Inês Lynce mostra que a inteligência artificial é um conceito que também se escreve no feminino. A investigadora do Instituto Superior Técnico (IST) é a primeira mulher a assumir o cargo de co-diretora do programa Carnegie Mellon Portugal (CMU Portugal) — uma iniciativa da reputada universidade norte-americana em parceria com outras instituições portuguesas, que conta com o apoio da Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT). Além deste cargo, é presidente do INESC ID (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores) desde 2020, e professora associada no IST, onde se licenciou em 1998 e doutorou em 2005. Ao Observador, a investigadora e engenheira informática assume que há um “esforço na sociedade” para mudar a ideia de que a engenharia informática é um “mundo de homens”. Contudo, afirma que ainda há caminho a “esgravatar”.
Nesta segunda-feira, em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, a mais recente líder do CMU Portugal, posição que será partilhada com o professor catedrático do IST Nuno Nunes, é também reconhecida pelo Centro Ciência Viva como uma das 101 investigadoras portuguesas de relevo no livro “Mulheres na Ciência”. Nos últimos anos, a académica tem dedicado a sua investigação a temas complexos como a inteligência artificial, mais especificamente na área de resolução de problemas e otimização através do contributo para a criação de novos algoritmos.
O trabalho que tem desenvolvido permite melhorar programas informáticos utilizados em universidades, serviços públicos ou empresas para tornando-as mais eficientes. Além disto, Lynce é membro, desde 2010, do Conselho Editorial do Journal of Artificial Intelligence Research (JAIR), membro recorrente dos comités do IJCAI (International Joint Conferences on Artificial Intelligence) e de outras conferências conceituadas na área da Inteligência Artificial, como a AAAI (Conference on Artificial Intelligence) ou a ECAI (European Conference on Artificial Intelligence).
Em entrevista ao Observador, além de destacar a importância da diversidade, não só de género, nas áreas relacionadas com a informática, desmitifica também o papel que a inteligência artificial terá no futuro. “A inteligência artificial para a maioria das pessoas por dar um certo susto, mas quem trabalha na área dá menos, porque conhecemos mais a realidade”, clarifica.
O que significa para si ser a primeira mulher a assumir o cargo de diretora do programa CMU Portugal?
Há aqui uma questão muito prática que é a representatividade das mulheres nas engenharias e, em concreto, na área de informática. Mais do que na informática, na engenharia informática. O nome engenheiro tem sempre um peso, parece-me a mim, muito pesado e, se calhar, mais masculino. Nesse sentido não faço as coisas por ser mulher, mas sei que o facto de ser mulher tem um reflexo, naturalmente. Vejo o facto de ser mulher, não o facto de ser mulher ou ser homem, como uma questão de minorias que estão sub-representadas nalguma circunstância social. Portanto, é importante haver esse reconhecimento e é positivo que, de alguma maneira, ter a consciência que isso tem um impacto. E isso é algo que acho que é relativamente recente.
Entrei no técnico em 1993. Quando entrei, éramos poucas raparigas. Vi que éramos duas ou três por cada turma. E uma pessoa habitua-se a isso. Não deixei de ir para o técnico por isso. Embora reconheça que pode haver raparigas que, estando indecisas entre duas coisas, vão para onde estão mais colegas da turma, por exemplo. Depois, há aqui um efeito que é difícil de contrariar. Por isso, os que têm pouco continuam com pouco. Para mim, sobretudo ver que passados mais de de 20 anos — desde que terminei o curso em 98 — continuamos na mesma realidade. Isso para mim é que é assustador. Até porque o número de raparigas no ensino superior tem vindo a aumentar. É dominante. Há um esforço da sociedade para falar abertamente destas coisas e lutar contra a discriminação. E ainda não conseguimos isso. Por isso, nesse sentido, às vezes ter a perceção de que as poucas mulheres que existem têm um exemplo a dar e têm, como em tudo — como na política, na vida social, como noutras áreas — é importante.
