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É uma entrevista rara. Uma procuradora da República, uma das maiores especialistas do Ministério Público (MP) no combate ao crime económico, que liderou a investigação ao caso Banco Privado Português (BPP) e que também participou nas investigações da Operação Marquês e dos casos Fizz, disponibilizou-se para fazer um balanço do caso que investigou e que já transitou em julgado.
Com a devida autorização da Procuradoria-Geral da República, a procuradora Inês Bonina veio ao programa “Justiça Cega” da Rádio Observador fazer um balanço do caso BPP, que se encerrou na semana passada com a prisão do último administrador daquele banco em liberdade: Salvador Fezas Vital. Também os ex-administradores Paulo Guichard e Fernando Lima estão presos a cumprir pena.
Apesar de uma parte dos processos que fazem parte do caso BPP terem sido abertos formalmente em 2008, a procuradora Inês Bonina explica em pormenor que a investigação demorou o seu tempo a ser desenvolvida devido à complexidade dos factos em cima da mesa e devido ao dinamismo próprio da investigação criminal.
Numa conversa franca, em que respondeu a todas as perguntas sobre o caso BPP, a atual coordenadora da 4.ª Secção do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (que, entre outros crimes, lida com a criminalidade do sistema bancário e financeiro) explica em pormenor como o MP teve como grande preocupação arrestar património para que os clientes e credores viessem a ser ressarcidos. E deixa alertas sobre as dificuldades que o MP continua a enfrentar na investigação à criminalidade económico-financeira.
O BPP foi em 2008 um dos primeiros casos de uma investigação à queda de um banco nos tempos do euro e de uma economia aberta ao mundo global. Mais ou menos na mesma altura, surgiram os casos BPN e BCP. O caso BPP foi um momento de aprendizagem para o Ministério Público (MP)?
Sem dúvida que foi um momento de aprendizagem para o MP. Eu, na altura, estava na 9.ª Secção do DIAP de Lisboa [hoje 1.ª Secção do DIAP Regional de Lisboa dedicada ao combate ao crime económico]. Nós já tínhamos casos complexos, mas este caso destacou-se pelo dinamismo, pela composição das equipas de investigação e pela tecnicidade das matérias. Tivemos que nos adaptar muito rapidamente, mas, sobretudo, tivemos a colaboração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), do Banco de Portugal, da Autoridade Tributária e da Polícia Judiciária, mas com pessoas muito empenhadas e motivadas. Esse trabalho em equipa com outras entidades era uma coisa rara.
Já tinha acontecido no BCP, penso que o Banco de Portugal participou nesse processo.
Exatamente. Neste, houve uma colaboração muitíssimo mais intensa e foi o que tornou possível deslindar esta investigação e conseguir perceber o que é que se tinha passado com o banco. Porque, quando o banco [BPP] cai, obviamente que não há um relatório a dizer o que é que está ali mal, qual o dinheiro que desapareceu, qual o prejuízo patrimonial, como é que a contabilidade está. O MP teve que descobrir o que é que levou à queda do banco e o que é que ali aconteceu. E sem estas entidades não tinha sido possível.
Aliás o caso começa precisamente com uma entrevista televisiva de João Rendeiro a revelar que o BPP tem um problema de liquidez e é preciso o empréstimo do Estado.
Exatamente.
O Banco de Portugal intervém formalmente no BPP em dezembro de 2008 e nomeia uma administração para gerir o banco. A investigação do MP começou de forma espontânea ou houve alguma denúncia material?
Houve uma participação da CMVM, na altura liderada pelo dr. Amadeu Ferreira e que nos convocou para nos entregar uma participação que dizia respeito à venda de títulos. A CMVM suspeitava que esses títulos destinavam-se a cobrir buracos financeiros. Ou seja, estávamos a falar de operações que eram fictícias e que se destinavam a encobrir prejuízo do banco. Mas eram operações muito limitadas. Aquela participação não dava ideia da dimensão do que era a falsificação da contabilidade do banco e do grupo no geral.
Como é que surgiu essa questão da falsificação da contabilidade?
Durante as buscas ao BPP em janeiro de 2009 conseguimos um acervo documental do qual resultou as notícias de crime propriamente dito. As pessoas dizem que a investigação começou em 2008. Não, a investigação começa com uma pequena notícia do crime, depois todos os assuntos são consolidados a partir das buscas e a partir do momento em que se consegue analisar o interior do banco e perceber o que é que ali se passou. E foi aí que percebemos que havia prémios que não deviam ter sido dados, havia impostos que não tinham sido pagos, havia uma contabilidade falsa e em muitas outras situações havia investimentos que tinham burlado os clientes. Portanto, as notícias do crime vão acontecendo ao longo dos anos.
