Os três inspetores do SEF ter-se-iam livrado do cadáver de Ihor Homeniuk se o objetivo fosse matá-lo. Se o quisessem fazer, tê-lo-iam feito “de imediato”, tinham abandonado o corpo “e não apenas uma pessoa com lesões, imobilizada”, especialmente num aeroporto, onde facilmente acabaria por ser encontrada e eles próprios rapidamente seriam descobertos. Não faz “qualquer sentido” achar que aqueles três homens, “de ânimo leve, deixariam, intencionalmente, uma pessoa para morrer” e depois regressavam “ao seu posto” à espera de sair incólumes de tal aventura“.
Foi por isto, e não só, que os três juízes que julgaram os três inspetores do SEF pela morte do cidadão ucraniano em março do ano passado entenderam que aqueles arguidos “não podem ser condenados pelo crime de homicídio qualificado” pelo qual tinham sido acusados pelo Ministério Público, mas sim por um menos grave: ofensa à integridade física grave qualificada, agravada pelo resultado da morte de Ihor Homeniuk — “Há vários tipos criminais que culminam com a morte da vítima. O homicídio é apenas um deles”, justifica o Tribunal no acórdão. E, neste caso, “nada ficou demonstrado quanto à intenção de matar”.
Então, qual era a intenção dos três inspetores do SEF ao entrar na sala onde o cidadão ucraniano estava e agredi-lo violentamente? “Quiseram causar-lhe dor, quiseram socá-lo e pontapeá-lo, quiseram algemá-lo e deixá-lo ali”, descreve o acórdão. Quiseram “magoar” o cidadão ucraniano e causar-lhe “danos” suficientes para que o homem “percebesse que tinha que ficar quieto, sossegado, sem perturbar o funcionamento daquele Centro [de Instalação Temporária]”. “Era essa a sua missão”, indicam os juízes. E, cumprida a tal “missão”, “abandonaram Ihor Homeniuk ao seu sofrimento”. Fizeram-no, “mas nunca animados do propósito de matar”. Fizeram-no, “mas não quiseram tirar-lhe a vida“, nem podiam prever aquela morte, conclui o acórdão, que condena Luís Silva e Duarte Laja a nove anos de prisão e Bruno Sousa a sete — uma vez que tinha menos anos de experiência e foi influenciado pela atuação de colegas de trabalho mais velhos.
Ihor. Inspetores condenados a sete e nove anos: “Tiraram a vida a uma pessoa e arruinaram as vossas”
O antes e depois da intervenção que ninguém viu: “Ihor Homeniuk está sossegado. Não grita. Não se mexe. Antes, não estava assim”
Embora não dê como provado a intenção de matar, o Tribunal está certo de que os três inspetores do SEF agrediram o cidadão ucraniano — e que foram essas agressões que provocaram a sua morte. Mas como é que está certo, tendo em conta que só estavam naquela sala a vítima e os agressores, que ninguém presenciou as agressões, nem havia nenhuma câmara de videovigilância lá dentro? Porque há uma diferença entre a forma como o cidadão ucraniano estava antes e depois de os três arguidos terem estado no local. “Ihor Homeniuk, que ao longo da véspera fora pródigo em reclamações, gritos, tentativas de reagir ao que lhe estava acontecer, acaba inerte, sem reação a tamanha provação que, a final, foi a causa da sua morte”, lê-se no acórdão.
Um dos “momentos determinantes” para chegar a esta conclusão foi o que aconteceu antes das 8h00 da manhã de dia 12 de março. Ihor Homeniuk, que tinha visto a sua entrada em Portugal recusada e já tinha até recusado embarcar para regressar ao seu país, tinha passado a noite agitado e a causar distúrbios no CIT. Vários inspetores do SEF foram até chamados para o acalmar, acabando por manietá-lo com algemas médicas. E vários vigilantes tinham-no mesmo imobilizado com fita adesiva — um dos “tratos inadequados” a que foi sujeito e que os juízes consideraram o mais “gritante”.
Quando, àquela hora da manhã, se dá a mudança de turno, todos, desde os vigilantes à hierarquia do SEF no aeroporto de Lisboa, passam a mensagem que a “vítima era um indivíduo perigoso que se punha em risco a si próprio e aos outros”. Os três arguidos são chamados para acalmar Ihor Homeniuk e “vão à procura de um cenário grave de violência que não encontram”. “Pelo contrário. Ihor Homeniuk está com as pernas amarradas com fita adesiva”, relata o acórdão, acrescentando: “É fácil entender que a vítima, se então não estava, se torne agitada, e reaja àquilo que se torna aparente: três homens, sem falar uma palavra da sua língua, entram na sala para o confrontar“.