Para mim, que estou habituada a dar aulas só a rapazes, ou estar em reuniões só com homens, a pessoa entra na rotina. Se calhar, uma das alturas em que ganhei mais a perceção disto foi com uma filha minha. Estava no infantário do Técnico e, na altura da primavera e do verão, havia muitos workshops e as pessoas faziam coffee-breaks no jardim cá fora. Lembro-me dela com quatro anos, ao passarmos por um desses coffee-breaks, que era sempre um motivo de agitação, ela dizer: “Mãe, porque é que aqui só há homens?”. Nem tinha reparado, nem me incomodava com isso, mas ela reparou. Portanto, aquilo a que nós nos habituámos e que, se calhar, pode dizer-se noutras realidades — “porque é que aqui só há mulheres?” — há aqui um esforço a fazer.
Atualmente, há pessoas com um papel muito ativo nessas áreas. Estou a lembrar-me, por exemplo, da Graça Carvalho, que também foi aluna e professora no técnico e a nível da comissão tem cargos. Ou a Maria Manuel Marques também. Penso que as duas têm um papel ativo. Lembro-me delas contarem que a Graça Carvalho e a Isabel Trancoso — que também é do Técnico e do INESC ID, do qual faço parte — tinham de pedir a chave para irem à casa-de-banho. Tinha tão pouco uso a chave da casa-de-banho das raparigas que tinham de pedir. Há aqui uma mudança de realidades, mas acho que temos de continuar a lutar por isso.
O objetivo não é chegar a 50-50, é ter a perceção de que a escolha é livre e que não é influenciada por estereótipos que existiram no passado. Nem que seja pelas mulheres que muitas vezes não chegavam ao ensino superior. Acho que é nesse sentido de quebrar esses estereótipos. Naturalmente, quando dizem, “foi a primeira mulher que chegou aqui”, claro que isso tem um peso de responsabilidade e exemplo que se tem de dar. Mas, sobretudo, é a sensação de abrir caminho. Isso acho que é muito positivo. E em todas as áreas, não só nesta. Porém, a mim cabe-me fazer nesta. Acho que isto é importante. Quem diz isso diz outras minorias diz minorias que não estejam representadas. É uma luta pela diversidade. Confesso que nunca é pela negativa. Não acho que há poucas raparigas porque são mal tratadas. Não é nada disso. Há poucas porque temos uma realidade pessoal que vai evoluindo e que ainda não chegou a um ponto em que isso deixe de ser um problema.
O que pode ser feito para mudar esta realidade?
A Carneggie Mellon University (CMU) é um caso de sucesso em relação à diversidade neste ponto, especificamente no curso de Computer Science. Eles chegaram a ter cursos na ordem dos 50-50 e foram fazer uma formação ao Técnico no sentido de contar a história deles. Há um aspeto em que disseram que há várias vias, e umas das vias é tornar as áreas mais femininas. Quanto a isso, disseram: “Não. Não fomos por aí. Os conteúdos que temos de informática acreditamos neles não por ser uma rapariga ou rapaz. São os conteúdos científicos que definem aquele curso. O que lutámos foi por dar destaque às raparigas que estão nesta área para poderem atrair outros”.
Há um termo muito utilizado nos EUA, aqui é difícil traduzir. Que é o empowerment. Ou “empoderamento”, mas em português soa-me sempre mal. No fundo, é que umas raparigas possam atrair outras de alguma maneira e que isso não seja a forma de sentirem que vão ter um problema. Para isso, faziam desde grupos só de raparigas em alguns períodos. Isso já havia lá. Aqui ainda não chegámos a isso. Havia muito, e existem nas próprias association for computing machinery. Lembro-me de ir a workshops de raparigas em conferências da Women in Computing Science. Estávamos num mundo de homens e, de repente, chegávamos a essa sessão e era só raparigas. Era assim uma coisa onde se faziam as perguntas mais variadas desde, por exemplo, em relação aos filhos, em relação à família, que são perguntas que são muito prementes. E, sobretudo, às mulheres, nem que seja do ponto de vista físico, obviamente que tem mais peso logo à cabeça.