Quase 15 anos depois da queda do BPP, dois ex-administradores estão à beira de serem presos
É quase um novelo que vai sendo puxado, não é?
Vai sendo fechado, exatamente. E depois, com as buscas, o caso também se torna mais público e também começamos a receber muitas denúncias de clientes, de pessoas que tinham conhecimento dos factos, provavelmente do interior do próprio banco e a informação vai chegando também ao nosso departamento e ao nosso processo. Portanto, quando dizemos, “ah, demora este tempo todo”, sim, mas a consolidação da notícia do crime também é uma coisa prolongada no tempo e que se foi aperfeiçoando.
Como a opção pelo crime de falsidade informática impediu a prescrição do caso da falsificação da contabilidade do BPP
A acusação no processo principal da falsificação de contabilidade é em 2014 e tem uma característica muito relevante: em vez de uma acusação pelo crime de falsificação de documento, o MP opta pelo crime de falsidade informática por a falsificação ter sido feita através de meios informáticos.
Exatamente.
Como é que isso surgiu?
Na altura, além da criminalidade económica ou financeira, tínhamos os crimes informáticos, os acessos ilegítimos, as falsidades informáticas. Lidávamos com esse tipo de crime todos os dias. Quando fomos ao banco [BPP], percebemos que a contabilidade eram documentos eletrónicos. Não eram documentos em papel como antigamente — no tempo em que existiam os livros de contabilidade. Portanto, toda a falsidade era efetuada diretamente de forma informática e estava contida em ficheiros informáticos.
Esse crime de falsidade informática também tem uma pena maior, logo o prazo de prescrição também é maior?
Sim, tem uma pena e um prazo de prescrição mais robusto, até porque o ficheiro, quando é eletrónico, a falsidade causa necessariamente uma maior dano do que quando é um ficheiro em papel, por causa da sua portabilidade e do seu impacto.
Por causa deste crime, o processo nunca prescreveu, não?
Talvez. Essa foi uma boa ideia.
“Dividir o caso BPP em quatro processos foi muito vantajoso”
Este caso do BPP tinha quatro processos, a falsificação da contabilidade, o privado financeiras, os prémios, o embaixador, por que razão é que decidiram dividir estes processos?
Estas matérias eram extremamente complexas, era muito difícil e depois havia um volume enorme de documentos e a única maneira de compreender os assuntos era dividi-los e tendo que tentar fazer o caminho em cada um deles de forma ordenada e organizada.
E essa divisão foi uma vantagem?
Eu acho que neste processo foi muito vantajoso. Permitiu-nos dividirmos a falsidade da contabilidade dos processos dos clientes, investigar com mais tranquilidade a falsidade da contabilidade, sem termos 300 clientes a interpor requerimentos todos os dias — o que gera muita litigância — e permitiu ter uma visão dos factos separados mais correta e mais rigorosa.
Essa é uma estratégia que devia ser repetida noutros processos?
Costumo fazer isso nos meus processos, é a minha forma de funcionar. Mas compreendo que há alguns processos que podem beneficiar de estarem todos juntos, mas acho que separar e ficarem todos na mesma equipa é o mais vantajoso…
Ou seja, não é separar e distribui-los, mas separar e ficarem as mesmas pessoas a olhar para eles.
As mesmas pessoas, para não se perder também o pano de fundo e a visão de conjunto da investigação e para que as provas possam ser aproveitadas nos vários processos. Acho que nunca deve haver uma clivagem, sim.
As queixas dos clientes e a demora nas acusações que saíram em 2016 e 2019
Quantos clientes do BPP se queixaram ao MP?
Não lhe sei dizer em concreto quantos é que se queixaram, mas…
São várias centenas, provavelmente.
Sim, talvez.
O caso do embaixador Júlio Mascarenhas, que é um cliente do BPP, resultou numa acusação, num julgamento, numa condenação e em penas de prisão efetiva para os ex-administradores do BPP que transitaram em julgado e que já estão a ser cumpridas. O que é que aconteceu às outras queixas dos clientes de banco privado portugueses?
O processo dos clientes nasceu no DCIAP [Departamento Central de Investigação e Ação Penal]. Depois o doutor Pinto Monteiro, que era na altura o procurador-geral da República, decidiu que o processo dos clientes tinha que ir também para o DIAP de Lisboa. A dra. Maria José Morgado [então diretora do DIAP de Lisboa] foi muito persuasiva na altura. Esse processo já trazia acopladas muitas muitas queixas e ficou sempre separado. Porque para provarmos uma burla com clientes, tínhamos que provar que a contabilidade do banco estava falsificada, porque só assim podíamos dizer que os clientes tinham sido burlados…
Só assim é que tudo o resto fazia sentido?