“Avancemos agora um pouco no tempo“, continua o acórdão, o tempo do depois — depois de os três inspetores terem saído da sala onde estava o cidadão ucraniano. “Ihor Homeniuk está sossegado. Não grita. Não se mexe. Deixou de ‘causar problemas’. Está ‘sossegado‘”, relatam os juízes, acrescentando: “Antes da entrada dos arguidos a vítima não estava assim”. Até porque, entendeu o Tribunal, se estivesse, os três inspetores “não o teriam algemado e teriam reportado o estado daquele cidadão, à guarda do SEF, apresentando a queixa devida dos vigilantes que o tivessem espancado” — mas tal não aconteceu. Parou de gritar, deixou de se mexer e ficou sossegado. “Depois da sua saída, ficou a vítima prostrada, inativa, em sofrimento”, apontam os juízes.
O Tribunal está certo de que “foi a conduta dos arguidos que provocou tal mudança”: agrediram-no, com um número indeterminado de socos e pontapés” e algemaram-no com as mãos atrás das costas. Conduta essa que se traduz nas agressões que viriam a ser detetadas na autópsia e que foram a causa “direta e necessária da sua morte”. “Não se conseguiu foi, com certeza absoluta, determinar se lhe bateram quando a vítima estava algemada, ou não, em pé ou caída“, lê-se no acórdão.
Certo é que Ihor Homeniuk acabaria por sofrer fraturas em várias costelas, que, conjugadas com a posição em que estava (de barriga para baixo e algemado com as mãos atrás das costas), lhe provocaram uma asfixia lenta.
Como a autópsia e uma queixa anónima denunciaram o homicídio de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa
Não se pode concluir da autópsia que inspetores esmagaram tórax de Ihor contra o chão. Fraturas podem ter sido provocadas por pancadas
Apesar de contestada pela defesa, o Tribunal concluiu que não existia qualquer “vício” na autópsia. “Foi realizada no INMLCF, entidade competente para o efeito, por um perito desse mesmo instituto, pelo mesmo habilitado”, refere o acórdão. O juízes consideraram que o perito que realizou a autópsia — e que viria a alertar a Polícia Judiciária para a existência de um crime — “dissipou quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à sua competência ou quanto à adequação dos seus procedimentos” — tão contestados pelos advogados que representam os arguidos. Nomeadamente, explicando que “não recorreu a mais exames complementares” porque “as evidências se expunham perante os seus olhos”.
A conclusão da autópsia foi a de que “Ihor Homeniuk morreu como consequência de um processo para o qual contribuíram dois fatores: a quebra dos arcos costais e a imobilização das mãos, com algemas, atrás das costas, por um período de tempo demasiado prolongado“. Ainda assim, os juízes entenderam que não se pode concluir pela autópsia que as fraturas “foram provocadas pela aplicação de um peso tal nas costas de Ihor Homeniuk, obrigando o tórax a esmagar-se contra o solo”.
No entanto, o Tribunal considerou que as fraturas que o cidadão ucraniano apresentava podem “ter sido causadas por pancadas contundentes que tenham provocado idêntica mecânica de esmagamento, nomeadamente se a vítima foi atingida quando em contacto com superfície dura”, neste caso, o chão”.
“Não podemos deixar de expressar uma palavra relativamente a todos aqueles que nada fizeram”
Mesmo antes de anunciar as penas que iriam ser aplicadas aos três inspetores do SEF, o juiz Rui Coelho quis “expressar uma palavra relativamente a todos aqueles que, na hora, tomaram conhecimento do que se passava com Ihor Homeniuk e nada fizeram”. “Todos aqueles que acharam por bem controlar o comportamento de Ihor Homeniuk amarrando-o como uma embalagem, com fita adesiva”, lê-se no acórdão, que continua: “Todos aqueles que acharam que era preciso acalmar um passageiro e, para tanto, seria adequado enviar três inspetores com ordem para intervir à força, sem cuidar de saber se outra solução, mais adequada e proporcional, seria de adotar. Todos aqueles com funções de chefia que, sabendo que uma pessoa fora deixada algemada, não cuidaram de saber como se desenrolaria tal situação”.
E são todos estes que poderão ter agora de enfrentar a justiça. O Tribunal decidiu extrair uma certidão para que se possa investigar, num processo isolado, o “comportamento dos vigilantes do turno da noite pela forma com trataram Ihor Homeniuk”, dos “vigilantes do turno de dia pela forma como nada fizeram para auxiliar um homem em sofrimento”, dos “inspetores do SEF que presenciaram a intervenção dos arguidos e até foram ver o estado em que Ihor Homeniuk ficou depois, e nada fizeram para o assistir nas horas que se seguiram”, dos “inspetores do SEF com funções de coordenação e chefia que deram a ordem aos arguidos, foram informados do cumprimento dessa ordem, e não cuidaram de garantir que a Ihor Homeniuk era prestada a devida assistência, que lhe eram retiradas as algemas, que era devidamente tratado, até à hora do seu embarque”.
Assim, o julgamento dos três inspetores do SEF chega ao fim — embora novos capítulos sejam abertos pelos recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa que a defesa já anunciou. Mas esta extração de certidão torna possível que o caso da morte de Ihor Homeniuk volte novamente a uma sala de audiências. Desta vez, com outras pessoas sentadas nos bancos dos arguidos.