Existe, de facto, esse esforço. A Manuela Veloso [investigadora na CMU em inteligência artificial] contava também a experiência que é engraçado que diziam na CMU: “A partir do momento em que a coisa chega aos 30%, já evoluiu naturalmente”. Há aqui uma barreira que é preciso quebrar, a ideia de que a engenharia informática e a engenharia eletrotécnica e mecânica são só para raparigas. É preciso desmitificar isso. Porque elas são igualmente capazes como eles. Depois, se se sentem menos atraídas, isso já é outro assunto. Como há áreas em que, se calhar, as mulheres são mais cuidadoras e, portanto, reveem-se mais. Por exemplo, como professoras primárias ou como enfermeiras. Contudo, até aí pode haver um peso cultural. O objetivo é que a pessoa seja livre quando decide e não esteja influenciada por estereótipos, mas acho que em Portugal se pode fazer muito mais.
Penso que o importante é perceber que estamos numa derivada positiva, que há consciência desta realidade, muitas vezes até vinda do exterior. A Comissão Europeia está a fazer um esforço muito grande. Por exemplo, exige que nas candidaturas a projetos é preciso ter um plano de diversidade de género. As próprias instituições públicas têm de ter esse plano. Portanto, há um esforço para haver uma consciencialização do problema de alguma maneira. E, sobretudo, o exemplo que se dá: se há uma conferência em que há 10 oradores e são todos homens, obviamente que quero acreditar que ninguém fez isso intencionalmente, mas não estamos a passar uma boa mensagem. Não acredito que haja uma área em que não há uma única mulher que se possa pôr. Às vezes até se pode dizer: tentámos, mas são tão poucas que recusaram. Isso às vezes acontece. Porém, que haja a consciência de que não estamos a dar um bom exemplo.
Quem diz só mulheres, diz o mesmo em relação a outras realidades. Isto é esforço que tem de ser feito. Acho que há um esforço para começarem a existir, por exemplo, grupos de gender balance [equílibrio na representação de género]. Ou de diversidade e igualdade, quer em empresas quer em universidades. Um aspeto que acho interessante, às vezes nos painéis em que participo ou assisto, é que as empresas vão à frente mais à frente até do que a universidade. Ou seja, existe muito um espírito das empresas de perceberem a importância da diversidade. Há um esforço nesse sentido, mesmo quando há a contratação de existir uma equipa variada. Não obstante, não podem ter todos as mesmas qualidades ou os mesmos defeitos, se não vai correr mal. Nas empresas, porque têm dinâmicas diferentes há, se calhar, em termos de recursos humanos, um acompanhamento maior e faz com que haja uma preocupação muito grande pela diversidade. Mas é na própria academia é por onde se devia começar. Caso contrário, mais tarde as empresas vão ver-se aflitas. Se não conseguimos produzir para o mercado de trabalho diversidade na nossa amostra, então depois o mercado de trabalho vai ter grandes problemas em compensar isso.
Há um aspeto no qual as próprias empresas têm muito mais consciência dos benefícios da diversidade, até porque na universidade as pessoas estão pouco tempo e depois passam para as empresas. Esse aspeto é que temos de começar a consciencializar mais cedo. O que é que acontece? Estava a falar disso, com o exemplo da Manuela Veloso com quem tive a oportunidade de falar sobre este tema. [A investigadora] Diz que é preciso começar muito cedo. Portanto, é preciso começar nas escolas porque, queiramos ou não, existe um bocadinho um mito a certa altura, que é: a matemática é para os rapazes e as raparigas têm outras coisas. Quem diz a matemática diz ou as máquinas ou os computadores. No outro dia, pensávamos cá em casa porque tenho uma filha no quinto ano e aí rapazes dizem que as raparigas não têm jeito para matemática. Aqui em casa, geneticamente, acabamos por ter uma filha que tem jeito para isso porque os pais têm essa formação. Mas o meu marido dizia-me: “Eles dizem isso porque ouvem isso em casa, provavelmente”.