Exato. Porque os administradores do banco tinham que ter consciência que já não tinham dinheiro para pagar quando fazem os investimentos — o que era uma prova muito difícil. Por outro lado, também é muito complicado provar que informação é que os clientes têm ou não têm, porque normalmente não há comunicações escritas. Os gestores dos bancos falam oralmente com os clientes, não fica um registo. E, finalmente, houve vários mecanismos de indemnização dos clientes que foram entretanto criados e uma parte relevante dos clientes ficaram satisfeitos.
Os clientes aderiram a propostas que o Estado lhes propôs para recuperar o capital investido ou uma parte do capital.
Exatamente. Nós também decidimos dividir os processos dos clientes por produto financeiro, para ser mais fácil, porque tínhamos que estudar o produto, depois logo víamos se havia burla ou não.
Tinham risco, não tinham risco.
Exatamente, e fomos logo também arquivando alguns, achando que não tinham viabilidade. Em relação a este do embaixador, realmente só houve uma queixa, porque os outros terão sido ressarcidos de outra maneira e este cliente não foi.
O embaixador Júlio Mascarenhas persistiu na queixa e no final é um dos processos que tem penas de prisão efetivas transitadas em julgado.
A acusação é mais tardia, em 2019, porque o processo da falsidade informática entretanto já tinha condenação. Portanto, foi fácil dizer na acusação, os administradores do banco tinham consciência de que o banco não tinha para pagar. Já há um caminho desbravado, é mais fácil continuar.
Por que razão é que a acusação do caso dos prémios só surgiu em 2016?
O caso dos prémios e dos vencimentos foi uma notícia de crime que foi muito mais tardia, como eu disse há pouco. Essa notícia do crime resultou da análise da prova eletrónica, ou seja, dos e-mails, e que é uma prova que demora muito tempo a chegar à nossa à disposição. Tem que ir para a Polícia Judiciária ou para um laboratório externo. Nós, na altura, tínhamos a sorte, no DIAP de Lisboa, de ter um perito que trabalhava só para os nossos processos.
A dra. Maria José Morgado sempre elogiou muito o trabalho desse perito.
Com razão. Era fantástico. No caso dos prémios, também teve de existir um trabalho muito intenso da Autoridade Tributária que também levou o seu tempo.
É difícil aceder à prova digital? A culpa é dos smartphones
O acesso à prova digital é cada vez mais difícil. Porquê?
Por causa dos smartphones. Antigamente não havia vídeos, não havia imagens. O volume da informação contida num telemóvel, num computador era necessariamente muito menor. Hoje em dia, só distinguir o que é relevante e o que não é, demora muito tempo.
Ou seja, dividir a informação em blocos. Temos a nossa vida nos smartphones?
Tudo. Exatamente. E, portanto, isso torna muito difícil. E nós, na altura, conseguíamos analisar um telemóvel no nosso computador pessoal. Hoje em dia não se consegue. E, portanto, podíamos dizer: ‘a Polícia Judiciária não tem tempo, então um procurador trabalha ao sábado e faz’. Hoje em dia isso não é possível, porque o meu computador não dá. E, então, ficamos presos… Sabemos que a prova está dentro do telemóvel, mas não temos acesso a ela. Precisamos de evoluir neste aspecto e de estar mais capacitados tecnologicamente.
Mas é uma evolução técnica, tecnológica?
Tecnológica. Sim, tecnológica. Ou das duas: ou melhoram os nossos computadores, ou melhoram os laboratórios.
Mas tem-se falado muito que a Polícia Judiciária melhorou muito os meios.
Melhorou muito os meios, mas a evolução tecnológica é muito rápida.
O MP também teve uma derrota num desses processos, no caso da Privado Financeiras. O que é que aconteceu exatamente?
Este processo foi a primeira acusação a ser dada. Iniciou-se com uma queixa de investidores do BPP e eram investidores de risco.
Não era um investimento normal, em depósitos a prazo.
Era um investimento num veículo financeiro. A Privado Financeiras, por sua vez, tinha o mandato dos investidores para a aquisição de um portfólio de ações. O que aconteceu foi que este veículo só foi utilizado para comprar ações BCP [muito devido à guerra que ocorreu no BCP entre o grupo de Jardim Gonçalves e Paulo Teixeira Pinto], que, como se sabe, naquela altura desceram terrivelmente e estava associado a um contrato de equity swap com a margin call.
Ou seja, de cada vez que as ações BCP desciam, o veículo tinha que fazer um pagamento à contraparte, que, salvo o erro, era um banco suíço. O que acontece é que, a certa altura, o veículo está falido, mas não há ali um stop loss e os clientes continuam a investir e a não ter noção do que se passa dentro deste veículo. Esta matéria, de facto, era muito complexa.
