de espera, desde quarta-feira que esse número tem sido ultrapassado, o que se traduz num aumento do tempo de espera, diz Rui Lázaro. O pico foi atingido esta segunda-feira com mais de 120 chamadas para o 112 em espera e o tempo de espera a ascender a 30 minutos. Para além disso, um total 46 meios de emergência do INEM estiveram parados devido às greves.
A falta de resposta do INEM acabou por sobrecarregar os bombeiros. “Muitos dos cidadãos que precisavam de ajuda, na impossibilidade de serem atendidos por um centro de atendimento, ligaram diretamente para os corpos de bombeiros” e “alguns deles dirigiram-se mesmo aos quartéis”, disse o presidente da Liga dos Bombeiros, António Nunes. Em resposta, os bombeiros, “dentro do seu princípio de que são a primeira e a última linha de todo o sistema, serviram as suas populações e as suas comunidades como fazem sempre e transportaram as pessoas ao hospital, sem que elas estivessem inseridas no sistema”, garantiu António Nunes, criticando o facto de o INEM “não ter um plano B para uma situação como esta”.
Quantas mortes por demora na excessiva na resposta foram reportadas desde o início da greve?
Pelo menos duas, denunciadas pelo Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar. Rui Lázaro disse que, no sábado, na freguesia de Molelos, Tondela, de uma mulher de 94 anos entrou em paragem cardíaca. Um familiar conseguiu ligar para a linha 112 às 9h34, mas a chamada só foi transferida para o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) às 10h19, cerca de 45 minutos depois. A mulher ainda foi transportada para o centro hospitalar de Lamego, onde foi declarado o óbito.
Contactado pelo Observador, o INEM diz que “não se confirmam 40 minutos de espera para o atendimento pelo CODU” da idosa de Tondela e garante que devolveu a chamada 20 minutos depois, sem resposta. “A chamada foi transferida às 9h29 pelo 112 e atendida às 9h49 pelo CODU. No entanto, ninguém respondeu. Foi feita uma nova tentativa de contacto pelo CODU às 9h59, mas a chamada continuou a não ser atendida”, explica. Desta forma, o INEM afirma que “só às 10h17 foi possível ao CODU realizar a triagem clínica, tendo sido acionado o meio diferenciado que se encontrava mais próximo do local e com capacidade de resposta, no caso a Ambulância de Suporte Imediato de Vida de Tondela”.
O Sindicato denunciou ainda uma outra situação, ocorrida na passada quinta-feira em Bragança, em que a mulher de um homem em paragem cardíaca esteve mais de uma hora a tentar ligar para o 112 e, quando foi atendida, explicou que o marido estava naquela situação há mais de uma hora e que, durante todo aquele tempo, ninguém atendeu. Rui Lázaro afirmou que, se tivesse sido atendida a chamada e ativada uma viatura médica do hospital de Bragança que se encontrava àquela hora a cerca de dois minutos, “o desfecho da situação poderia ter sido outro”. Neste caso, o óbito foi declarado no local.
No caso concreto de Bragança, o INEM confirma “o atraso no atendimento devido ao volume de chamadas que estavam a ser atendidas nos CODU” e garante que, “assim que foi possível realizar a triagem, foram prontamente acionados os Bombeiros Voluntários de Bragança e a Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Hospital de Bragança”.
No entanto, ao Observador, Rui Lázaro critica o reduzido alcance da intervenção da tutela, que, defende, devia pedir ao INEM para auditar todas as situações impactadas pela demora excessiva na resposta. “Há mais casos de cuidados de emergência médica atrasados por ineficiência do sistema. Temos denúncias, que optámos por ainda não divulgar, de pessoas que morreram e de outras que se encontram internadas em estado crítico”, garante, sem acrescentar mais detalhes mas assegurando que as “falhas do sistema são constantes”.
Ministério da Saúde determina auditoria interna no INEM para avaliar circunstâncias de duas mortes
Perante os atrasos que terão contribuído decisivamente para a morte destas duas pessoas, a secretária de Estado da Gestão da Saúde, Cristina Vaz Tomé, solicitou ao presidente do INEM, Sérgio Dias Janeiro, uma auditoria interna para avaliar as circunstâncias que levaram àquele desfecho fatal em ambos os casos. A auditoria deve ser entregue até final do mês. A tutela sublinha que essa análise também deve ter em conta os “atrasos que estão a ser sentidos no atendimento de outras chamadas de emergência”.
Já em julho, a ministra da Saúde anunciou, como parte do plano para “refundar o INEM”, que pedira à Inspeção-Geral das Atividades em Saúde uma auditoria de natureza técnica sobre os indicadores de resultado do INEM (nomeadamente, a inoperabilidade, os tempos de resposta dos CODU e de resposta tardia de transporte até ao hospital). Para além disso, Ana Paula Martins determinou a criação de uma comissão independente (composta por técnicos especialistas em emergência médica) para estudar “o que tem de ser a resposta em emergência do século XXI”.
Inspeção Geral das Atividades em Saúde vai conduzir auditoria aos indicadores do INEM
Técnicos de emergência já atingiram limite de horas extra?
Uma das razões que levou o Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar a convocar greve ao trabalho suplementar é o facto de grande parte dos técnicos já ter atingido as centenas de horas extra anuais, muito acima do permitido por lei — as 150 horas extra. “A esmagadora maioria dos técnicos atinge o limite legal em dois meses. A partir daí, entra em vigor um outro limite legal, que vale para os trabalhadores dos serviços considerados essenciais: não podemos fazer mais de 60% da remuneração base em trabalho extraordinário a cada mês”, diz Rui Lázaro, ressalvando que a maioria dos técnicos também ultrapassa este limite, o que implica não receber as horas trabalhadas a mais.