Estamos a passar aquilo que penso, que pensa o meu pai ou que pensava o meu avô porque há um contexto histórico. Não é que as pessoas fossem más e, de repente, ficaram boas ou com clarividência. A história assim vai evoluindo e há coisas que não nos chegavam há uns tempos e, agora, temos a perceção que não estão corretas. Por exemplo, o cuidado com a infância é completamente diferente do que havia de há uns séculos para agora. De facto, há aqui uma questão que é: não só formar as pessoas mas ter a consciência que o histórico pode ajudar. Agora, é importante ir a crianças, e muito novas. Na matemática, como base depois das engenharias e da ciências, temos de atrair os jovens para isso. A ideia de que a matemática é uma coisa chata e sem interesse, temos de varrer isto. E varrer isto não é dizendo que a matemática não é chata. É mostrando que não é. Toda a parte lúdica associada a isso já se vê muito. Há muitos brinquedos que agora têm lá a marca STEM [Science, Technology, Engineering e Mathematics (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, em português)]. É um trabalho que demora muitos anos e tenho a noção que vai passando de geração para geração, mas acho que já se começa a ver o reflexo disso. Sobretudo, é um trabalho pelo exemplo. Não é pelo que possamos dizer. É pelo que podemos fazer. Em nível de iniciativas, com certeza que precisamos de as ter. Porém, que sejam iniciativas para tornar atrativa a ciência para todos, digamos. E, aí, talvez muito para as raparigas para destruir estereótipos que se tinham antes.
Falou da Manuela Veloso. Que outras mulheres também destaca na sua área?
A Manuela Veloso, de facto, é uma referência. E existem outras. O facto de a pessoa estar no estrangeiro, de alguma maneira temos esta nostalgia. Um português no estrangeiro é como se valesse mais do que um português cá [risos]. No entanto, também temos portugueses cá [a destacar]. Estava a falar da Isabel Trancoso, que é uma referência. Outra pessoa na minha área, que é a Ana Paiva, também é uma referência. São claramente referências. São do Técnico, portanto são aquelas que me são próximas. Cada um terá as suas. Mas mesmo na própria história da engenharia informática, temos a Ada Lovelace, que é uma referência na linguagem de programação Ada. E, sobretudo numa altura em que mulheres era assim algo completamente fora da caixa. Temos a Grace Hopper, também nos Estados Unidos, que foi uma referência neste sentido. E temos outras referências.
Atualmente até existem livros para raparigas de casos de sucesso de mulheres na ciência. Enfim, também no desporto, na política, no que for. É muito pelo estimulo positivo, por mostrar exemplos, no sentido de dizer: “Olha, estás a ver? Mesmo que sejam poucas, é possível”. Por isso, se queres, o importante é a pessoa fazer aquilo que, no fundo, vai ao encontro das suas expectativas e das suas capacidades”. E não é por ser mulher, ou por ser, se calhar, num país onde terá mais dificuldade em alcançar essa meta que a pessoa se deve deter por causa disso. Agora, claro que depois é preciso potenciar.
À partida, na nossa cultura, temos tudo para que se a pessoa quer, possa fazer. Porém, acho que o mais importante é o querer e sentir que é capaz. Não ser alguma coisa que é completamente dissuasor. Se a pessoa vai ser a primeira pioneira, certamente que vai ter mais dificuldades. O que não quer dizer que depois não vai ter o retorno disso. É importante ter estas referências. Claro que também há homens no mundo da informática que tiveram um trabalho excelente, mas é preciso esgravatar e dizer: “Também há mulheres que tiveram relevância”. Estas duas que falei, claramente, têm um trabalho que não é preciso puxar o lustre, digamos assim. O trabalho por si já tem um destaque extraordinário. É verdade que, depois na prática, no nosso percurso, seja académico, seja pessoal, acabamos por ter os nossos role-models [exemplos a seguir]. Temos sempre alguém que fez diferença e que é uma referência para nós. Depois, claro, cada um faz o seu caminho. Mas os bons exemplos são para se mostrar e, sobretudo, nas gerações mais novas isso é capaz de mover montanhas.
A Ciência Viva tem também projetos muito interessantes e, no Dia da Mulher, dá sempre destaque às mulheres na ciência. Atualmente, acho que é um trabalho importante, desde pessoas com carreiras estabelecidas e com potencial. Estou convencida que há um trabalho importante a ser feito e que dará frutos. A questão que se pode pôr em causa é se está a fazer todo o trabalho possível. Porém, não é por falta de empenho. Quero acreditar que na sociedade há esse esforço. Sou otimista nesse sentido.
Com este novo cargo que agora assume no programa CMU Portugal, vai fazer mudanças no projeto ou o objetivo é manter a fórmula até agora aplicada?