Mas também eram produtos de risco.
Lá está. É esse raciocínio que toda a gente faz, mas eu penso que pode haver uma burla com um produto de risco. Porque a pessoa pode querer investir num produto de risco, mas tem que saber o que é que está lá.
É mais fácil provar a burla de um produto de capital garantido que um produto de risco.
Claro, esse raciocínio é normal. Por outro lado, a questão é que as pessoas não sabiam e eram enganadas. Portanto, a ideia que eu fazia na altura é a mesma: estamos a comprar um investimento num imóvel de luxo e, na verdade, o que estamos a comprar é uma tenda.
“Foram recuperados cerca de 70 milhões de euros património aos arguidos e ao BPP”
Houve uma parte muito interessante deste processo que foi a recuperação do património. O património dos arguidos e até do BPP, como a coleção Elipse, foi arrestado no âmbito da investigação criminal Estes apreensão de património serviu para ressarcir os clientes? E o que é que aconteceu à coleção Ellipse?
É público que a coleção Ellipse está em exposição. Foi vendida ao Estado português por 35 milhões de euros em 2020.
Esse fundos foram para a massa falida do BPP?
Há uma comissão liquidatária da BPP que tem como função gerir a massa falida e ressarcir os credores. Portanto, imagino que sim. Agora, relativamente ao resto do património, o trânsito em julgado dos processos deu-se há pouco tempo [na semana passada]. Só agora se vai iniciar numa fase de efetiva liquidação. Mas em depósitos bancários, em frações autónomas, em carros, em investimentos financeiros, obras de arte, porque foi a coleção Ellipse, mais as obras de arte encontradas em casa de João Rendeiro, foram recuperadas cerca de 70 milhões de euros. O MP teve, desde o início, uma grande preocupação em recuperar o património no processo, porque sabíamos que os administradores do BPP tinham uma enorme facilidade em dissipar o património. Em paralelo à investigação, fizemos um grande esforço de recuperação de ativos. A coleção Elipse foi apreendida logo no dia das buscas.
Bem sei que a sua especialidade é a investigação de crimes económicos. Apesar de ter de lidar com os tribunais superiores — até porque também há recursos na fase de inquérito —, a sua especialidade não é a fase final do processo penal: a fase de recursos. Mesmo assim, pergunto-lhe: consegue compreender por que razão os tribunais superiores demoraram três a quatro anos a resolverem os últimos processos do BPP?
Penso que os tribunais superiores são expeditos a tratar toda a criminalidade. São tão expeditos os portugueses como os europeus porque há um nível de produtividade muito semelhante.A questão prende-se com a criminalidade complexa económica. É esta que é a grande pedra na engrenagem dos recursos. Isso pode ter a ver com a complexidade das matérias e com a menor preparação dos colegas mais velhos neste tipo de criminalidade. Porque não tiveram essa experiência quando estavam na primeira instância.
Por outro lado, há a questão do volume dos autos, das pendências e da urgência dos autos. Se tem um homicídio com um preso, obviamente que é nesse processo que tem que dar um acórdão mais urgentes, e não no de criminalidade económica. Penso que devia haver mais assessorias nos tribunais superiores. Ou haver então uma separação de matérias entre os vários magistrados para haver uma maior especialização.
Uma última pergunta: o Partido Socialista está a ponderar a ideia de obrigar o MP a fazer a investigação dentro de um determinado prazo definitivo. Como comenta esta hipótese enquanto procuradora especializada no crime económico?
Não conheço esse projeto.
Não é um projeto, é uma ideia que tem sido veiculada pela comunicação social, citando fontes do PS.
Uma ideia, exatamente. Parece-me que isso será a criação de um prazo de prescrição só para o inquérito. Um mini prazo de prescrição só para o inquérito e para o prazo de inquérito. O que em primeiro lugar é contrário à política legislativa criminal que tem sido no sentido de alargar os prazos de prescrição. Por exemplo, o prazo de prescrição do crime de tráfico de influência aumentou para 15 anos na última reforma penal. Portanto, não faz sentido estar a limitar no inquérito. Por outro lado, não se percebe porque é que não se limitam também as outras fases processuais que também são morosas.
A fase de recursos, por exemplo.
Exatamente. O julgamento ainda é a fase que corre melhor. Finalmente, parece-me que uma medida dessas terá como consequência que as investigações ou ficam mal feitas, ou não são feitas de todo e o processo arquiva-se. Ou então há também uma medida paralela que vai oferecer muito mais meios à justiça do que os que existem hoje e que vai permitir que a investigação chegue a bom porto em muito menor tempo. Mas, à partida, não concordo com essa ideia de impor prazos peremtórios.