O responsável sindical lembra que, com o anterior governo do PS, houve outros dois períodos de greve ao trabalho extraordinário, que acabaram por ser desconvocados, depois de o sindicato ter chegado a acordo com o Ministério da Saúde. Provocaram um impacto muito menor que a greve atual, uma vez que o quadro de técnicos do INEM era mais robusto. “Cada vez temos menos pessoas e mais constrangimentos, independentemente de haver greve ou não”, afirma Rui Lázaro.
Quão grave é a falta de técnicos de emergência pré-hospitalar no INEM?
O quadro do INEM prevê que o instituto tenha 1480 técnicos de emergência pré-hospitalar. No entanto, segundo os números divulgados pelo sindicato em julho, apenas conta com 721, ou seja, menos de metade do necessário. “Sabendo nós que todas as semanas se despedem técnicos, atualmente já nem 700 devemos ser”, lamenta Rui Lázaro. Faltam, por isso, mais de 700 profissionais no INEM. A direção do instituto fala num número mais baixo (400), mas admite as carências.
Na origem do problema está a falta de atratividade da carreira, que afasta os técnicos de emergência pré-hospitalar, deixando os sucessivos concursos com dezenas de vagas por preencher. Em 2022, apenas 30% dos lugares foram ocupados. Há, neste momento, um novo concurso a decorrer — em relação ao qual o sindicato não alimenta grandes expectativas. “Pode ter um efeito inócuo. Temos receio de que nem 25% das 200 vagas agora colocadas a concurso venham a ser preenchidas. Mas mesmo que entrem os 200 técnicos, isso não chega sequer para colmatar os técnicos que se despediram nos últimos dois anos”, realça Rui Lázaro.
O responsável sublinha que, desde julho, quando o sindicato que lidera se reuniu com a secretária de Estado da Gestão da Saúde, não houve mais nenhum desenvolvimento na resposta às reivindicações. “Explanámos os constrangimentos do INEM, apresentámos provas de tempos de chamadas em espera com frequência diária, de atraso no envio de ambulâncias e apresentámos soluções para iniciar a reversão da situação”, garante Rui Lázaro, acrescentando que o sindicato recebeu uma resposta do Ministério da Saúde em que se admitia “não estar prevista nenhuma valorização para os técnicos em 2024”. “Disseram-nos que seria, eventualmente, em 2025”, revela.
Que medidas já foram anunciadas pelo INEM e pelo Governo para melhorar a resposta?
Esta segunda-feira, e perante as dificuldades de resposta em todo o país, o INEM admitiu que as duas greves que estavam em curso tiveram “um impacto na atividade regular do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) e nos meios” a acionar. Ao mesmo tempo, o INEM deixava um alerta: quase 20% das chamadas que estava a receber não eram verdadeiras emergências médicas, tendo uma parte sido reencaminhadas para a linha SNS24. “Na prática, entre 1 a 3 de novembro, foram atendidas e triadas pelos profissionais do INEM 2.070 chamadas não urgentes”, lamentava o instituto, liderado por Sérgio Dias Janeiro, pedindo à população que ligasse apenas para o 112 “em situações graves ou de risco de vida”.
Já esta terça-feira à tarde, o INEM enviou um comunicado às redações em que anunciava que o Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM) foi reforçado com 10 ambulâncias de socorro, distribuídas por Postos de Emergência Médica (PEM) em corpos de bombeiros e delegações da Cruz Vermelha Portuguesa. Uma medida tomada para “fazer face aos condicionamentos verificados devido à greve dos técnicos de emergência pré-hospitalar (TEPH) às horas extraordinárias, para além do previsível aumento de ocorrências relacionadas com os meses de outono e de inverno”.
Segundo o INEM, o dispositivo de emergência tinha já sido reforçado com oito meios, que deverão estar em funcionamento até 31 de dezembro. Com este reforço, adianta, o SIEM passa a dispor de um total de 711 meios de emergência pré-hospitalar, dos quais 445 são Postos de Emergência Médica (PEM) e 91 são postos reserva, “num aumento de 45 ambulâncias em relação ao final de 2023”.
Do lado do Governo, a ministra da Saúde reconheceu esta quarta-feira que não esperava as greves, mas garantiu que a tutela está a trabalhar para que nos próximos dias sejam criadas “linhas alternativas de apoio”. “Não podemos prometer que de um dia para o outro teremos um atendimento mais rápido, mas posso dizer que há duas medidas que tomaremos e que já estamos a tomar. Uma é os técnicos de emergência pré-hospitalar estarem mais dedicados à orientação de doentes urgentes e também, nas próximas 24/48 horas, termos linhas alternativas de apoio”, disse Ana Paula Martins à margem de uma cerimónia, em Lisboa.
A ministra garante que o Governo está de “boa-fé” e disponível para “avançar para uma negociação” com os profissionais. “Não estávamos à espera de que, neste momento, os técnicos de emergência pré-hospitalar se recusassem a fazer horas extraordinárias, mas compreendemos, porque a falta de pessoal é tanta, que as horas extraordinárias acabam por ser a única forma de compensar”, admitiu Ana Paula Martins.