Havia um diretor que estou a substituir. Ou seja, há ideias que já foram definidas e as linhas orientadoras e estamos a dar continuidade. Aquilo que dizia, que é verdade, não é pelo facto de ser um homem que a pessoa está do outro lado ou não está alerta para isto. Por exemplo, no técnico existe um grupo de gender balance que é coordenado por duas pessoas que é um homem e uma mulher. Até é positivo que existam homens em todo o tipo destas iniciativas. Se a pessoa é séria e faz um trabalho de investigação sério chega às mesmas conclusões. Claro que do ponto de vista, se calhar a uma mulher toca-lhe de uma forma diferente, mas não é por isso que a pessoa deixa de ser séria e honesta no trabalho que faz. Tinha dois colegas antes e agora somos dois coordenadores. Agora, continuam um desses colegas e estou eu. Ou seja, eles tinham claramente essa linha definida. Se de alguma maneira vou estar mais alerta a isso? É possível, mas não é por deficiência dos anteriores, digamos assim. Mas sim por que é um aspeto que a mim me toca mais, sobretudo.
Aqui a questão é: as mulheres não fazem melhor nem pior, fazem muitas vezes diferente. Isso até na dinâmica de uma família se vê que tem papéis diferenciados e que não são melhores nem piores. São diferentes e a complementaridade é que é a chave do sucesso. A complementaridade pode trazer mais frutos, mas não é no sentido de que estavam a fazer alguma coisa mal antes e agora vão fazer bem. Pode haver uma abordagem diferente, ou um ponto de vista diferente, mas que é complementar. Não é diferente e as decisões são colegiais. Não me parece isso.
Agora, o que vejo às vezes, por exemplo, a trabalhar com outros colegas, quando há sobretudo órgãos do departamento ou do que for, em que a dominância sejam colegas e uma ou outra mulher, há coisas que para mim são óbvias e que, para eles, não são. Se calhar o contrário também se aplica. Às vezes penso: “Como é que isto não vai funcionar”. Isto porque a pessoa com a experiência de vida que tem ou com a sensibilidade que tem, acho, sobretudo, que a riqueza vem da diversidade. Disso não tenho dúvidas nenhumas. Se pensarmos na evolução na História das culturas, é sempre da diversidade que vem a riqueza. Se ficarmos na mesma não vamos a sítio nenhum. Aí é que acho que posso ter uma mais valia nesse sentido, mas não que tivessem a fazer mal ou que agora vamos fazer diferente.
Por exemplo, este workshop que da igualdade de género e da diversidade foi promovido antes de chegar. Aprendi e assisti a esse workshop que a CMU Potugal promoveu, não me parece necessariamente que houvesse um esquecimento disto. A política será de continuidade. Se calhar com um olhar diferente, que é o que acontece quando as pessoas mudam. Se calhar pelo facto de ser mulher tenho um olhar específico, digamos assim, mais feminino. Mas não no sentido de dizer “vamos lá corrigir” o que estava mal . Até porque, atualmente, a própria sociedade e a própria academia estão mais sensíveis a isso.
Não vejo a inteligência artificial como algo assustador, vejo mais como fascínio do que se pode conseguir daqui para a frente
Quais é que considera serem, atualmente, os perigos da inteligência artificial?
Vejo sempre o potencial da inteligência artificial, claro que devidamente acautelado. Sobretudo nos pontos de vista de ética haverá sempre [receios], mas isso haverá sempre na ciência no geral. Não é só na inteligência artificial. A diferença é o impacto ou a história que a inteligência artificial tem tido e que, atualmente, se está a ver que está a mudar a realidade. A inteligência artificial já tem muitos anos de história, muitas décadas. Quando apareceu foi um fascínio, não é isto de pensar a inteligência artificial no sentido de as máquinas poderem mudar o comportamento humano. É um fascínio. Na altura, quando foi criada nos EUA, atraiu muita gente. Depois, houve uns anos assim mais cinzentos. Agora voltou a ressurgir e há muita gente que diz: “Bem, daqui a pouco voltam os anos cinzentos, não tenhamos ilusões”.
O que acontece com a inteligência artificial é o que acho que acontece em todo o progresso científico. É de louvar, sem dúvida. Combinámos duas coisas, que é toda a parte do hardware digamos assim, que é termos mais capacidade de processamento. Por outro lado, é o facto de existirem muitos dados. Portanto, casando as duas coisas — a capacidade de processamento e o que se chama o big data — há técnicas que já foram estabelecidas há muito tempo. Quando se fala da aprendizagem automática, a área de machine learning e os termos que são falados são os conceitos que aprendi na universidade. Portanto, no século passado, a noção é que atualmente foram melhorados e aperfeiçoados a partir do momento em que temos quantidade de dados que nos permitem inferir informação que não tínhamos antes. Isso foi a mudança da realidade.
Do ponto de vista ético tudo o que levanta questões da vida das pessoas levanta questões éticas. Se calhar até agora muito do que fazíamos era jogos de xadrez e outras coisas contra um computador nas quais o impacto ético era moderado. Atualmente, podemos ter sistemas de recomendação que digam qual é a ordem de lista de espera para ir a uma consulta, por exemplo. Isso pode determinar a vida e a expectativa de vida das pessoas. Aí é que é diferente. Uma das coisas que a Comissão Europeia tem chamado muito a atenção, que e tem investido até bastante, é em relação a estes métodos da inteligência artificial que são importantíssimos. Ninguém tem dúvida. Haver mecanismos de explicação, ou seja, não pode ser porque houve um processamento de um algoritmo muito inteligente ou de inteligência artificial que definiu aquela lista. Isto se calhar até pode ser no dia, em que nos recomendam comprar qualquer coisa ou a Netflix diz nos quais são as séries que vamos gostar. Enfim, a forma como afeta a nossa vida é muito limitada. Se é algo que é mais importante mais para a frente, para isso já há casos de estudo e tem de haver alguma forma de responsabilizar e de explicar.
Depois, outra coisa é se concordamos ou não com a maneira como foi elaborada a ordem. Contudo, tem de haver uma forma de explicar e, atualmente, há um esforço muito grande para isso. Até por fazer a ligação entre a inteligência artificial mais tradicional, que sempre sobreviveu mais ligada a um determinado formalismo e um rigor, se quisermos, de um ponto de vista lógico e matemático, à inteligência artificial que temos agora, que dá algoritmos e que tem muita capacidade de processamento. Tem que se pôr os dois um ao serviço do outro e a dizer: “Bem, temos aqui esta resposta, agora vamos ter de explicar do ponto de vista lógico porque é que esta resposta apareceu”. Isso é muito importante e há muitos estudos a serem feitos nesse sentido. As políticas que existem, tanto que, atualmente, no ministério existe e na FCT estão a reforçar tudo o que é projetos que fazem toda a parte de data science e de inteligência artificial. A nível europeu, que tem impacto muito maior. também existe essa consciência e, por um lado, uma certa proteção no sentido de não haver métodos destes usados inconsequentemente. Por outro lado, também é muito importante suportar toda esta investigação nesta área que quer ter métodos mais poderosos que para que possamos identificar determinados padrões. Por outro lado ainda, quando afeta a vida das pessoas, não se pode dizer que foi a máquina que decidiu. Isso tem riscos agora.
Vejo isto mais como um desafio do que propriamente como algo mau, mas isso é sempre o que acontece. Às vezes temos medo do que desconhecemos. A inteligência artificial, para a maioria das pessoas, pode dar um certo susto. Para quem trabalha na área dá menos, porque conhecemos mais a realidade. Essa ideia, que não é nova, da inteligência artificial ser um certo mito – daí o filme “A.I”, do Steven Spielberg — acho que não acontece tanto para quem trabalha nela. Ou seja, que vê as coisas como um desafio sabendo que há entidades que tem poder de regular, de questionar e travar. Não vendo isso como um travão ao desenvolvimento, mas vendo como uma forma de regular que faz sentido. Até porque as pessoas que trabalham em inteligência artificial algumas têm formação em ética, mas nem todas. Também já se começa a ver uma certa interdisciplinariedade aqui. Há uma certa preocupação do Direito da ética na inteligência artificial. Não é uma coisa que me assuste, honestamente. É sim o potencial que é um fascínio se pensarmos como é que as coisas evoluíram em tão pouco tempo e como é que poderão evoluir no futuro. Se as entidades estão alerta, no sentido de regular e de questionar, acho que temos os ingredientes todos. Não vejo isto como algo assustador, vejo mais como fascínio do que se pode conseguir daqui para a frente. Portanto, muito pela positiva.
Em Portugal as tecnologias de inteligência artificial têm servido corretamente para melhorar serviços públicos ou o combate à pandemia? O que é que pode ser melhorado?
A questão é se estão a ser usadas na justa medida. O que acontece aqui é que tem havido financiamento e há parcerias com entidades públicas, a começar, por exemplo, com a Direção-Geral da Saúde (DGS), ou por outras entidades, o que for. Isso sei, no meu caso concreto que sou também presidente do INESC ID, onde existem trabalhos nesse sentido, e com outras instituições também. Muitas vezes são noticiados. O que acontece é que há um caminho a percorrer e que está a ser percorrido, que é toda a parte de ligação da Universidade com o exterior.
Aqui, confesso que toda a parte da informática e da inteligência artificial tem uma grande vantagem face a outras áreas. Porquê? Porque é uma área jovem e é uma área em grande desenvolvimento. Por isso é que os nossos alunos que são recém-formados, seja com licenciatura, mestrado ou doutoramento, estão a ir para as empresas. Um fenómeno que é uma preocupação nas políticas atuais é a empregabilidade dos doutorados. As pessoas que têm o doutoramento e depois, o que é que acontece — porque a academia já não consegue absorver toda a gente, o que faz sentido, porque estamos a formar muita gente, que é o que se pretende — é que as empresas deviam ser capazes de absorver. A níveis internacionais metade das pessoas deviam ir para empresas. Se calhar, outras ficam em institutos de investigação, o que for, mas as empresas deviam ter essa capacidade de absorver.
Nestas áreas, efetivamente, e em Portugal também há um grande desenvolvimento, principalmente nas startups e as empresas, tanto que já temos vários unicórnios. A investigação é considerada, e faz sentido, como um luxo. A partir do momento em que empresas dedicadas à inovação, o luxo faz sentido. Ou seja, faz sentido ter um departamento de investigação, ou de inovação, ou de inteligência artificial. Atualmente, começamos a ver pessoas doutoradas, ou com formação superior, que estão nessas empresas e começamos a ter o retorno. É verdade, se calhar não tanto na administração publica, que em termos de contratação é mais lenta, mas pensarmos que temos unicórnios em Portugal que absorvem todos os nosso alunos, seja doutoramento, seja o que for, começa a haver uma ligação muito mais forte entre a academia e a indústria. Acho que é muito positivo porque não é o papel das universidade porem os produtos cá fora. Estamos no princípio da linha e, depois, é preciso haver continuidade de alguém que leve isto até ao fim.
Uma das coisas que se tem visto no programa CMU Portugal, é que os projetos de maior dimensão estão a ser liderados por empresas. Claro que são empresas com um caráter de inovação muito grande, mas são empresas que estão a trabalhar juntamente com as universidades. Anteriormente isso era a exceção. Atualmente, conseguir no programa CMU Portugal que todos os projetos de grande envergadura tenham estas características, acho que é obra conseguir isto. Claro que houve um esforço dos diretores anteriores de identificar estas empresas, de bater à porta destas empresas porque é normal, pela História, que haja um certo preconceito que o conhecimento tenha ficado nas universidades e depois não circule. Acho que, aos poucos, temos vindo a desmitificar isto. Não só porque começam a existir startups que saem das universidades ou de um dos recém-formados. Claramente que o conhecimento que transmitimos é útil, e é útil a curto prazo. Agora, também é por causa deste ciclo que já é possível ver o retorno.
Na área da informática temos pessoas a chefiar empresas que fizeram o curso e que compreendem que o ciclo se começa a fechar. Isso é importante. Na administração pública é mais lento, mas existe esse alerta. Contudo, muitas vezes, para a administração pública não é fácil devido aos meios que tem. Num sítio que há poucos meios e chega ali alguém que quer ter uma reunião, ou que quer pedir dados, percebo que seja difícil. Por exemplo, no meu caso concreto, temos colaborado num projeto INEM e com o IPST. O INEM terá outras prioridades na pandemia atual. Até o Instituto português do Sangue. Se calhar tem é que ter tudo aos níveis certos em termos de stocks de sangue. Há aqui uma dinâmica em que se vê, por um lado, a vontade da administração pública. E, por outro lado, a falta de meios que muitas vezes limita.
Nas empresas já começa a haver muito mais colaboração, até por causa daquela ideia os nossos alunos vão para empresas e depois continuam numa colaboração, muitos deles doutorados. Começa-se a ver uma estrutura que em países onde há muito tradição de doutoramento — fazer um doutoramento em Portugal era raro há uns tempos — e isso é uma aposta numa formação que é mais longa e demorada, mas que depois tem o seu retorno. Há pessoas que estão em empresas e que, depois, vão fazer o doutoramento. Há uma dinâmica que é muito mais aberta do que é em Portugal. Com o tempo acho que estamos a chegar lá, sobretudo nestas áreas que são mais tecnológicas, mais inovadoras em que faz sentido a pessoa pensar para ter boas ideias. Acho que as coisas estão a avançar, acho que há um investimento há essa preocupação e, depois, temos as características do país que temos. Acho que ficam as lições mais para o futuro. Em tempos de guerra não se limpam armas, não é? Aqui sente-se isso, mas é a nossa realidade que não mudou de um momento para o outro. É uma aprendizagem que todos nós teremos que fazer.
Deve ser dado um foco à ética no ensino na utilização da inteligência artificial? Está a ser dado? É algo que tem de melhorar?
Quando pensamos tipicamente no currículo dos nossos cursos seguimos referências internacionais. Por exemplo, nesta parte da informática existe a ACM — que é a Association for Computing Machinery. Aliás, a Manuela Veloso teve um grande envolvimento também. Isto só para dar as referências. São referências internacionais e que muitas vezes fazem recomendações de currículos. E essa são as recomendações internacionais, ter aquilo a que se chama competências transversais.
Posso dizer, por exemplo, que no curso de engenharia informática, no técnico, temos uma cadeira chamada de Computação e Sociedade que é para alertar [para eventuais perigos]. Temos outra cadeira que se chama Introdução à Engenharia Informática, que é muito mais genérica. Ou seja, não são as cadeiras duras que associamos a um curso de engenharia. São no sentido de dar uma visão abrangente e, de alguma maneira, motivar para este tipo de questões. Mais à frente, no terceiro ano, há uma cadeira de Computação e Sociedade que é claramente diferente de todas as outras. Existe esta consciência e, sobretudo com padrões internacionais, vamos introduzindo essas componentes. Não tanto do ponto de vista da sociedade, serão diferentes nos vários países as necessidades que se sentem. Mas havendo padrões internacionais acaba por ser uma boa referência. E é dada formação neste sentido.
A minha perceção é que esta formação será em crescendo. No Técnico, foi feita uma reestruturação grande, que vai começar em setembro, e existe essa ideia das competências transversais para todos os cursos que vai muito além das matérias que é preciso tratar. A parte ética existe até na parte desta cadeira de Computação e Sociedade, tanto no que toca à ética, como no que toca às questões do Direito, por exemplo. Especificamente quanto à Proteção de Dados, estamos todos alerta e um informático tem de ter a noção disso. Em informática, então temos uma noção muito clara da interdisciplnariedade que há em tudo isto.
Muita vezes há alunos que até têm formação de outras áreas, porque Bolonha permite que tenha uma licenciatura em Biologia, por exemplo, e depois vá tirar um mestrado. Por falar em diversidade, estas são pessoas que também trazem um background diferente. Tão depressa vimos que um biólogo precisa de informática mas terá sempre algumas limitações, como um informático a tratar de biologia também terá sempre algumas limitações. Estamos a aprender que há realidades novas para começar a perceber até os empregos do futuro. Com isto posto, existe essa consciência, mas a minha noção é que isso irá evoluir em crescendo. Quando fiz o curso não tive formação nessas áreas e agora já há. Parece-me que é esse o caminho a seguir.